domingo, 30 de dezembro de 2007

Ma Che Cazzo Dici Tu??! O Leão de Wittgenstein e a Virada Lingüística



Certa tarde, dois meninos, Joãozinho e Juquinha, foram ao zoológico. Ao passarem diante da jaula dos leões, um dos bichos escapou, soltando um rugido enorme. “Vamos sair daqui!”, gritou Joãozinho. “Pode ir se quiser”, disse Juquinha, “eu vou ficar e assistir o filme”. Moral da história: Ludwig Wittgenstein parece ter razão quando afirmou que “se um leão pudesse falar, nós não poderíamos entendê-lo”. Este aforismo já fez com que filósofos eminentes consumissem muita tinta e papel em torno do pequeno bestiário descrito nas Investigações Filosóficas, repleto de patos-coelhos, gansos com dentes nas asas, cachorros hipócritas, dentre outras bestas absurdas. Um deles, cujo nome não me recordo, chegou a afirmar que se o leão estivesse dizendo “Ludwig, eu vou devorar você!”, seria possível inferir do seu tom de voz (tom de rugido?) que ele não estava contando uma história para seus filhotes dormirem.

Mas o que faz com que filósofos tão ilustres gastem seu tempo precioso (e o nosso) com questões dignas da patafísica, “ciência revolucionária” que deu origem ao teatro do absurdo? Como essas questões podem ilustrar as preocupações centrais da filosofia da linguagem e, o que é mais importante para nós, a relação entre ciências sociais e a tão falada virada lingüística? Uma forma possível é (tchan, tchan!) via sociologia do humor. Peter Berger, sociólogo da tradição interpretativa (fenomenológica) e mais conhecido por seus estudos sobre religião, estabelece uma relação muito interessante entre o teatro do absurdo de Beckett, Ionescu e Jean Genet e a idéia de linguagem. Segundo ele, o termo absurdum, em latim, significa literalmente “retirado da surdez”. De acordo com uma das definições do Houaiss, absurdo é aquilo que é contrário à sensatez e ao bom senso e, sendo assim, uma interpretação possível para o uso do termo é que absurdo é aquilo que as pessoas surdas à razão dizem. Absurdo seria, portanto, mais ou menos sinônimo de irracionalidade. Mas Berger (1997: 175) sugere ainda uma outra interpretação: “o absurdo é uma visão da realidade que deriva da própria surdez – isto é, uma observação de ações que não são mais acompanhadas de uma linguagem. Tais ações são, precisamente, desprovidas de sentido [...] e o efeito é geralmente cômico”. Mas antes que eu me enrede nas minhas infindáveis divagações sobre humor e conhecimento, deixem-me focar uma questão relevante para a filosofia da linguagem, que é a relação entre linguagem e ação para a compreensão do significado.

O que estamos dizendo quando afirmamos que compreendemos o significado de uma proposição qualquer? Se alguém me diz algo como “estou alegre hoje”, o que, nesta proposição, me permite compreender o que a pessoa está sentindo? Será que existe uma série de sinais “objetivos”, como sorrisos, gestos, tom de voz etc que me permitam relacionar à expressão “alegre” e que “espelhem” esta expressão? Certamente que, se alguém me diz que está alegre e sua linguagem corporal, tom de voz etc me “dizem” o contrário, é possível interpretar esta afirmação como ironia, como “falta de sinceridade” ou como simples absurdo (ausência de sentido) por parte de quem a profere. No entanto, existe algo mais do que a simples referência a tais sinais “objetivos” envolvida na interpretação de uma sentença como esta. O que é que conta como um “sinal objetivo” de alegria? Será que os sinais que permitem a um inglês identificar alguém como estando alegre são os mesmos sinais que permitem que um brasileiro o faça? O que, afinal de contas, determina a possibilidade da aplicação de um termo como “alegria” para ações e expressões que não são nunca idênticas umas às outras, mas que guardam apenas “relações de familiaridade” entre si?

São questões desta ordem que ocupam a filosofia da linguagem, cujo insight mais fundamental é o de que as palavras não são simples rótulos para as coisas que existem no mundo. A chamada “virada lingüística”, expressão popularizada por Richard Rorty em uma coletânea de textos de filósofos da linguagem datada de 1967, diz respeito àquelas tendências da filosofia ocidental que levam à conclusão de que a linguagem ou o discurso representam o limite das investigações acerca da verdade e do mundo, ou a visão de que não há nada fora da linguagem. Como Wittgenstein colocou no Tratactus Logicus Philosophicus, “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”. Numa visão um pouco mais contemporânea, o filósofo francês Jacques Derrida afirma que “não existe nada além do texto”. O que há de comum nas diversas tradições que compõem a virada lingüística é a idéia básica de que o significado não é uma referência a uma entidade, mas um produto sociolingüístico, uma questão de uso da linguagem. Em um sentido importante, portanto, a linguagem não representa ou espelha a realidade, mas a constitui. Wittgenstein, mais do que ninguém, contribuiu para esta concepção que atuou como uma verdadeira revolução copernicana para as ciências sociais.

