sexta-feira, 28 de setembro de 2007

O Proto-romantismo e a Hermenêutica (parte 1)


"Porta do Inverno", de Caspar David Friedrich.


Essa estória de estabelecer a relação entre o Romantismo e uma tradição das ciências sociais voltada sobretudo para a interpretação fez-me lembrar dos idos anos de meu doutorado. Fiz uma tese teórica em que explorava várias idéias de subjetividade no discurso moderno. Pois então: acho que não há uma idéia de subjetividade na modernidade, mas várias, e o trabalho que propus queria de algum modo mapear algumas delas no contexto do kantismo alemão, algo que, grosso modo, iria de Fichte a Carl Schmitt.

Na tese não trato exatamente do Romantismo, mas daquilo que chamo de Proto-romantismo, algo que reuniria nomes como Fichte, Schiller, Novalis, Friedrich Schlegel e Schleiermacher. A estória toda tem interesse por se tratar de uma linha de romantização do pensamento alemão que passa ao largo de Rousseau, e do Sturm und Drang, e bebe diretamente em Kant. Ora, no post anterior havíamos falado que o Romantismo tinha sido, ao menos nominalmente, anti-iluminista... O que fazem estes românticos de primeira geração escutando muito atentamente as loas do filósofo de Könisberg? Acho curioso também que nosso causo termine exatamente em Schleiermacher, pai da hermenêutica científica.

O ponto inicial do trajeto, então, é Fichte, o filho bastardo do kantismo. Fichte reconhecia e divulgava a influência de Kant no seu pensamento; o velho filósofo, por seu lado, dizia que era celibatário e que se alguma vez fecundara inadvertidamente alguém, com certeza não reconhecia no outro sua linhagem crítica. A questão central do dramalhão mexicano ('quem é o verdadeiro pai de Olavo?') é que para Kant a idéia de subjetividade deveria permanecer para sempre testemunho de uma aporia, de uma tensão entre o sujeito pensante e o sujeito pensado. Sempre que procuro transformar a mim próprio em objeto de minha reflexão percebo algo como uma esquizofrenia insuperável: o eu que pensa jamais pode ser totalmente objetificado. Somos seres finitos, não podemos nos conhecer de modo absoluto. Kant é o pai do liberalismo moral; para ele não haveria como conciliar politicamente pretensões de conhecimento absoluto às tarefas intermináveis de uma ética finita (e liberal). De um certo modo, podemos dizer que se um indivíduo se conhecesse absolutamente ele não seria livre. Ou seja, o liberalismo kantiano não poderia operar, por exemplo, com algo como a realização do espírito absoluto na terra. Gosto de pensar que Kant foi o primeiro filósofo a intuir que a tarefa de humanização é necessariamente aberta e inesgotável

Ora, é desse ponto específico que Fichte pretende dar sua contribuição. Há uma literatura vasta a respeito das reflexões epistemológicas que marcam sua obra. Mencionamos, por exemplo, no post anterior um texto muito bom de Gerd Bornheim publicado no livro O Romantismo, organizado por J. Guinsburg. Não recapitularei o argumento, pois é muito enfadonho – no entanto, quem quiser entender a genealogia da idéia de dialética em Hegel terá de passar pela Ciência do Conhecimento, de Johan G. Fichte. Interessa apenas que ele tenha pretendido fechar os hiatos que Kant deixara propositalmente abertos entre um sujeito que cogita e sua subjetividade cogitada. Propõe, assim, um fundamento absoluto para a subjetividade. Contra a idéia de que a consciência não pode se apresentar plenamente a si própria, ele argumenta ser a consciência um ato. O fundamento da subjetividade é algo prático, ativo, e não algo passivo. A essência da subjetividade, para usarmos um jargão kantiano, subvertendo-o, é algo da ordem da razão (prático, produtivo, ativo) e não algo que possa ser apreendido pelo entendimento (se este for concebido como uma forma passiva de receber o mundo). A subjetividade é compreensível como uma ação: a própria busca de si, neste sentido, é o fundamento metafísico de toda subjetividade.

