sexta-feira, 28 de setembro de 2007

O Proto-romantismo e a Hermenêutica (parte 1)


"Porta do Inverno", de Caspar David Friedrich.


Essa estória de estabelecer a relação entre o Romantismo e uma tradição das ciências sociais voltada sobretudo para a interpretação fez-me lembrar dos idos anos de meu doutorado. Fiz uma tese teórica em que explorava várias idéias de subjetividade no discurso moderno. Pois então: acho que não há uma idéia de subjetividade na modernidade, mas várias, e o trabalho que propus queria de algum modo mapear algumas delas no contexto do kantismo alemão, algo que, grosso modo, iria de Fichte a Carl Schmitt.

Na tese não trato exatamente do Romantismo, mas daquilo que chamo de Proto-romantismo, algo que reuniria nomes como Fichte, Schiller, Novalis, Friedrich Schlegel e Schleiermacher. A estória toda tem interesse por se tratar de uma linha de romantização do pensamento alemão que passa ao largo de Rousseau, e do Sturm und Drang, e bebe diretamente em Kant. Ora, no post anterior havíamos falado que o Romantismo tinha sido, ao menos nominalmente, anti-iluminista... O que fazem estes românticos de primeira geração escutando muito atentamente as loas do filósofo de Könisberg? Acho curioso também que nosso causo termine exatamente em Schleiermacher, pai da hermenêutica científica.

O ponto inicial do trajeto, então, é Fichte, o filho bastardo do kantismo. Fichte reconhecia e divulgava a influência de Kant no seu pensamento; o velho filósofo, por seu lado, dizia que era celibatário e que se alguma vez fecundara inadvertidamente alguém, com certeza não reconhecia no outro sua linhagem crítica. A questão central do dramalhão mexicano ('quem é o verdadeiro pai de Olavo?') é que para Kant a idéia de subjetividade deveria permanecer para sempre testemunho de uma aporia, de uma tensão entre o sujeito pensante e o sujeito pensado. Sempre que procuro transformar a mim próprio em objeto de minha reflexão percebo algo como uma esquizofrenia insuperável: o eu que pensa jamais pode ser totalmente objetificado. Somos seres finitos, não podemos nos conhecer de modo absoluto. Kant é o pai do liberalismo moral; para ele não haveria como conciliar politicamente pretensões de conhecimento absoluto às tarefas intermináveis de uma ética finita (e liberal). De um certo modo, podemos dizer que se um indivíduo se conhecesse absolutamente ele não seria livre. Ou seja, o liberalismo kantiano não poderia operar, por exemplo, com algo como a realização do espírito absoluto na terra. Gosto de pensar que Kant foi o primeiro filósofo a intuir que a tarefa de humanização é necessariamente aberta e inesgotável

Ora, é desse ponto específico que Fichte pretende dar sua contribuição. Há uma literatura vasta a respeito das reflexões epistemológicas que marcam sua obra. Mencionamos, por exemplo, no post anterior um texto muito bom de Gerd Bornheim publicado no livro O Romantismo, organizado por J. Guinsburg. Não recapitularei o argumento, pois é muito enfadonho – no entanto, quem quiser entender a genealogia da idéia de dialética em Hegel terá de passar pela Ciência do Conhecimento, de Johan G. Fichte. Interessa apenas que ele tenha pretendido fechar os hiatos que Kant deixara propositalmente abertos entre um sujeito que cogita e sua subjetividade cogitada. Propõe, assim, um fundamento absoluto para a subjetividade. Contra a idéia de que a consciência não pode se apresentar plenamente a si própria, ele argumenta ser a consciência um ato. O fundamento da subjetividade é algo prático, ativo, e não algo passivo. A essência da subjetividade, para usarmos um jargão kantiano, subvertendo-o, é algo da ordem da razão (prático, produtivo, ativo) e não algo que possa ser apreendido pelo entendimento (se este for concebido como uma forma passiva de receber o mundo). A subjetividade é compreensível como uma ação: a própria busca de si, neste sentido, é o fundamento metafísico de toda subjetividade.

Complicadinho não é? Leiam Bornheim. Disto tudo, porém, quero apenas preservar essa idéia que vai ser tão importante no proto-romantismo que é o fato de a subjetividade ser uma produção, um deslocamento, e não algo estático e disponível, como um objeto a ser consumido. Não é fortuito, portanto, que Novalis, alguns anos depois venha a afirmar: “O ato de transcender a si próprio é o mais elevado em todos os aspectos – o ponto de origem – a gênese da vida”. (Novalis, Philosophical Writings, 1997, p. 64)

E agora eu vou cuidar de outra coisa. Na próxima semana falarei de Schiller, Novalis, Friedrich Schlegel e Schleiermacher, ou seja, a constituição de um projeto poético-filosófico que irá desembocar na hermenêutica moderna. Bom final de seman, ao eventual leitor ou leitora.

Ainda por editar.
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Jonatas Ferreira

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

O que é Epistemologia Feminista?


A epistemologia, pelo menos em uma de suas definções, pode ser caracterizada como um conjunto de reflexões acerca de nossas concepções de conhecimento, de sujeito cognoscente, assim como as diversas práticas de justificação dessas concepções. Assim, por exemplo, sob que bases um conhecimento considerado universal (aplicável a toda a humanidade, independentemente das diferenças entre os grupos) pode ser considerado superior a outras formas? Quem é o sujeito que conhece: apenas alguém capaz do uso de uma razão abstrata, universalizante? E que grupos de pessoas possuem tal capacidade? Quem decide as questões relevantes para serem tratadas pela ciência ou por outras formas de conhecimento? Quem decide onde está a “verdade”?

Desde os anos de 1970, a teoria feminista, influenciada pelo movimento feminista, tem alertado para os perigos da supergeneralização, sugerindo que os valores, as experiências, os objetivos e as interpretações dos grupos dominantes são apenas os valores, experiências, objetivos e interpretações desses grupos, não da humanidade como um todo. Foi a partir disso que surgiu uma área da epistemologia dedicada a compreender a forma como o gênero influencia aquelas concepções e práticas e como elas têm sistematicamente colocado em desvantagem as mulheres e outros grupos subordinados.

