quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

A Natureza do General McArthur



Você quer saber o que é real, meu filho? Pula do vigésimo de cabeça na esperança de que tudo seja construto social para ver... Tenta comer um cento de manga-espada no intervalo de uma hora para ver o resultado... Come todos os quitutes - "passarinha", um delicioso "figado de alemão" - no Bar do Bigode e procura sustentar com o máximo de coerência que essa estória de disenteria é algo cultural... Procura fecundar teu parceiro gay e espera nove meses... O(A) leitor(a) vai desculpar a qualidade dos exemplos, mas grosso modo é deste tipo de argumento que nos valemos sempre que procuramos, eu e meu amigo, o general McArthur, pôr um limite a esse tal construtivismo que grassa as ciências sociais. No final das contas, o General é mais refinado que eu. “Teu anti-depressivo está funcionando bem? Então, há de haver algum limite pare esse tal culturalismo...”

O problema é que o que parece um argumento pragmático, não deixa de se valer de algumas pressuposições metafísicas que nunca emergem como tal – o que não é de espantar, já que estamos tentando nos concentrar em um argumento pragmático que nos livre da verbosidade gorda de uma certa tradição filosófica, sociológica. Há algo mais metafísico que o positivismo comteano? Sua inteção, entretanto, era nos livrar do blá-blá-blá da filosofia. Insatisfeito conosco, por antecipação, um tal Martin Heidegger escreveu um livro interessante nos idos de 1959. Li o Introdução à Metafísica há coisa de uns dez anos e me lembro um tanto vagamente do argumento do livro – o que é uma lástima, pois a obra é mesmo importante para a pesquisa que realizo no momento. Uma parte importante do livro, de qualquer modo, é dedicada à questão da diferença entre o conceito grego de physis e o conceito latino de natura. Se devemos pensar de modo sólido o que é metafísica (meta ta physis), raciocina Heidegger, devemos começar por inquirir acerca do mundo físico, uma vez que é ele que a pergunta “por que há seres e não o nada?” pressupõe. Essa pergunta filosófica fundamental (angústia que alberga - gostaram? - outras angústias importantes, como: por que eu devo morrer? logo eu...) pressupõe que há um fundamento para o que há, ou para aquilo que Heidegger chama de essentes. É esse fundamento que a palavra grega physis procura.

Em algum lugar do Introdução à Metafísica Heidegger se pergunta algo como: “O que a palavra physis denota? Ela denota um emergir auto-florescente (por exemplo, o florescer de uma rosa), uma abertura, um desdobrar, aquilo que se manifesta neste desdobrar e persevera e o sustém; em suma, o âmbito das coisas que emergem e permanecem”. (E aqui já percebemos que o General estava correto ao falar da incompetência de filósofos, cientistas sociais para a literatura: "o florescer de uma rosa?...")Para os gregos, então, o mundo físico é algo que se abre permanecendo em si mesmo; uma potência que emerge e se sustém. Lembram da definição de natureza que nos oferece Aristóteles? Está lá na Física: A natureza tem o seu princípio de produção em si própria - em oposição a um ser técnico, que tem o princípio de sua produção em outrem.

As questões metafísicas são aquelas que não podem ser respondidas por esse ou aquele ser natural, mas pela totalidade dos essentes. É essa totalidade que é pressuposta, de partida. Não prosseguirei adiante com o argumento heideggeriano, falta-me tempo para retomar o resto do livro e o ler com atenção. Mas para o que pretendo discutir aqui, já dá.

A verdade é que tanto o conceito grego de phyisis como o conceito latino de natura pressupõem essa totalidade, essa unidade dos seres cujo sentido procuramos descortinar pela filosofia, pela religião, pela ciência, pela técnica. Aristóteles, por exemplo, acreditava que essa totalidade estava cindida, em um mundo lunar e um mundo sublunar, e que as regras físicas que valiam para o primeiro âmbito, não valiam para o segundo. Newton propôs, em oposição a ele, a unidade de todo universo e a possibilidade de encontrar um denominador comum para todo o cosmos: a matemática. Em A Imagem da Natureza na Física Moderna, Heisenberg escreve a esse respeito o seguinte: "para Newton, o passo decisivo tinha sido constituído pela descoberta de que as leis da mecânica regem a queda de uma pedra são as mesmas que regulam o movimento da lua em torno da terra e podem, por isso, aplicar-se também à escala cósmica". E algumas linhas abaixo, ele prossegue: "Também a palavra "descrição" da natureza foi perdendo cada vez mais o seu significado primitivo de representação destinada a transmitir uma imagem da natureza tanto quanto possível viva e sensível; adquiriu, pelo contrário, cada vez mais o sentido de 'descrição matemática da natureza', isto é, uma compilação de informações sobre as relações e as leis da natureza, tanto quanto possível precisa, concisa e ao mesmo tempo compreensível". A partir daí os cientistas começaram a dizer que mesmo Deus, se quiser produzir algo no mundo físico, teria de se submeter as regras da natureza.