Complicadinho não é? Leiam Bornheim. Disto tudo, porém, quero apenas preservar essa idéia que vai ser tão importante no proto-romantismo que é o fato de a subjetividade ser uma produção, um deslocamento, e não algo estático e disponível, como um objeto a ser consumido. Não é fortuito, portanto, que Novalis, alguns anos depois venha a afirmar: “O ato de transcender a si próprio é o mais elevado em todos os aspectos – o ponto de origem – a gênese da vida”. (Novalis, Philosophical Writings, 1997, p. 64)

E agora eu vou cuidar de outra coisa. Na próxima semana falarei de Schiller, Novalis, Friedrich Schlegel e Schleiermacher, ou seja, a constituição de um projeto poético-filosófico que irá desembocar na hermenêutica moderna. Bom final de seman, ao eventual leitor ou leitora.

Ainda por editar.
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Jonatas Ferreira

4 comentários:

Le Cazzo disse...

Jonatas,

Muito interessante esta questão da subjetividade em termos de uma aporia entre o sujeito pensante e o sujeito pensado e a infinidade de possibilidades que isto abre para uma concepção de sujeito. Da forma como Hannah Arendt coloca a questão, "onde estou eu quando penso acerca de mim própria?"; nos de Mead, como apreender um eu que é sempre fugidio, insistindo em se transformar em objeto (um mim), sempre que reflito sobre o eu? Não é irônico postular a morte de um sujeito que, de certa forma, nunca chegou a nascer na tradição iluminista?

Quanto aos aspectos universalizantes do Sturm und Drang, dá só uma olhada na letra da Ode à Alegria, de Schiller (deve ter traduções melhores, mas esta foi a que estava mais à mão na internet):

Ode à Alegria

Música : Ludwig van Beethoven
Poesia: Friedrich Schiller


Alegria, centelha de imortal chama,
Filha do Eliseu!
Ébrios de fogo, deusa celestial,
Invadimos teu santuário!
Deixa que tua magia reúna
Todos os que as leis da terra dividem;
Todos os homens serão irmãos,
Sob tuas ternas e amplas asas.

Aquele que teve a boa sorte
De ser amigo de um amigo,
Aquele que conquistou uma nobre mulher,
Deixem-no associar-se ao nosso júbilo!
E também aquele que pode chamar sua
Uma outra alma.
Mas deixem também em isolado pranto
Quem jamais conseguiu tanto.

Todo ser vivente extrai
Alegria do amplo seio da natureza;
Todos os bons homens e os maus também
Procuram-na em ansiada busca.
E beijos e vinho ela oferece
Aos que, firmes, ficaram na morte.
O verme recebe a alegria da vida
E os anjos habitam com Deus!

Alegres como sóis incandescentes
Que cruzam, gloriosos, os espaços celestiais,
Correi, irmãos, por vossos caminhos,
Alegres como cavaleiros vitoriosos.

O amor se expande a milhões sem conta,
Lança um beijo ao mundo inteiro!
Por certo, acima das estrelas do céu
Um Pai bondoso tem sua morada!
Prostrai-vos ante Ele, milhões!
Sentes, ó mundo, teu Construtor?
Procura-o acima das estrelas do céu,
Acima delas estão Seus pavilhões.

Cynthia

Le Cazzo disse...

Oi Cynthia,
Obrigado pelos comentários. Creio que o sujeito não parou de nascer no pensamento moderno - só que nasceu de modos muito mais diversos do que usualmente a teoria sociológica está disposta a aceitar.

Quanto à Schiller. Obrigado pela Ode. Estou estudando o moço. Incrível o que encontramos no Domínio Público do MEC. Baixei Don Carlos, Poesia Sentimental e Poesia Ingênua e uma coletânea de ensaios sobre estética. Estou estudando/lendo o PS e PI. É muito interessante ver uma interpretação meio rousseauiana que ele faz de Kant. Lê A Crítica do Juízo com olhos de quem acabou de ler a Origem da Desigualdade ou o Emílio.

Em breve, escreverei algo sobre ele. Beijo, JOnatas

Anônimo disse...

"Complicadinho?"
Bondade sua viu... hehehehe

Mas vou assim, lendo aos poucos e compreendendo um pouco.

Adorei o blog, só cheguei um pouco "atrasada" e fica difcil conseguir ler todos os posts anteriores, mas tá muito bom! parabéns pra vcs! ;)

Marcela

Le Cazzo disse...

Marcela,

Obrigado pelo incentivo. E certas coisas não são simples mesmo... Ou ainda não arranjei uma forma adequada de explicar.