A epistemologia feminista tem três vertentes principais. A primeira delas é o feminismo empirista. Diferentemente do empirismo, concebido como a doutrina segundo a qual a experiência é a base mais sólida para a construção do conhecimento, o feminismo empirista é chamado assim porque parte do princípio de que o problema com as pesquisas tradicionais é que elas não percebiam as mulheres como um grupo distinto, com características particulares. As pesquisas sociológicas, por exemplo, não apenas não incluíam as mulheres em números significativos em suas amostras, mas não levavam em consideração que alguns problemas de pesquisa, relevantes para esse grupo, não eram sequer colocadas. Isso tornava as mulheres “invisíveis” e o grande esforço desta corrente epistemológica foi no sentido de dar visibilidade e elas.

Nenhuma crítica mais profunda foi efetuada em relação aos pressupostos de uma ciência que hoje se considera falocêntrica. A epistemologia (teoria do conhecimento) continuou, segundo as tradições hegemônicas, reduzida à metodologia (teoria do conhecimento científico) e o problema era somente o de colocar o instrumental teórico e metodológico desta ciência a serviço da visibilidade das mulheres. No entanto, alguns questionamentos se tornaram inevitáveis, gerando a necessidade de uma crítica mais profunda dos pressupostos adotados. Será que foi obra do mero acaso que o trabalho doméstico foi, durante muito tempo, não digno de investigação? Qual a base da distinção entre o trabalho produtivo e o trabalho não-produtivo colocado pela tradição marxista? Por que os conceitos sociológicos foram formulados da maneira como foram?

Questões como estas deram origem a uma segunda vertente da epistemologia feminista: a perspectiva feminista. Esta abordagem, grandemente influenciada pela teoria do conhecimento marxista (que não foi, no entanto, capaz de perceber o gênero como uma dimensão fundante do sujeito cognoscente), parte do princípio de que todo conhecimento é gerado a partir de uma perspectiva particular. Além disso, argumenta que alguns sujeitos ou grupos sociais estão em melhor posição para perceber determinados aspectos da realidade do que outros. Os grupos subordinados (como a classe operária, para Marx, e as mulheres para as feministas) teriam uma espécie de “vantagem epistemológica” em relação aos grupos dominantes na medida em que seus interesses são, de alguma forma, mais básicos ou universais do que os desses últimos, que são sempre guiados por seus interesses particulares.

Juntas, essas duas vertentes deram origem às controversas “questões de mulheres”. Não me perguntem o que elas são, pois só o que me vem à mente são questões do tipo “como fazer baliza sem bater no carro da frente”, “como escolher uma marca de absorvente das prateleiras dos supermercados diante da infinidade de marcas que insistem em se multiplicar a cada dia” e coisas que tais... Controvérsias à parte, o problema é que ambas as tradições consideravam as mulheres como um grupo homogêneo de pessoas, concebido a partir das perspectivas das teóricas feministas brancas, de classe média e que moravam nos países centrais. Em outros termos, reproduziam justamente o que criticavam ao argumentar que o sujeito Iluminista vestiu um par de calças ao ser concebido pelos homens que dominavam as ciências e a filosofia.

Das críticas a esta concepção homogênea das mulheres, surge uma terceira vertente, bastante heterogênea, cuja ênfase está na diferença: o feminismo pós-moderno. As mulheres são grupos heterogêneos, marcados por dimensões como classe social, raça, etnicidade, nacionalidade etc. São diferentes, o que significa afirmar que não existe um sujeito “mulher”. Em termos mais gerais, esta ênfase na diferença visa negar qualquer possibilidade de se transcender a localização particular do sujeito do conhecimento, especialmente por meio da negação de idéias como universalidade, necessidade, objetividade, subjetividade, unidade, verdade e mesmo realidade. Considerar a diferença significa focar a particularidade, a contingência, a instabilidade, a ambigüidade, em resumo, negar as idéias mais caras ao Iluminismo. Mas será que colocar todas essas idéias sob suspeita não significa o fim de ideais como a emancipação via conhecimento? Como sair dessa encruzilhada?


Cynthia Hamlin

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Marx no País da Piada Pronta ou: de Onde vêm as Hipóteses?



Tomo emprestado ao humorista da Folha de S. Paulo, o Macaco Simão, a expressão que ele inventou para se referir ao Brasil: o “país da piada pronta”. E o que isso tem a ver com Marx? Já explico.

Pode-se dizer que há dois Marx. De um lado, o inspirador da “ditadura do proletariado”. Este, por causa do fracasso que foi a experiência socialista, faleceu. Mas há um outro Marx, o autor de um instrumental sociológico para se estudar as sociedades capitalistas. Esse Marx entrou na UTI em boa parte do mundo acadêmico, mas não exalou o último suspiro. De vez em quando, tem uma recuperação. A minha hipótese é a de que, aqui pelo Brasil, ainda tem muito futuro pela frente.

Pensador do século XIX, Marx foi contemporâneo da revolução industrial na Inglaterra vitoriana, onde crianças de 12 anos chegavam a trabalhar 14 horas por dia em sinistras fábricas e no fundo de minas de carvão. É a realidade retratada em romances como o Oliver Twist de Charles Dickens. Pois bem. Ao longo dos séculos XIX e XX, essa realidade foi mitigada nos países capitalistas centrais por reformas que frearam a voracidade do capital e puseram determinados bens ao abrigo da pura exploração econômica. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a saúde e a educação, que se tornaram, pelo menos no que têm de básico, serviços públicos assegurados pelo Estado ao conjunto da população. Já aqui...

Tranqüilize-se o enfastiado leitor domingueiro. Não vou falar das indecentes filas do SUS ou das escolas públicas para onde nem os militantes de esquerda mandam seus filhos. Tudo isso é óbvio e batido. Quero falar de outro fenômeno: a escancarada mercantilização da saúde e da educação para quem pode pagar por esses serviços no Brasil. É aqui onde entra o Marx sociólogo.

