terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Romeu, Julieta e Peter Winch



O Renascimento é geralmente considerado uma das principais fontes da noção moderna de indivíduo, concebido como uma essência interna única, autônoma, universal. Dentre os autores renascentistas, não há ninguém maior do que Shakespeare. De fato, já se afirmou que o bardo inglês foi o inventor da “natureza humana” e que a obra de Freud não era nada mais do que Shakespeare em prosa. Não sei se isto é verdade e deixo esta questão para os meus colegas psi resolverem. Mas o fato é que, sempre que leio Peter Winch, vem-me à mente a famosa cena do balcão de Romeu e Julieta. A minha hipótese é a de que, se Julieta tivesse lido A Idéia de uma Ciência Social, jamais teria dado aquele mole que hoje nos faz perceber a impossibilidade do amor romântico. Deixo vocês, por um instante, com os dois amantes, numa tradução portuguesa que encontrei na Internet, embora sem os devidos créditos ao tradutor ou tradutora:

“Jardim de Capuleto

(Entra Romeu)

ROMEU- Só se ri das cicatrizes aquele que nunca sentiu uma ferida. (Julieta aparece à janela) Mas... devagarinho! Qual é a luz que brilha através daquela janela? É o oriente, e Julieta é o Sol. Ergue-te, ó Sol resplandecente, e mata a Lua invejosa, que já está fraca e pálida de dor ao ver que tu, sua sacerdotisa, és muito mais bela do que ela própria. Não queiras mais ser sua sacerdotisa, já que tão invejosa é! As roupagens de vestal são doentias e lívidas, e somente os loucos as usam. Deita-as fora! Esta é a minha dama! Oh, eis o meu amor! Se ela o pudesse saber! O seu olhar é que fala e eu vou responder-lhe... Sou ousado de mais; não é para mim que ela fala. Duas das mais belas estrelas de todo o firmamento, quando têm alguma coisa a fazer, pedem aos olhos dela que brilhem nas suas esferas até que elas voltem. Oh! Se os seus olhos estivessem no firmamento e as estrelas no seu rosto! O esplendor da sua face envergonharia as estrelas do mesmo modo que a luz do dia faria envergonhar uma lâmpada. Se os seus olhos estivessem no Céu, lançariam, através das regiões etéreas, raios de tal esplendor que as aves cantariam, esquecendo que era noite. Vede como ela encosta a face à sua mão. Oh! quem me dera ser a luva dessa mão, para poder tocar a sua face.

JULIETA- Ai de mim!

ROMEU- Está a falar... Oh! continua, anjo resplandecente! Porque esta noite tu brilhas tão esplendorosamente sobre a minha cabeça como um alado mensageiro do Céu perante o olhar extasiado dos mortais, que escondem a íris nas pálpebras ao inclinarem-se para o contemplar quando ele perpassa por entre as nuvens indolentes e navega no seio do ar.

JULIETA- Oh! Romeu, Romeu! Mas porque és tu Romeu? Renega o teu pai, o teu nome; ou, se o não quiseres fazer, jura apenas que me amas e deixarei eu de ser uma Capuleto.

ROMEU (aparte)- Deverei eu continuar a ouvi-la, ou responder-lhe?

JULIETA- É apenas o teu nome que é meu inimigo; tu és tu mesmo, e não um Montecchio. E que é um Montecchio? Não é mão, nem pé, nem braço, nem rosto, nem qualquer outra parte que pertença a um homem. Oh! Sê qualquer outro nome! O que é que existe num nome? Aquilo a que nós chamamos rosa teria o mesmo perfume embora lhe déssemos outro nome! Assim, Romeu, ainda que não se chamasse Romeu, conservaria a mesma perfeição que agora possui. Romeu, renuncia ao teu nome, e em vez dele, que não faz parte de ti mesmo, apodera-te de mim!

ROMEU- Aceito. Chama-me apenas teu amor, e far-me-ei de novo baptizar. De ora avante nunca mais serei Romeu.”

A questão que deve me guiar aqui é uma espécie de exercício weberiano de explicação contrafactual (tá legal, tá legal, tô exagerando nos termos, mas façam uso de um pouco de caridade interpretativa pelo bem do argumento): Se Julieta tivesse lido Winch, e concordasse com a leitura que ele faz de Wittgenstein (essa é uma condição importante!), jamais teria acreditado que Romeu pudesse renunciar ao próprio nome sem modificar sua essência. Vejamos.

Peter Winch é um autor pouco explorado no Brasil, o que é uma pena, pois ele consegue relacionar um autor relativamente complexo, Wittgenstein, a questões sociológicas clássicas e bastante familiares aos cientistas sociais. Acredito que ele faça isso emprestando ao pensamento deste último um certo essencialismo lingüístico que não tenho certeza se Wittgenstein aprovaria. Apesar disso, acho que é um dos melhores caminhos para se introduzir a virada lingüística nas ciências sociais, especialmente para alunos de graduação.