Mais recentemente, outro desconfiado com o conceito de natureza, e que não gosta muito de Heidegger, propôs que pensássemos se o real, e a natureza, teriam mesmo uma necessidade, uma razão oculta uma causa primeira. Em oposição a essa visão, Rosset propõe uma visão trágica do natural, onde o acaso, a contingência, seria tudo o que poderíamos ter. Na Antinatureza Rosset faz um trabalho muito interessante de mapeamento filosófico dessas duas visões básicas da natureza: uma visão cética, que encontraríamos em pensadores como Hume, Montaigne, para quem a natureza é contingência; e uma visão que propõe uma univocidade da natureza, um fundamento ou necessidade, que deveríamos procurar sob a complexidade da empiria - Platão é aqui a referência fundamental. Tenho que voltar a esse texto, mas acredito que para Rosset não haja nada como uma natureza – e não obstante não podemos abandonar simplesmente essa comodidade do pensamento e da linguagem. O que é importante, no entanto, é pensar que a cultura ocidental (permitam-me essa redução) vem há muitos anos negociando, não apenas o que é cultura, mas o que é natureza. E a negociação de um dos termos, o(a) leitor(a), deve intuir, é a negociação do outro. O que tradicionalmente é visto na sociologia como uma antinomia insuperável, apresenta-se sob essa perspectiva como o terreno de uma economia.

Mas aqui já estou entrando num terreno familiar para quem vem acompanhando meus posts neste Cazzo – ou seja, Cynthia e Arthur. Foucault, Agamben, Nikolas Rose, Negri, todos esses estão (esteve) envolvidos com um tipo de pensamento que parte da seguinte constatação: a natureza, o que ela vem sendo, vem se tornando, é um problema fundamental na definição do que a cultura pode ser. Por esse motivo eu tenho me dedicado a estudar as tais tecnologias da vida e as transformações epistemológicas, ontológicas, políticas que passam a ser supostas em algo tão simples como acreditar, por exemplo, que os sistemas vivos são determinados por instruções moleculares escritas num alfabeto cujas letras seriam: T,C,G,A. Para os que não são iniciados, essas são as bases nitrogenadas, cuja combinação determinam o genoma dos seres vivos.

A natureza, acredito, não é âncora para nada: ela é um, talvez O, espaço de negociação onde produzimos a cultura. Isso seria construtivismo? Apenas se acreditarmos que a cultura é algo imaterial. E, no mais, McArthur, sempre podemos testar nossas hipóteses vendo quanta Boêmia weiss podemos tomar numa noite – obviamente, a mesa redonda não há de ser no Bar do Bigode.
.......
Um tempo após a publicação desse post, estudando Judith Butler, onde essa discussão toda começou, leio as seguintes linhas:

"Pois se o gênero é tudo que existe, parece não haver nada "fora" dele, nenhuma âncora epistemológica plantada em um "antes" pré-cultural, podendo servir como ponto de partida epistemológico alternativo para uma avaliação crítica das relações de gênero existentes. Localizar o mecanismo mediante o qual o sexo transforma-se em gênero é pretender estabelecer, em termos não biológicos, não só o caráter de construção do gênero, seus status não natural e não necessário, mas também a universalidade cultural da opressão. Como esse mecanismo é formulado? Pode ele ser encontrado, ou só meramente imaginado? A designação de sua universalidade ostensiva é menos reificadora do que a posição que explica a opressão universal pela biologia?" (Butler, Problemas de Gênero, Civilização Brasileira, p. 67)

(por editar)
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Jonatas Ferreira

14 comentários:

Anônimo disse...

Hehe, grande texto, meu caro! Valeu pela referência... E teu blog, miserável?! A Realidade pede teu blog.

Anônimo disse...

E o tempo, General? Comecei a escrever algo no campo da ficção (apesar de seu comentário: nunca de um razoável cientista social um razoável ficcionista), mas falta-me o tempo. Em breve voltarei, dessa vez escrendo no blog de Zé da Goma. Abraço, Jonatas

Anônimo disse...