Esse Marx ressuscitou na minha frente um dia desses, enquanto eu olhava um out-door e tive o que os sociólogos chamam de insight! Era um grupo de jovens alegres e remexendo-se como se estivessem dançando, não faltando uma gostosinha com os braços estendidos para o público e as mãozinhas dobradas para dentro como se estivesse chamando. Lembram aquele comercial da Caixa ─ “Vem pra Caixa você também”? Pois a moça era o retrato da exclamação final: “Vem!” Parecia a propaganda de um show dessa sociedade de festa permanente em que nos tornamos, menos o comercial de uma instituição de ensino superior. Pois era!

O insight virou hipótese. Ou melhor, remeteu-me a uma hipótese de Marx sobre o processo geral de mercantilização que se verifica nas sociedades capitalistas, onde “todas as atividades até então consideradas dignas de veneração e respeito” são despojadas de sua “auréola”, como está escrito no Manifesto Comunista. Relembrando uma bela expressão que o escritor Marshall Berman usou como título de um livro famoso, Tudo que é sólido desmancha no ar. Com a hipótese na cabeça, comecei a olhar ao redor.

Foi quando notei um segundo out-door, onde havia também um bando de pessoas felizes. Mas não saltitavam, não eram jovens e estavam vestidos com uma espécie de bata, tendo na cabeça uma espécie de touca. Parecia um time de padeiros fazendo um comercial de macarrão. Mas a bata não era branca, era esverdeada. Foi só chegando perto que notei que era um grupo de médicos fazendo propaganda de um hospital!

Aí não parei mais. Comecei a observar comercias de televisão vendendo saúde e educação, bens que, noutras terras, estão protegidos da fantasia despudorada do mundo da publicidade. Uma faculdade, para tirar “clientes” dos concorrentes, anuncia a gratuidade na inscrição ao vestibular para alunos de outras escolas. Num hospital, um casal dá entrada sorrindo, como se estivesse se hospedando num hotel em Fernando de Noronha... E por aí vai.

E foi assim que, de pérola em pérola, cheguei a uma fórmula similar à do Macaco Simão: o Brasil é o país do marxismo pronto!


Luciano Oliveira (Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFPE)

sábado, 22 de setembro de 2007

Da Subordinação das Mulheres: Auguste Comte, John Stuart Mill e o Empirismo


Woman in Chains, por HeatherB, a partir da obra de Bouguereau:
"Retrato de Gabrielle Cot"

O século XIX testemunhou a ruptura intelectual de dois gigantes das ciências sociais, Auguste Comte e John Stuart Mill, com base na discordância política sobre um tema considerado por Comte como a base mais elementar de todas as hierarquias sociais: a subordinação das mulheres. Profundo admirador do positivismo comteano, Mill, então um jovem estudante, foi a Paris participar do Curso de Filosofia Positiva, dando início, em 1841, a uma correspondência na qual temas de interesse mútuo eram discutidos. Esta correspondência foi editada e publicada por Kenneth Thompson em 1976 (Auguste Comte: The foundation of Sociology. Londres: Nelson).

Carta vai, carta vem e, cerca de dois anos mais tarde, tornou-se claro que a posição dos dois pensadores era inconciliável: para Comte, a desigualdade entre os sexos era inata e desejável, devendo ser mantida; para Mill, culturalmente condicionada, indesejável e deveria ser mudada. O que parecia um debate temático marginal revelou divergências metodológicas profundas, o que explica, em parte a influência limitada do positivismo na Inglaterra, assim como o abismo existente entre o empirismo britânico e o francês.

Como ocorre em todo debate político, as posições dos dois pensadores baseavam-se em uma série de pressupostos metodológicos que iam se tornando mais explícitos à medida que a correspondência prosseguia. O conservadorismo político de Comte justifica-se por uma série desses pressupostos, sendo que o principal refere-se ao princípio do que ele chamava de “estática social”, isto é, a investigação das leis de ação e reação das diferentes partes do sistema social, de acordo com o qual “deve sempre haver uma harmonia espontânea entre o todo e as partes de um sistema social, cujos elementos devem inevitavelmente, mais cedo ou mais tarde, combinar-se de um modo inteiramente conforme sua natureza” (citado em Thompson, 1976: 91). Para o autor, se pudesse ser demonstrado empiricamente, via leis de sucessão (ligadas ao princípio de “dinâmica social”), que dois fatores sempre se relacionaram de uma forma específica, então, de um ponto de vista da co-existência desses fatores, sua relação era necessária e imutável. Além de apoiar-se na dinâmica social, ou no estudo das “leis de sucessão”, as leis de co-existência entre os sexos foi ainda fortalecida com base na “comparação com animais inferiores” (um sub-método do método comparativo de Comte). Isto porque, para ele, a subordinação das mulheres, que supostamente ocorria em todas as sociedades, deveria apontar para uma inferioridade orgânica, algo que ele supostamente confirma ao estabelecer que em todo o reino animal o sexo feminino é anatômica e fisiologicamente constituído em uma espécie de “infância radical”. Este conjunto de supostas leis biológicas e sociais forneceu a base para a sua afirmação, numa carta escrita a Mill em 5 outubro de 1843, de que “qualquer pessoa que seriamente goste das mulheres como algo além de brinquedinhos deliciosos” ainda não chegou ao estágio positivo ou científico de pensamento, um estágio que, no seu Curso de Filosofia Positiva era ainda chamado de “viril”. Nesta mesma carta, Comte (Ibid: 203) enumera as conseqüências do que ele considerava a “inferioridade natural” das mulheres:

Sua característica incapacidade para a abstração e o argumento, a quase completa impossibilidade de deixar de lado inspirações passionais em operações racionais [e que] devem continuar indefinidamente a impedi-las de alcançar qualquer nível elevado na organização das coisas humanas, não apenas na ciência e na filosofia ..., mas também na vida estética e mesmo na vida prática ... [Elas] são radicalmente incapazes de qualquer governo mesmo das questões domésticas, a menos que sejam de natureza secundária. Em nenhuma esfera elas são aptas à direção ou execução; elas são essencialmente capazes apenas de dar conselhos e modificar os planos de outras pessoas ...