De certa forma, Winch inverte um dos princípios de Wittgenstein acerca dos jogos de linguagem. Como argumentou Ernest Gellner (1974), se para Wittgenstein o significado das expressões corresponde ao uso que se faz delas, para Winch, o uso de expressões (e de qualquer outro comportamento social) é igual ao seu significado. Colocando em outros termos, o que Winch se propõe é a explicar as “formas de vida” em termos de jogos de linguagem.

Sua obra principal, A Idéia de uma Ciência Social, exemplifica um argumento anti-naturalista radical que afirma que o entendimento dos fenômenos naturais ocorre em termos de causas relativas a leis gerais, enquanto o entendimento dos fenômenos sociais se dá em termos de motivos e razões das ações dos indivíduos em uma dada comunidade. Mais tarde, depois que os críticos praticamente arrancaram seu couro, especialmente os de origem neo-kantiana, Winch admite que motivos e razões podem ser concebidos como causas, embora não como causas naturais regidas por leis gerais (veja, por ex., a introdução à segunda edição de seu livro).

O anti-naturalismo de Winch é defendido a partir de uma aproximação entre os objetos da filosofia e das ciências sociais, o que ele faz por meio de uma crítica às concepções usuais das duas disciplinas. Seu objetivo é poder afirmar que as ciências sociais são, na verdade, uma forma filosófica de se produzir conhecimento e que a filosofia, por seu turno, envolve o conhecimento da sociedade humana. O que é, então, filosofia, para este autor? Contrariamente a posições defendidas pelos positivistas do Círculo de Viena (e pelos positivistas, em geral) este ramo do conhecimento não deve ser concebido como um mero ajudante de obra das ciências, no sentido de eliminar as confusões lingüísticas relativas a determinados termos científicos - como nas infindáveis discussões dos autores do Círculo acerca do significado de termos teóricos como “solúvel”. Winch argumenta que a atividade filosófica não depende da atividade científica, pois enquanto as questões da ciência são empíricas, as da filosofia são conceituais. Assim, o problema da filosofia é muito mais amplo do que acreditavam os membros do Círculo, pois trata de esclarecer como o pensamento se relaciona com a realidade.

Seguindo Wittgenstein de perto, Winch retoma a idéia de que os limites da minha linguagem constituem os limites do meu mundo e afirma que “nossa idéia do que pertence ao mundo nos é dada pela linguagem que usamos. Os conceitos que nós temos definem para nós a forma de experiência que temos do mundo [...] O mundo é para nós aquilo que nos é apresentado por meio dos nossos conceitos” (Winch, 1958:15). Por esta razão, ele confere à epistemologia (teoria do conhecimento) uma dimensão central na filosofia, já que ela pode ser concebida como as formas pelas quais pensamos sobre o mundo. Sendo assim, a tarefa da filosofia é “descrever as condições que devem ser satisfeitas, caso existam critérios de compreensão” (Ibid.: 21) ou, reformulando em termos mais kantianos, descrever as condições de possibilidade do conhecimento.

(Continua...)

Cynthia Hamlin

Um comentário:

Anônimo disse...

Senti bastante significativo o 'dar mole'. E bom dia a quem tá achando tão acessível esse meio modo mal alcunhado blog, eis que pouco se lança - ou se quereria laçar - ponderações...? Sentir que tal expressão , no bem curto que ela soaria dar fôlego por seu turno envaidece a quem não quer, estufando pelos piores orgulhos a quem por outra medida, gostaria de holofotes para si. Volto na idéia, constou-me FORÇA para mim, da moleza nada finita - tá bom a quem queira, dê-se-lhe já finda - de que o facilitar em demasia e algo severo conduz a péssimos flagrantes; do tipo? Eis: preparamo-nos, cada parte, e enquanto indvdi estamos, somos um fortalecendo em convicções formadas um, ou vastos, todos. Isto lá não é de comunidades? Ou finalmente, escoimar por inteiro a orquestra, velhíssima cantilena, insulsa e laudatória de que ce tá sozinha/o porque assim entende bem ; e mal se lhe ocorrerá tendendo a forca, no guizo de que te desicumbiste mal na história toda. E lá foi deixada/o. ERa tão ruim ou menos fácil dá mole? À espreita, guisa e berlinda, tá FORA de meios sem alcance eletrônica modera enaltece ou cria apetites filosófico-espirituais? Boas preparações psico-espirituais. As socio não estão largadas. Nem o deverão se situar por tal. GRATO Dionisio, indvdi