Interessante: tem lido Rosset?

Bem, bate com tua desconfiança com a "Natureza". Além do mais, sempre te achei trágico (hehe): possui a consciência trágica de um mundo também trágico. Por isso, vc gosta de festa (o pensamento trágico, ao privilegiar o acaso e o não-ser, é um pensamento da festa -- por isso, reitero a necessidade de se discutir a Natureza no carnaval!).

Rosset coloca que utilizamos a noção de natureza simplesmente para nos esquecermos da simplicidade caótica da existência, de nos afastar da espontaneidade efêmera e casual de cada coisa. A noção de natureza serviria para organizar, explicar um mundo que, no fundo, é "insano". Em suma, incompatível com um psiquiatra minimamente racional e que gosta de eletroconvulsoterapia (a eletricidade como forma de recompor a sanidade).

Vc conhece outro nietzschiano francês (esse é doido de pedra): Michel Onfray?

Outra coisa: já entrasse em contato com uma autora francesa que gosta muito dessa discussão sobre natureza e ciência (tecnologia): Isabelle Stengers? Uma colega dela, que gosto muito, Judith Schlanger, tem um livro sobre "as metáforas do organismo" e as suas relações com o pensamento romântico. Claro, discutir "organismo" é discutir Natureza, daí o interesse.

Le Cazzo disse...

Vai se meter com Jonatas, Artur! Ele é a prova viva de que Lacan estava errado: o dono do cazzo é também o dono do falo. Pelo menos por aqui.

Cynthia

Anônimo disse...

Eu morro de medo: ele sabe dançar. E o dono do falo é o dono da voz -- vote!

Le Cazzo disse...

Boa idéia. Esse cazzo está ficando muito falogocêntrico. Acho que vou postar uma enquete para ver se nossos leitores (eu, você e Jonatas)acham que devemos trocar nossa nome para algo mais politicamente correto. Suspeito que estou em minoria, mas dada sua inveja das habilidades de Jonatas como dançarino, estou achando que poderemos fazer um conluio.

C.

Anônimo disse...

Já percebi um movimento para mudar o nome do blog. Bem, eu não o batizei... Só se foi o colega mutza que é metido a engraçado. E as tuas referências, McA. Não as conhecia. O próximo passo é me emprestar. Mas se valer a pena, eu compro.

Pois é: Rosset. A sacanagem é que depois que você aceita discutir a natureza e não apenas tomá-la como ponto de partida, você já está capturado: seja dionisíaco, apolíneo, mezzo pomba-gira-mezzo calabresa, heideggeriano, foucauldiano, não importa.

Tragédias: daí que eu e a colega Hamlin estejamos aproximado nossas comédias.

E sobre o falo: eu calo.

Anônimo disse...

ótimo o texto.

nunca pensei que "pensar a natureza"
pudesse ser tão produtivo para as ciências sociais.

quanto ao nome do blog, não acho que deve ser mudado, é muito engraçado.

Anônimo disse...

Obrigado, Pedro. Também gosto do nome, embora não tenha tido a idéia...

Le Cazzo disse...

É verdade, Pedro: Jonatas não teve a idéia, no sentido estrito do termo. Foi um mero ato falho, criticamente reapropriado por mim e (mais ou menos) endossado por Remo. Em resumo: um trabalho realmente coletivo.

Incidentemente, eu também gosto do nome, mas nada impede que um de nós se rebele de vez em quando.

Abraço,
Cynthia

Anônimo disse...

Adorei o blog, gostei também da identidade do mesmo.Quando eu li o texto( A natureza do general McArthur), fiquei surpresa em ver que o texto é da autoria de Jonatas Ferreira, mas tudo bem....achei o texto interessante, apesar de não ter um conhecimento aprofundado no assunto.Gosto de visitar o blog, pois ele possibilita ao leitor adiquirir conhecimento.=)

Anônimo disse...

Olá, Borboleta.
Por que você ficou surpresa? Obrigado pelos comentários.

Anônimo disse...

Desdenharam do Ferreira, o Jonatas! Mas eu sempre soube que dos seus exemplos inusitados e da sua narrativa em caracol sempre saem conclusões interessantes...!

Quanto ao que Cazzo, ótimo nome! Mas nada é estático (pensemos a natureza, portanto)... uma pilhéria nova é sempre agradável!

Abraços, Rafael.

Anônimo disse...

Rafael,
Larga essa vida, rapaz.