A perspectiva essencialista e, por que não dizer, misógina, de Comte apóia-se em uma concepção de lei causal de base empirista (humeana) segundo a qual leis causais referem-se a “conjunções constantes entre eventos”, ou seja, a eventos que ocorrem juntos, um depois do outro, numa ordem determinada (sempre que uma causa A ocorre, segue-se um efeito B). Assim, um determinado processo ou estado de coisas deveria ser explicado por leis de sucessão ou por leis de similitude que basicamente afirmam que “as coisas são assim porque sempre foram assim”. Em outros termos, as mulheres são consideradas inferiores porque se observa este fenômeno em todas sociedades (e na maioria das espécies conhecidas). De acordo com a perspectiva de Comte, uma regularidade deste tipo seria suficiente para estabelecer a existência de uma lei, e leis só são passíveis de modificação “em termos de sua velocidade” (Ibid: 97), pois não se pode ir contra a natureza das coisas. Neste sentido, a “inferioridade” das mulheres é concebida como algo fixo, imutável e, devido à sua concepção de estática social (a tal “harmonia” entre as partes de um todo), desejável. No que diz respeito à concepção de explicação de Comte, causas são concebidas como condições suficientes e necessárias para a ocorrência de um dado efeito (se A, então B; ou, se mulher, então inferior).

A discordância de Mill em relação às idéias de Comte sobre as mulheres assume, inicialmente, a forma de divergências sobre a doutrina da estática social. Para Mill, dada a independência relativa da estática social em relação à história, a passagem desta doutrina para o estágio positivo demandaria o desenvolvimento de uma ciência subsidiária, a etologia, ou a “teoria acerca da influência das várias circunstâncias externas, sociais ou individuais, sobre a formação do caráter moral e intelectual” (citado em Thomson, 1976: 206). Para Mill, portanto, a menor habilidade das mulheres em atividades intelectuais como a ciência só poderia ser explicada ao se levar em conta “as diferenças de educação e posição social” entre homens e mulheres, pois,

quer as mulheres sejam inferiores ou não em termos de sua capacidade de esforço intelectual prolongado, não há dúvidas de que não há nada em sua educação que seja arranjado de forma a desenvolver nelas essa capacidade ... [Para] a grande maioria das mulheres, a obsessão perpétua com os cuidados diários da vida doméstica, algo que distrai a mente sem ocupá-la, não provê qualquer trabalho intelectual que demande isolamento físico ou mesmo uma aplicação contínua (Ibid: 200)

Para Mill, o que está implícito na idéia de que não há necessidade na inferioridade das mulheres é uma concepção não determinista de lei causal segundo a qual as causas de um evento ou de um fenômeno podem ser contrariadas por outras causas, impedindo assim sua efetivação. Em uma passagem do seu The Logic of the Moral Sciences de 1872 (Londres: Duckworth, 1987 [1872]: 26), que poderia ter sido escrita em resposta ao determinismo fatalista de Comte, ele afirma que “a doutrina da necessidade ... está muito distante do fatalismo... Um fatalista acredita, ou meio que acredita (já que ninguém é um fatalista consistente), não apenas que o que quer que esteja prestes a ocorrer será o resultado infalível das causas que o produzem ... mas, além disso, que não faz sentido lutar contra elas”.

Embora Mill ainda parta de uma concepção humeana de lei como conjunção constante entre eventos, a ocorrência da causa é considerada uma condição necessária, porém não suficiente (como em Comte) para a ocorrência de um determinado efeito. Daí a ausência de determinismo (ou fatalismo, como ele prefere). O que está implícito em sua “explicação” para a “inferioridade das mulheres” seria a ausência de condições (como educação e participação das mulheres na vida política) que possibilitassem o pleno desenvolvimento de suas capacidades. A importância das considerações metodológicas de Mill pode então ser interpretada como apontando para um conjunto de práticas discriminatórias que necessitam ser explicadas (e modificadas).

Para os empiristas, explicar significa, na maioria dos casos, estabelecer uma conjunção constante entre dois eventos: um evento A precede e é regularmente seguido de B, e nós compreendemos A como, de alguma forma não especificada, gerando B. A questão que fica sem resposta, e que é central à própria noção de explicação, é como A pode gerar B, como as causas têm a capacidade de gerar determinado estado de coisas. Em outros termos, explicar significa compreender o que ocorre num nível mais profundo do que o nível dos fenômenos e dos eventos, descobrir uma combinação dos mecanismos por meio dos quais determinados eventos ocorrem ou não ocorrem. Por exemplo, não se pode explicar por que as mulheres menstruam simplesmente estabelecendo uma conjunção constante entre o corpo feminino e a menstruação (se mulher, então, geralmente menstruação), mas deve-se inventar ou imaginar uma história causal que diga respeito às capacidades ou poderes da estrutura genética, hormonal, anatômica, psico-social etc relativos às mulheres e sua interação com o ambiente para, posteriormente, checar-se a adequação empírica desta história causal.

Diferentemente de Comte, no entanto, para Mill, o problema concreto era o de saber como uma determinada organização social (que restringia as mulheres à dimensão doméstica da vida social) gerava um grupo de pessoas “intelectual e moralmente inferior”, o que quer que isso significasse para ele. De maneira significativa, esta questão era esclarecedora e lançava luz em hipóteses novas, ou pelo menos não triviais para a maioria das pessoas e permitia transcender, em larga medida, a visão estreita de explicação causal dos empiristas. Nos dias de hoje, a questão é consideravelmente mais ampla e, em vez de uma suposta inferioridade, o problema é melhor colocado em termos de desigualdades sistematicamente reproduzidas, como menor renda média em relação aos homens para todos os níveis de escolaridade considerados (em especial para os mais altos); maior sujeição à violência doméstica, ao assédio sexual e a diversas formas de discriminação direta; dupla jornada de trabalho, menor participação em cargos políticos e no mercado de trabalho primário etc. Com a complexificação (e melhor especificação) dos problemas, as respostas requeridas também tornaram-se consideravelmente mais complexas e uma explicação baseada na conjunção constante entre eventos tem sido corretamente questionada por todas as tradições pós-positivistas e pós-empiristas, especialmente aquelas que, de uma maneira ou de outra, sofreram a influência da chamada “virada lingüística” nas ciências sociais. De forma geral, o que se tem considerado é que “explicações” desse tipo não esclarecem nada acerca das questões que realmente importam para as ciências sociais (como as que dizem respeito ao caráter eminentemente significativo e/ou socialmente construído dos fenômenos sociais), são triviais, ou são manifestamente falsas (dado que tais fenômenos não obedecem a regularidades como as que podem ser observadas no domínio natural).