Para o filósofo austríaco, nenhuma linguagem é privada e mesmo os pensamentos mais íntimos de alguém devem ser expressos em uma linguagem comum a uma determinada comunidade ou “forma de vida”. Isto significa que conhecer o significado de um termo pressupõe a nossa habilidade para empregá-lo corretamente. E o que é empregar um termo corretamente? É seguir as regras que definem o seu uso ou, nos termos de Wittgenstein, tomar as palavras como parte de um “jogo de linguagem”, isto é, com parte dos símbolos e das ações que se conformam às expectativas de uma forma de vida particular.

A forma como o jogo de linguagem relaciona linguagem, práxis e contexto pode ser compreendida a partir da forma como as crianças aprendem a falar. Quando elas aprendem a usar uma linguagem, o processo de aprendizagem ocorre por meio da associação entre palavras e um certo tipo de ação. Se eu digo, por exemplo, “beba a água”, espero que a criança desempenhe um certo tipo de ação, ou que reaja de uma determinada forma ao ouvir essas palavras. Compreender uma proposição como esta pressupõe, portanto, “o uso de símbolos compartilhados, uma reação a determinadas expectativas comportamentais e um consenso acerca do desempenho dessas expectativas” (Habermas, 1970: 130). É justamente este todo, composto dos símbolos e das ações nas quais a linguagem é tecida que Wittgenstein chama de jogo de linguagem. Compreender uma linguagem e estar apto a falá-la indica que a pessoa adquiriu determinadas habilidades, que aprendeu como desempenhar certas atividades. Se, ao invés de beber a água a criança a derrama no chão, dizemos que ela não compreendeu a frase (ou que compreendeu e se recusou a desempenhar a ação por alguma razão qualquer). Em ambos os casos, a comunicação e a interação são perturbadas, podendo fazer com que a última se desintegre. Isto requer a restauração do entendimento (ou concordância acerca do significado) que está falho ou ausente, fazendo da compreensão lingüística um processo importantíssimo para as ciências sociais.

Mas e o leão? Ora, se o significado das palavras e das sentenças dependem de uma forma de vida particular, então seria necessário conhecer a forma de vida dos leões para compreender o que contaria como o uso correto de suas expressões. Alguém aí se aventura, ou preferem seguir os passos de Habermas e chamar Hermes para ajudar na tradução?

Berger, Peter (1997). Redeeming Laughter: The Comic Dimension of Human Experience. Berlim e Nova York: Walter de Gruyter.
Habermas, Jürgen (1979). On the Logic of the Social Sciences. Cambridge, MA: The MIT Press.
Rorty, Richard (1967). The Linguistic Turn: Essays in Philosophical Method. Chicago: The University of Chicago Press.

Cynthia Hamlin

6 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom o post!

trata em forma simples e direta uma questão central para as cs.

me veio uma questão.
quando Derrida diz que:
"não existe nada além do texto"

onde fica a creatividade individual? Seria vista como em Saussure através da distinção entre Langue e Parole?

Le Cazzo disse...

Prezado Pedro,

Obrigada pelos incentivos e por suas contribuições para o debate.

Não sei se poderei dar uma resposta satisfatória à sua pergunta, pois conheço quase nada sobre Derrida e sobre lingüística. Mas deixe-me tentar (suspeito que Jonatas poderá corrigir qualquer desvio de prumo de minha parte).

Ao contrário da abordagem de Derrida, a linguística estruturalista de Saussure ainda opera com base em uma filosofia da consciência que, diferentemente de uma filosofia da linguagem, concebe o pensamento e a linguagem como representação da realidade. Seria, portanto, parte daquilo que Wittgenstein chama de teoria pictórica ou teoria representacionista da linguagem. Tal teoria, característica da filosofia moderna (a partir de Descartes), concebe o sujeito como um cerne ou um núcleo (um agente, se você preferir), capaz de espelhar a realidade em sua mente. Lembra da célebre frase de Marx na Introdução à Crítica da Economia Política, onde ele afirma que o método dialético permitiria reproduzir o concreto no pensamento? Pois bem, o que a filosofia da linguagem fez foi justamente destruir esse sujeito cognoscente abstrato, universal e ubíqüo, que é capaz de espelhar a realidade. Ao contrário, o próprio sujeito é concebido como formado ou constituído pela linguagem, o que significa dizer que sua própria existência é contextual, depende de jogos de linguagem específicos. Ele é, portanto, uma "posição na linguagem", instável, inacabado, em fluxo constante de acordo com os contextos em que se localiza num dado momento.

