quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Som, Fúria e Romantismo



Em posts anteriores, Jonatas esboçou alguns argumentos acerca da importância do romantismo como crítica aos excessos da razão iluminista. A ênfase desta na racionalidade, no pensamento dedutivo, nas metáforas mecanicistas (o universo como um grande relógio) etc. gerou uma concepção de conhecimento em que o controle da natureza era, senão seu fim último, pelo menos o mais importante. Ao questionar os limites desta concepção de conhecimento, o romantismo, especialmente em sua vertente filosófica, procurou estabelecer uma visão menos instrumental e reducionista tanto da natureza quanto dos seres humanos.

Certamente que a preocupação iluminista com o conhecimento foi mantida, mas a abertura para uma visão mais crítica, questionadora dos limites do entendimento humano, foi estabelecida especialmente via um deslocamento da centralidade conferida à epistemologia para questões estéticas, cuja ênfase recaía menos sobre a razão do que sobre a intuição, a sensibilidade e a liberdade. A estética, importa sublinhar, não deve ser entendida como uma oposição ao conhecimento, mas como uma espécie de complemento ou elemento essencial do mesmo. Neste sentido, o estudo da natureza continuava como um objetivo importante, mas esta era agora entendida como composta não apenas de objetos que se comportam de forma mecânica, mas de seres vivos, que sentem.

O paradigma da física mecânica (de Newton) foi amplamente substituído pelo da biologia, que experimentou um desenvolvimento impressionante no século XIX. As metáforas mecânicas – cujas origens remontam tanto às ciências físicas quanto ao teatro do século XVII – eram substituídas pelas orgânicas, que pressupunham a uma relação de complementaridade entre as partes de um todo qualquer. A idéia de dominação e controle da natureza é substituída pela de co-existência harmoniosa entre ela e a humanidade. As forças da natureza não eram mais concebidas como mecanismos ocultos a serem revelados pelo conhecimento (como quando vamos aos bastidores de um teatro e observamos os mecanismos que movimentam os adereços no palco), mas como forças que escapam ao nosso controle, estando muitas vezes além da nossa capacidade de cognição. O auto-entendimento e a ênfase no indivíduo também se tornam um foco central na medida em que, além de nos tornar cientes dos nossos limites, permitem recuperar as dimensões da sensibilidade, da intuição, da criatividade – ou pelo menos mostram a necessidade de se refletir acerca delas.

Estava ouvindo música e pensando sobre essas questões quando me dei conta de que a música é, de fato, um lugar privilegiado para se perceber algumas das características mais marcantes da estética romântica. Como não sou musicista, os limites da minha reflexão são muito estreitos, mas resolvi compartilhá-los assim mesmo. Escolhi dois compositores que permitem o estabelecimento de um contraste: Bach (1685- 1750) e Brahms (1833- 1897). Desconfio que a escolha poderia ter sido mais adequada pois, embora Bach seja do período clássico (que antecede imediatamente o romantismo na música), ele é mais propriamente um representante do barroco. Brahms, embora seja indiscutivelmente romântico, é considerado por alguns como o mais “clássico” dos românticos, tendo sofrido uma influência muito forte de Beethoven e de Mozart, ambos clássicos. Mas eu gosto dos dois, então está resolvido.

A peça de Bach que escolhi, uma das minhas preferidas, é uma cantata, composição para voz com acompanhamento musical e que, no caso de Bach, são também peças religiosas escritas para serem tocadas em missas. Uma característica da produção musical de Bach e que o distingue do resto dos compositores barrocos era sua notação detalhada. Antes dele, os compositores costumavam anotar apenas o esquema básico da composição e os músicos desenvolviam as firulas de praxe em cima deste esquema básico. Com isto, Bach deixa pouco espaço para a improvisação e empresta à sua música um caráter metódico, quase matemático (que também aparece na forma de suas composições).

Em contraste com isto, a música romântica tem aspectos muito distintivos. O concerto de Brahms que escolhi começa de uma forma bastante clássica. É quando o piano entra que podemos perceber melhor os aspectos românticos da obra. Ele foi escrito para Clara Schumann, pianista e compositora, casada com o mentor de Brahms, Robert Schumann, e por quem ele manteve um amor platônico por toda a vida (apesar de ter morado com os Schumann e ajudado Clara a manter seus filhos depois que seu marido morreu). Para quem se interessar, existe um filme muito bonito sobre a vida dela: Sinfonia de Primavera, dirigido por Peter Schamoni, com Nastassja Kinski no papel de Clara.