De fato, assim como ocorre com diversos dos escritos substantivos de Durkheim, muitos dos princípios metodológicos defendidos por esses autores não puderam ser aplicados aos seus próprios estudos. Ao tentar explicar a relação entre uma determinada forma de organização social e a submissão de um determinado grupo de pessoas, Mill introduz uma série de pressupostos filosóficos e políticos relativos à moral à justiça, assim como outros relativos às motivações e aos significados (não diretamente acessíveis à observação empírica), que possibilitam uma explicação mais ampla do fenômeno do que seria possível a partir de uma explicação causal em moldes empiristas puros. Claro que, em certo sentido, o mesmo se aplica a Comte: afirmar a “infância radical” das fêmeas de todas as espécies dificilmente consiste na descrição de um fato empírico. No entanto, ainda que tanto Comte quanto Mill demonstrem a impossibilidade da aplicação consistente da concepção empirista de causa defendida por eles, diferentemente do primeiro, Mill tenta, ainda que de forma incipiente, demonstrar o porquê da conjunção mulheres, por um lado, e “inferioridade” racional e moral, por outro. Na verdade, ele redefine a questão, que passa a ser colocada em termos da sujeição das mulheres aos homens. Como ele afirma em A Sujeição das Mulheres (São Paulo: Ed. Escala, 2006: 31-32) escrito por ele e Harriet Taylor (e só assinado por ele!),

Todas as causas, sociais e naturais, se unem para tornar improvável uma revolta coletiva das mulheres contra o poder dos homens. Elas estão em uma posição tão diferente de todas as outras classes subjugadas, que seus senhores exigem algo mais do que seu serviço efetivo. Os homens não querem unicamente a obediência das mulheres; eles querem seus sentimentos. Todos os homens, exceto os mais brutais, desejam encontrar na mulher mais próxima deles, não uma escrava conquistada à força, mas uma escrava voluntária; não uma simples escrava, mas a favorita. Portanto, eles colocam tudo o que for possível em prática para escravizar suas mentes. Os senhores de todos os outros escravos contam com o medo para manter a obediência: ou o medo deles mesmos, ou o medo religioso. Os senhores de mulheres queriam mais do que simples obediência e eles usavam a força da educação para atingir seus propósitos.
Simples conjunção constante entre eventos? No way, José...

A ser revisado.

Cynthia Hamlin

terça-feira, 18 de setembro de 2007

O Romantismo e as Ciências Sociais


"O Andarilho sobre as Brumas",
de Caspar David Friedrich

No momento, estou iniciando na graduação de Ciências Sociais da UFPE um curso sobre modernismo e pós-modernismo. Não estou muito interessado naquilo que Berman chama de modernidade sólida, ou seja no império da razão, da disciplina, do registro contábil, da previsibilidade, mas naquilo que ele chama visão diluidora da modernidade, e que Scott Lash chama modernidade estética, e eu, simplesmente, modernismo. A teoria sociológica estabeleceu desde muito cedo um diálogo produtivo com os movimentos estéticos que se posicionaram de modo crítico ou laudatório em relação ao mundo moderno, industrial.

Essa constatação, todavia, nunca é levada muito a sério, pois no mais das vezes os sociólogos estão interessados em demonstrar a solidez de seu conhecimento, o quanto ele é sisudamente científico. Muito de passagem, costuma-se falar, por exemplo, do impressionismo simmeliano; não seria, de fato, difícil apontar na obra de Georg Simmel um vitalismo que o aproxima da ênfase que o Impressionismo dá ao movimento como traço não apenas da vida moderna, mas de sua estética. O antiformalismo simmeliano, seu ensaismo também são elementos que o conectam a este tipo de estética. Simmel parece, portanto, ser uma ovelha desgarrada entre os clássicos - já se falou, para poder dar coerência a uma visão pobre, mas corrente da sociologia clássica, que ele seria pós-moderno temporão (Cf Weinstein, D. e Michael Weinstein. 1993. Postmodern(ised) Simmel).

Por tudo isso, acredito que seja frutífero reconhecer a enorme importância que o romantismo tem na consolidação de uma vertente interpretativa nas ciências sociais. Primeiro poderíamos falar de algumas referências comuns. Quem já leu o Discurso sobre os Fundamentos e a Origem da Desigualdade entre os Homens poderá de imediato retirar algumas conclusões. Romântico em sua idealização de uma infância perdida da humanidade, em sua crítica radical ao processo civilizador, Rousseau é neste livro uma referência duradoura para as ciências sociais. Derrida, por exemplo, observa a influência deste livro na obra de Lévi-Strauss, em seu carinho pelo bom selvagem. Gerd Bornheim, acredita que Rousseau (ou uma interpretação simplificada de sua obra) seja uma influência mais direta no proto-romantismo alemão, mas especicamente no movimento Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto). A busca de uma relação mais direta do homem com a natureza, a valorização do irracional, do genial ( concebido como força não racional), são alguns valores que aproximaria Rousseau do proto-romantismo alemão.