É por essa razão que um dos principais resultados da passagem de uma filosofia da consciência para uma filosofia da linguagem é justamente a morte do sujeito, ou do autor, como prefere Foucault.

Criatividade individual? Suspeito que, nesta abordagem, isso seria mero nonsense, apesar das tentativas de diversos autores em re-introduzir a agência humana e a criatividade em suas teorias (mais uma vez, caso de Foucault). Não é por acaso que, como afirmou Jonatas em resposta à sua pergunta no post anterior, ele não é um bom autor para se pensar resistência. Da mesma forma que a morte do sujeito instaura a impossibilidade da epistemologia (quem conhece?), gera diversos problemas para a política (que os laclaudianos não me ouçam!).

Bom ano novo para você!

Cynthia

Anônimo disse...

Cynthiazinha,

conta-se que um etólogo foi ler as "Investigações..." e perdeu completamente sua capacidade de observação. Morreu, um pouco depois, trucidado por um leão, quando tentou lhe dizer: "não compreendo teu rugido e tua bocarra cheia de dentes, pois não compreendo tua forma de vida". Lascou-se. Na savana da África, um bom remédio contra os "jogos de linguagem" é uma pitada de behaviorismo com um realismo de face humana à la Hilary Putnam.

Com um búfalo selvagem atrás de mim, pensaria que há viradas e viradas linguísticas. Algumas não precisam namorar o absurdo e fazer ataques vulgares ao representacionismo -- ou será que ninguém imagina que a idéia de representação não mudou desde Descarte? O búfalo, talvez. Hehe...

Só para provocar Jonatas: acho, ao contrário, que o aporte foucaultiano é eficaz para pensar a "resistência", talvez pela sua visão peculiar de poder (vide as apropriações anarquistas de Foucault, tipo um Edson Passetti). Mas o problema, pensa o "reformista" aqui, é justamente esse: numa democracia liberal, ficar apenas na "resistência" é absolutamente insuficiente (num regime totalitário ou autoritário, ainda vá lá).

Bjus, boas festas e feliz 2008!

Le Cazzo disse...

Meu querido Artur,

Ha ha! Isso me lembra a piada do psiquiatra cujo paciente foi comido por um jacaré depois de anos de terapia para se livrar de sua fobia. A escolha do seu exemplo me leva ainda a crer que, uma vez psiquiatra, não há sociologia ou filosofia que mude a sua natureza!

Certamente que a virada linguística não levou todos os teóricos sociais a frequentar os funerais promovidos pelos pós-modernos, e Habermas é um bom exemplo! E por falar nisso, menino, você continua habermasiano???

Quanto ao realismo, não se preocupe: sou bem vacinada contra os diversos tipos de nominalismo que andam em voga... ando cada dia mais anti-pós.

Mas me diga uma coisa: você acha que Julieta tinha razão quando disse a Romeu que Montecchio era apenas um nome? Já pensou no que ela teria dito na famosa cena do balcão se tivesse lido Peter Winch? Enfim, há realismos e realismos... Acho que vou escrever sobre isso no meu próximo post.

Beijo e feliz 2008 para você também.

Cynthia

Anônimo disse...

Cynthia,

obrigado pela resposta.
Muito iluminante.

Feliz 2008 para todos

asadebaratatorta disse...

Dizem por aí que no início havia mesmo o verbo, né? ^^'

O que acho meio estranho no quase-nada que entendo de filosofia da linguagem é se veio primeiro o ovo ou a galinha. Os biólogos, entre outros, falariam que o ovo veio muito antes, já com os répteis e anfíbios. Porém, da humanidade e suas diversas formas de linguagem, não sei quem é o ovo e que é a galinha. Se alguém ,souber, por favor, me avise!
A questão é como os filósofos linguistas compreendem a mudança das estruturas linguísticas? A partir delas mesmas ou dos que a utilizam? Será que uma filosofia da consciência é tão descartável assim?

Uma explicação de cunho cognitivista que ouvi uma vez envolvia um exemplo interessante: o dos nativos das terras conhecidas por América Central. Diz-se que os nativos tinham em seu campo de visão durante muito, muito tempo, as caravelas. Porém, não a percebiam. Como era algo jamais imaginável e representável por eles, logo de cara, suas percepções não captaram a presença ds caravelas. Ao longo dos vários dias, suas mentes teriam sido estimuladas o suficiente para gerar aquela imagem.
Outro exemplo é o do terapueta que fala semrpe a mesma coisa ao paciente, com um determinado significado que o paciente simplesmente não capta. O terapeuta estimula bastante aquela construção na mente do paciente até que, um dia, ele entende e jura ter ouvido aquilo pela primeira vez.


E a consciência? Depois do verbo, e agora, José?