Intuição, sentimento, emoção nos permitem ter acesso a aspectos da realidade que a razão oculta, e a expressão estética desta idéia reflete um aumento daqueles elementos que permitem dar vazão a eles. Isto foi feito de diversas formas. A primeira delas refere-se ao que, em termos musicais, pode ser chamado de uma maior variedade cromática, isto é, uma maior combinação de escalas, acordes e harmonias (a harmonia pode ser definida como um conjunto de notas tocadas ao mesmo tempo e que são consideradas “passíveis” de estarem juntas). O uso da dissonância também se tornou mais freqüente, especialmente quando se queria indicar sentimentos ou eventos negativos (os filmes de terror fazem amplo uso da dissonância com este propósito – quem se lembra do tema de Psicose?). As melodias foram enfatizadas, a fim de evocar emoções (a melodia, em contraste com a harmonia, pode ser pensada como as notas que são tocadas ao longo do tempo, umas após as outras). As composições se tornaram mais longas e seus temas foram inspirados por expressões artísticas de fora da música, como a poesia, as artes plásticas, a literatura (o exemplo mais claro disso são os lieder de Schubert, baseados na poesia de grandes poetas românticos como Goethe e Schiller – embora Brahms também tenha composto diversos lieder).

Em acordo com o nacionalismo, amplamente valorizado pelo romantismo, elementos das culturas locais foram valorizados: instrumentos musicais, lendas, mitos e danças foram incorporados às composições (não é por acaso que Wagner era o queridinho do Terceiro Reich). A música se torna mais “popular” à medida que deixa os salões das cortes com o crescimento da burguesia e com desenvolvimento tecnológico dos instrumentos musicais, como o desenvolvimento do piano à sua forma atual, que tem um som mais potente e que pode ser ouvido em locais maiores. É nesta época também que uma sociedade mais individualista começa a fazer sentir seus efeitos. Com a saída da música dos salões, os músicos não eram mais patrocinados pelas cortes (Beethoven foi um dos primeiros compositores “free-lancer”) e a figura do virtuoso foi valorizada (diz-se que Liszt era praticamente um astro pop, com séqüitos de fãs que o seguiam pelos seus concertos e que desmaiavam de histeria quando chegavam perto do moço, que, aliás, era lindíssimo). Isto também significava uma maior liberdade, seja na forma da composição, seja na sua interpretação - note como, no concerto de Brahms, algumas notas do piano parecem se estender por uma fração de segundo a mais ou a menos do que se poderia esperar, gerando uma tensão e uma emotividade muito mais intensa se comparada à composição de Bach, que parece precisa, matemática, quase “previsível” (que deus me perdoe!) neste aspecto.

Mas chega de tanto blá-blá-blá. Ouçam e se emocionem.

Cynthia Hamlin

6 comentários:

Le Cazzo disse...

Que moça danada de sabida!Ela vivia me pedindo pra ilustrar as coisas que eu falava sobre romantismo com a música(o que me é absolutamente impossível pela ignorância na área e pelo objeto mesmo que me interessa no romantismo: fica mais fácil pensar na natureza a partir da pintura e literatura românticas do que pela música). Legal, Cynthia. Fica aí a oferta, como a fiz ontem: se tiver interesse em aprofundar essa estória, empresto os dois volumes de Bazun sobre Berlioz e te ponho em contato com o tal maestro de que falei. (Ela vai dizer: "não estou interessada...". Jonatas

Anônimo disse...

Interessada eu estou, meu filho, estou mesmo é sem tempo. Agora, se você quiser escrever um artigo sobre homens bomba, um sobre Butler e outro sobre humor e publicidade no meu lugar (meus compromissos do momento), quem sabe eu enverede pela sociologia da música. O risco é a gente acabar meio esquizofrênico. Ainda bem que Artur vai aparecer por aqui de vez em quando - pelo andar da carruagem, pode ser que a gente precise dele muito em breve. E por falar nisso, menino, como ele tá misterioso, né não?!

Le Cazzo disse...

Ocupada, você?! Luxury! E eu que trabalho numa mina de cimento 25 horas por dia, sou arrimo de família de meu pai, mãe e meus 30 irmãozinhos, todos com menos de 8 anos de idade, quando chego em casa sou espancado durante três horas seguidas com cordas feitas de arame farpado. Meu pai alcóolatra ainda não estando contente me manda vender minhas chagas nos semáforos do Recife onde sou diariamente roubado pelos garotos mais velhos que eu, e surrado com garrafas quebradas horas a fio. Nas horas que me sobram trabalho numa pedreira quebrando paralelepípedo com a testa. Mas não há de ser nada, Deus é grande. Se tudo der certo haverei de dormir em minha caixa de sapato, agasalhado em meus lençóis de jornal no final do ano que vem. Jonatas

Le Cazzo disse...

Quanto a Artur: o general está ocupado, pelo que soube, com uma viagem a Manaus. Ouvi falar que chegaria de lá com boas novas. Jonatas

Anônimo disse...

Que texto legal, Cys.
Confesso que deu até vontade de estudar muita música clássica! Ah, enveradar para a sociologia da música até que não é uma má ideia,viu?! E a esquizofrenia, pode deixar por nossa conta. Eu e Geninha resolvemos isso fácil fácil. ha ha ha

PS:Fazia tempo que não passava por aqui. Saudade dos teus textos, "zefinha".

Anônimo disse...

Luana! Renasceste das cinzas? Bom encontrar você por aqui. Meu computador esteve de férias por uns (longos) dias, mas estou de volta!

Beijos, Zefa!