Introduz-se assim a crença, à qual todo o Romantismo permanecerá fiel, de que a irracionalidade é uma força positiva: o caos constrói, compõe. Daí o tema do demoníaco no Sturm und Drang, que leva a considerar o gênio o valor máximo. O gênio é o Kraftmensch, o homem habitado pela força da natureza, que faz dele um demiurgo apto a manifestar todas as suas possibilidades, o infinito da pulsação cósmica que traz consigo e o anima. Antecipando Nietzsche, é caracterizado como uma espécie de super-homem. A ordem, a virtude, a moral são substituídas pelo caos criativo, pela força do gênio, pelas paixões vitais além de toda medida (Bornheim G. In Guinsburg, O Romantismo, p. 82)

Uma outra vertente do Romantismo alemão, parte, não de Rousseau, mas do Iluminismo kantiano. Lembremos, a propósito, de Schleiermacher, célebre por sua contribuição na consolidação de uma hermenêutica científica, e que esteve muito próximo dos círculos onde transitavam figuras destacadas, tais como os irmãos Schlegel ou Novalis. Se esses pensadores colocam-se sob a influência kantiana tal como ela é processada por Fichte, eles não compartilham com o pensador de Könisberg seu entusiasmo pelas Luzes, seu otimismo em relação a começar um mundo novo, de realização do pontecial de liberdade do ser humano, a partir de uma ruptura com o passado. O Iluminismo pretendeu ser um movimento de ruptura, a inauguração de uma ordem social inteiramente racional, cuja legitimidade teria que ser constantemente conquistada no presente do diálogo entre os seres humanos. Em contraste, e em oposição, Novalis, Schleiermacher ou os Schlegel viam a tradição como um manancial importante de reflexão e produção artística.

Para o romantismo, o passado é fonte de inspiração, e à idéia de uma sociedade racional, ele opõe a emoção como elemento de coesão social e de conexão com este passado. A hermenêutica moderna deve muito a esse movimento artístico. Citarei um trecho do livro O Romantismo, de J. Guinsburg: "Assim, porque tudo se faz "história" no Romantismo, a História se faz então "realidade", integrando historicamente o estudo do desenvolvimento dos povos, de sua cultura erudita e de seu saber popular (folclore), de sua personalidade coletiva ou espírito nacional, de suas instituições jurídicas e políticas, de seus mores e práticas títpicas, de seus modos de produção e existencia material e espiritual, cada vez mais nas linhas de um tempo cada vez mais mítico ou idealizado" (1978, p. 18)

O Iluminismo propunha a idéia de um cidadão abstrato e racional como fundamento de seu projeto de sociedade, um projeto universalista. O romantismo, por outro lado, reivindicava a necessidade de localizar estes indivíduos no contexto de suas comunidades, de suas nações, da história de suas nações. O romantismo foi sem dúvida um fermento importante na formação de uma tradição historicista dentro das ciências sociais. O seu cosmopolitanismo, como vimos na citação acima, dedicando grande atenção às diferenças culturais e a história dos povos, constitui elo entre o historicismo e o romantismo.

Mas esses são também elementos que ligam o romantismo a uma tradição interpretativa nas ciências sociais. Toda a tradição interpretativa de Weber, Simmel, Dilthey seriam impensáveis sem a confluência do historicismo, romantismo e da hermenêutica. A procura dos elementos que configuram o espírito de um povo, ou de uma época, é romântico, antes que seja apropriado por Hegel, ou pela hermenêutica de Schleiermacher ou Dilthey. A busca de uma compreensão emocional do passado, um certo culturalismo, também o são - assim como a ênfase analítica em um sujeito localizado espacial e temporalmente.

E depois eu reviso e amplio isso.
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Jonatas Ferreira

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Experiência, Positivismo e Fenomenologia



Vão aí alguns apontamentos preliminares sobre a confluência desses três temas:

A experiência sistemática tem constituído ao longo de dois séculos o recurso mediante o qual as ciências procuram comprovar, validar hipóteses de trabalho. Sem ela o conhecimento ameaça transformar-se em mero exercício retórioco, vazio conceitual. Sobretudo na tradição positivista, o recurso à experiência é oferecido como antídoto contra visões parciais da realidade, contra o senso comum, contra a ingerência de interesses políticos, religiosos, morais na apreciação da realidade. "O futebol é uma paixão nacional; A cultura brasileira é a cultura do jeitinho". Será mesmo? A experiência nos forneceria a comprovação empírica de nossas pressuposições, condição fundamental da legitimação e do progresso do conhecimento científico. Se a ciência procura controlar a realidade de forma racional, é importante apropriar-se empiricamente do mundo, descobrir seu funcionamento. Sem tal apropriação esse controle seria impossível.

Pois muito bem. Desde a fenomenologia de Husserl, este alicerce parece afundar velozmente em um terreno que descobrimos ser movediço. O que é a experiência afinal? O que pode ser a experiência para que ela seja apreensível pela consciência e passível de constituir um critério de certificação acerca dos fenômenos? Essa linha de questionamento filosófico recusou à experiência o status de a priori. Afirmava a necessidade de seu esclarecimento epistemológico sob pena de vermos os esforços de universalização e de objetivação do conhecimento científico darem lugar a polêmicas intermináveis e infrutíferas. É preciso chegar a um consenso acerca daquilo que constitui esta pedra fundamental do edifício científico.

Por esse caminho Husserl descobre que a consciência não se posta de modo passivo, como mero receptáculo de impressões sensíveis do mundo exterior. A consciência elabora ativamente a condição dessa sensibilidade e portanto da experiência possível. Tome um exemplo trivial. Você anda no campo durante uma noite sem estrelas e num relance percebe a presença de um cavalo negro perto de uns arbustos. Olhando mais detidamente, percebe que não há cavalo. A forma de alguns galhos e a pouca visibilidade induziu você ao equívoco. Como é que esse engano seria possível se nossa percepção da realidade fosse passiva, se nossa consciência apenas registrasse as impressões vindas do mundo sensível? Essa passividade é, de acordo com Husserl, um pressuposto básico do empiricismo positivista. Porém, a não ser que seu aparelho de percepção tivesse vindo com defeito de fabricação, o engano em questão seria impossível. E se esse tipo de defeito tivesse de fato ocorrido, dificilmente uma retificação do engano ocorreria prontamente. A consciência só se engana porque ela é “intencional”, o que vale dizer: ela projeta-se de modo ativo em direção ao mundo que nos cerca. A fenomenologia se propõe, então, a entender a estrutura dessa atividade.

As considerações de husserl levariam necessariamente a uma nova forma de considerar, não apenas a experiência, mas outros conceitos ou noções-chave do pensamento científico moderno, tais como a percepção ou a sensação. Da mesma forma que a noção de experiência, a percepção e a sensação não são objetos de uma consideração epistemológica sistemática por parte do pensamento positivista . Esse é o ponto de partida da contribuição de um outro fenomenólogo importante: Maurice Merleau-Ponty. E o que é radical na fenomenologia do célebre francês é considerar o corpo humano como questão não resolvida, não suficientemente tematizada, pelo pensamento científico - precisamente quando as ciências da vida parecem tê-lo desnudado de modo tão completo. Maurice Merleau-Ponty propõe extender aquilo que Husserl já empreendera com relação à consciência e à experiência ao terreno do corpo e da percepção. O que daí resulta é um humanismo radical em que entender a possibilidade do mundo para o ser humano é entender como o seu ser desabrocha como corpo. Mas já há informação demais aqui. Merleau-Ponty merece alguns posts só dele.
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Jonatas Ferreira

Ontologia, Epistemologia e Avareza



Jonatas Ferreira

Duas alunas me pararam no corredor esta semana. Estavam com um ar tão aflito que, antes de mais nada, resolvi me acautelar: “Não empresto dinheiro, não dou conselhos sentimentais, não vendo à prestação. Fora isso, diga lá”. Passado o impacto do primeiro contato, elas resolveram colocar a questão: “É que a gente queria saber como diferenciar ontologia de epistemologia”. Se é esse o problema, vamos lá. Dei a seguinte explicação, que acredito possa ser útil pra você também, oh leitor(a).

Em linhas gerais, podemos dizer que tanto a epistemologia quanto à ontologia são dois caminhos definidos pela filosofia para pensar a verdade: sua possibilidade, melhores caminhos, sua relação com o ser humano. Talvez uma pequena digressão etimológica tenha seu valor aqui. Ambas as palavras derivam do grego: epistemologia é uma composição tardia (século XIX) das palavras episteme (επιστήμη), que diz respeito a um conhecimento sistemático - oposto à mera opinião, ou doxa (δόξα) - e logos (λόγος), ou seja, conhecimento, discurso. Ontologia, por seu turno, resulta de ontos (ὄντος), que significa ser, mais a palavra logos.

Essas duas palavras determinam duas formas bem distintas de nos postarmos diante da verdade. No grego clássico, segundo Heidegger, existem dois termos que designam o que chamamos de verdade, cada um deles sinalizando um desses caminhos. A verdade tanto poderia ser indicada pela palavra homoiosis, que significa literalmente, ‘ir para a igualdade’ - traduzida para o latim, virou adequatio, adequação em português -, quanto pela palavra aletheia (ἀλήθεια), que significa desvelar o ser. Suponho também que essa palavra signifique algo como ‘desesquecer’, pois o Lethe era o rio do esquecimento na Grécia Clássica - não seria fortuito, portanto, que a filosofia em Platão é um exercício de 'desesquecimento', de revelação de uma verdade sepultada por nossos inúmeros compromissos da vida cotidiana.
Heidegger acreditava que a preocupação fundamental da homoiosis, da adequatio ou adequação, é procurar a correspondência entre conceito e a realidade. E esse é bem o caminho da epistemologia. Já a ontologia, buscando o desvelamento do ser, a essência do ser, se voltaria de forma mais decidida para esta segunda estrada de pensar a questão da verdade, ou seja, para o desvelamento da essência do ser.

Mas chega de etimologia. Essa não é mesmo a minha praia. O fato é que podemos dizer que a modernidade é marcada por uma redução da verdade à primeira acepção do verdadeiro. A ciência moderna está mais preocupada em controlar o mundo do que em descobrir a essência dos seres. Lembremos de Bacon ou de Comte a esse respeito. A ciência moderna deve abandonar a verborragia escolástica, as perguntas que não podem ser respondidas de forma categórica e dedicar-se ao conhecimento útil, ao controle do mundo físico ou social. Para realizar tal propósito seria necessário focar os esforços da filosofia na análise na correspondência entre conceito e realidade, entre o que julgamos ser verdadeiro e a sua comprovação empírica. 'O proletariado é a classe que libertará a humanidade'. Seria isso mera doxa, senso comum, ou algo que poderia ser provado, um 'conceito' passível de comprovação científica? De um modo geral, então, podemos dizer que a epistemologia procura entender como o conhecimento do real poderia se tornar seguro, certo, categórico. Isso sempre demanda verificação, comprovação, experimentação. Este é o caminho da epistemologia: não se quer investigar a essência do ser, mas aprender de modo seguro como se pode controlar o real.

Para que tal forma de conhecimento da verdade (epistemologia) se tornasse hegemônica no ocidente, algumas transformações culturais foram necessárias. Há muito o que dizer aqui, mas vou me restringir a mencionar a crise da cultura medieval como algo fundamental neste processo. De fato, sem um Deus que fosse a garantia transcendental de todo conhecimento, como seria possível se dedicar à questão da essência do ser. Por outro lado, o estado de insegurança em relação à possibilidade de conhecer de modo categórico a realidade (o sol gira em torno da terra ou será a terra que gira em torno do sol?) faz com que a filosofia se dedique a inquirir sobre o que pode de fato o ser humano conhecer. Não é isso que a filosofia crítica, ou seja, Kant, busca com tanto afinco responder? Não é esse já, mesmo que de forma incompleta, o impulso que move a dúvida sistemática cartesiana?
Ambos os filósofos, cada um a seu modo, dedicam-se à questão que funda às questões que fundam a epistemologia: o que podem os seres humanos conhecer com certeza? Qual o critério de certificação deste conhecimento? As respostas são simples e modernas. Podemos conhecer aquilo que nos tornarmos capazes de transformar e o sucesso dessa transformação é o critério de veracidade. Mas uma vez podemos retornar a Bacon e Comte aqui, como de resto a toda ciência positiva que transforma o ocidente a partir do século XVIII.

O retorno a um projeto ontológico terá de aguardar precisamente uma crise na cultura moderna. Não é fortuito que a filosofia Heideggeriana, assumidamente uma ontologia radical, emerge entre as duas guerras mundiais. Foi preciso que nos perguntássemos se não havia algo de errado com a ciência moderna, e seu projeto de controle do mundo, para que um retorno à questão da verdade se tornasse urgente. Mas essa é uma outra história...

Bem, as alunas de que falei no começo desse texto saíram felizes da vida com essa explicação. E você? Ah, você é exigente demais...
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Jonatas Ferreira é o autor desta pérola não revisada.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

O que é Metodologia (III)

A metodologia não se interessa apenas pelas concepções de realidade social (a ontologia social), mas também pela forma como esta realidade é conceituada (em parte, o papel da teoria) e como pode ser conhecida (papel da epistemologia). Como nem sempre os cientistas sociais têm uma ontologia explícita ou mesmo num nível consciente, reflexões teóricas e epistemológicas podem ajudar a esclarecer pressupostos ontológicos. Na verdade, é muito freqüente a negação de uma dimensão ontológica por parte de alguns autores. Muitos chegam a afirmar que as questões ontológicas são muito “abstratas” e não levam a lugar algum: é como se os que se preocupassem com isso estivessem no meio de uma luta quixotesca contra quimeras. Em casos como este, a ontologia deve ser inferida, em grande medida, de posições teóricas e epistemológicas.


Se a ontologia tem como questão principal “o que é isso?”, a epistemologia procura responder a pergunta “como posso conhecer isso?”. O problema é que para responder a segunda pergunta, o pesquisador deve ter alguma concepção, por minimalista que seja, do que é a realidade que busca conhecer. Assim, por ex., uma epistemologia empiricista radical, que defende que a verdade só pode ser alcançada por meio da observação empírica, tende a pressupor que a realidade consiste apenas de objetos observáveis, todo o resto sendo “apenas nomes”. Dado que tudo o que é observável são objetos singulares, atômicos, surge aí uma afinidade com uma ontologia nominalista nas ciências sociais. No outro lado do espectro (e existem muitas posições intermediárias), os racionalistas, ao defenderem que a razão é um caminho seguro para a construção do conhecimento, podem atribuir um status de realidade a coisas não observáveis, como essências (númenos) por trás de aparências (fenômenos), embora os autores difiram acerca da possibilidade de se conhecer essências – o que significa que uma ontologia semelhante pode vir acompanhada posições epistemológicas distintas. Neste sentido ainda que não exista uma relação mecânica e direta entre posições ontológicas e epistemológicas, algumas posições se excluem mutuamente, e qualquer autor que faça uso de proposições conflitantes mostrará essas contradições em sua teoria.
Cynthia Hamlin

O que é Metodologia II

Como a metodologia se relaciona com a ontologia? De um ponto de vista mais estritamente filosófico, a ontologia é a parte da filosofia que se dedica ao estudo sistemático do Ser ou da existência. Para os nossos modestos propósitos, uma ontologia diz respeito ao conjunto de objetos que se considera reais. Uma ontologia social refere-se, portanto, àquilo que pode ser considerado real no domínio social: as coletividades, como as famílias, o estado-nação, as sociedades globais existem realmente, ou são simples conceitos criados com o intuito de falar de forma resumida sobre coleções de indivíduos?

As diversas tradições teóricas das ciências sociais fornecem respostas diferentes a essa pergunta. Para alguns (chamados "realistas sociais"), como Marx e Durkheim, por ex., as coletividades realmente existem e devem ser percebidas como algo distinto dos indivíduos que as compõem. Para outros (os "nominalistas sociais"), caso de Weber e de Popper, coletividades são meros agregados de indivíduos, e falar sobre a família, o exército ou o Estado são formas simplificadas de se referir aos homens e mulheres que os compõem. Outros autores consideram que apenas os pequenos grupos, como a família e pequenas organizações sociais têm uma existência real e não meramente nominal (são apenas “nomes”).

Por que isso interessa à metodologia? Ora, dependendo do que seja considerado real minha explicação recai sobre um ou outro elemento. Para nos atermos a dois casos paradigmáticos, Durkheim e Weber, um fenômeno social será explicado a partir de outro fenômeno social (coletivo ou holismo metodológico) ou a partir das motivações, razões e objetivos dos indivíduos que lhe deram origem (individualismo metodológico). Como nem sempre a ontologia social adotada é colocada de maneira explícita (ou pode ser para alguns objetos, mas não para todos), a metodologia tem aí uma tarefa importante.


Cynthia Hamlin

O que é Metodologia (I)

Metodologia pode ser definido como a avaliação crítica de todas as etapas envolvidas na produção do conhecimento científico. Deve ser diferenciada dos métodos e técnicas de pesquisa, que são uma espécie de tecnologia da pesquisa, um conjunto de normas, procedimentos, técnicas e instrumentos a serem utilizados na coleta e análise dos dados. Seria possível uma reflexão metodológica sobre métodos e técnicas de pesquisa? Será que aí as duas atividades se confundiriam? A resposta é “não”.

Uma analogia pode ser útil aqui. Podemos pensar nos métodos e técnicas como uma espécie de engenharia da pesquisa, pois é a partir deles que determinamos como devemos proceder, que tipo de “material” utilizar etc. Neste sentido, métodos e técnicas têm um valor normativo, isto é, dizem respeito ao “dever ser”: devemos optar pela enquete em vez da observação participante se queremos atingir um alto grau de generalidade em nossa pesquisa; pelo uso de documentos históricos em vez da observação direta se os sujeitos da nossa pesquisa já morreram etc.Já a metodologia não tem um valor normativo, mas descritivo: ela se refere ao que os pesquisadores realmente fazem (ou fizeram) em suas pesquisas, não àquilo que deveriam fazer. Claro que isso tem um impacto normativo na medida em que as reflexões metodológicas acabam por guiar a prática de pesquisa, mas não da mesma forma que os métodos e técnicas.

Poderíamos pensar nos metodólogos não como engenheiros, mas como “trabalhadores dos subterrâneos” da produção do conhecimento. Ao refletir sobre, por ex., a opção de um pesquisador pela enquete, o que interessa à metodologia é o que está por trás da importância atribuída à generalização: que concepção de sociedade (ou que ontologia social) possibilita a busca pela generalização? Que concepção de conhecimento (ou que epistemologia) está em jogo quando se tem preocupações desse tipo? Que tipos de teoria social informam uma análise de dados generalizáveis? Como essas questões sugerem, a metodologia tem relações com a ontologia, com a epistemologia e com a teoria.


Cynthia Hamlin