domingo, 29 de junho de 2008

NEGROS, MULHERES E OUTROS MONSTROS: um ensaio sobre corpos não-civilizados



(Venus Hottentot 2000. Performance de Lyle Ashton Harris)

A Terceira Mirada na Vênus

They’ll give you the hometown hurray
When you come home, baby
Bronze your combat boots and set your bones in clay
Write down every word you’ve ever had to say
No one wants to believe you died in vain


(Hometown Hurray - White Hinterland)


Esta é a quarta e última parte do meu texto sobre Sara Baartman, relativa à sua viagem de volta à sua terra natal, na África do Sul, depois de quase 200 anos de submissão ao olhar degradante dos europeus. Tentarei demonstrar aqui como as relações íntimas e recíprocas entre movimentos sociais, biologia e teorias sociais contemporâneos contribuíram para a caracterização de Baartman como um sujeito inteiramente distinto dos anteriores: em lugar da mulher monstro, a heroína nacional que encarna uma série de valores politicamente corretos e possivelmente tão arbitrários quanto os que a condenaram a uma vida subumana.

Conforme argumentei antes, as condições materiais da construção de Baartman como um sujeito específico estavam intimamente atreladas ao processo de expansão capitalista (via colonialismo) que possibilitou a criação e a exibição de coleções de objetos, de animais e de seres humanos considerados exóticos. As cabines de curiosidades, os museus, as feiras, os circos e os zoológicos animais e humanos tornaram-se especialmente populares na Europa do século XVIII. Muitas dessas exibições e coleções, em particular os museus e os zoológicos, estavam embasadas nos ideais Iluministas de construção de um tipo de conhecimento enciclopédico e universal. O gosto pelo exótico, pelo diferente, reflete ainda uma preocupação central com a questão da identidade durante a formação dos estados nacionais.

Inicialmente, naquilo que denominei de a primeira mirada na Vênus, tem-se a criação de um outro monstruoso e perigoso, identificado, sobretudo, com os negros e as mulheres. Este outro representa o limite externo da humanidade, concebida em torno de idéias como razão, autocontrole, proporção, beleza, virilidade. As primeiras representações dos povos das terras recém-descobertas no período das grandes navegações eram bastante idílicas: verdadeiros jardins do Éden habitados por Adões e Evas de pele escura, cenas pastorais com figuras humanas em representações gregas clássicas etc. Certamente que as Evas traziam consigo toda a ambigüidade presente nas representações do feminino na cultura ocidental, oscilando entre a virgem inocente e a fêmea libidinosa. Mas a partir do século XVII essas representações idílicas começaram a dar lugar ao selvagem monstruoso (Fausto-Sterling, 1995), desproporcional, hiper-sexualizado, canibal, amoral. Quando Baartman chega à Inglaterra, no início do século seguinte, é este outro monstruoso que ela vem a encarnar de forma dupla: como mulher e como negra.

O nome com que se tornou conhecida, Vênus Hotentote, aponta para as ambigüidades presentes na construção de uma identidade a partir da tentativa de exclusão do que poderíamos qualificar de um alter ego monstruoso. Este duplo, assim como Mr. Hyde, que habitava as profundezas da mente do Dr. Jeckyll no romance de Stevenson, insistia em se manifestar sob a forma de fascínio, medo, riso, escárnio, dirigidos à Vênus. Como afirma Gerard Badou (apud Garrec, 2002), “a sensualidade monstruosa [da Vênus] tinha qualquer coisa de obscena, mas também de sagrada, que aprisionava o espectador nas profundezas de seu self. Este, atormentado por pulsões contraditórias, escapava por meio do riso e da piada”. O riso e o escárnio de que Baartman foi alvo indicam a construção de um sujeito que, ao encarnar tudo o que se considera negativo, monstruoso, aberrante, assegura a positividade, normalidade, de seu oposto. Mais do que isso, assegura a própria humanidade dos europeus, que passam a se constituir como o Homem universal.

Este outro negativo torna-se ainda mais enraizado no que chamei de a segunda mirada na Vênus. Ao retirar o argumento da esfera da tradição, especialmente via a incorporação do conceito de raça (que antes denotava hierarquias estritamente sociais) ao vocabulário científico, o que se tem é um ocultamento dos interesses e preconceitos sob o manto da objetividade e da neutralidade da ciência da época. Hoje, que temos a vantagem da perspectiva histórica, especialmente após os horrores gerados pelas teorias racialistas e racistas aplicadas ao longo do século XX, podemos perceber com mais clareza a dimensão ideológica da classificação racial elaborada por Cuvier. Suas tentativas de aproximar Baartman dos símios e distanciá-la da humanidade se chocam frontalmente com seus pressupostos monogenistas acerca da origem comum de todos os seres humanos e o aproxima, contra suas próprias crenças, da idéia de evolução. Não se trata de um projeto consciente de desumanização. No entanto, a leitura que Cuvier faz do corpo de Baartman deixa especialmente visível a relação entre a produção de conhecimento científico e crenças mais gerais acerca da estrutura da sociedade, de sua hierarquia, de seus valores.

Os horrores decorrentes de diversas políticas cientificamente embasadas durante o século XX serviram de combustível para o questionamento de noções como objetividade, neutralidade e mesmo verdade, associadas à ciência. Tais questionamentos, caracterizando aquilo que Giddens chama de “dupla hermenêutica”, injetaram grande força nos movimentos sociais que, por sua vez, passam a reclamar uma nova identidade a Baartman. Talvez o primeiro movimento social que serviu de denúncia à exposição e reificação de Baartman foi o movimento feminista. No início dos anos de 1970, feministas francesas alegaram que sua exibição consistia em uma representação degradante das mulheres. O movimento iniciado por elas levou à remoção de seu esqueleto, em 1974, e do molde em gesso do seu corpo, em 1976, para os porões do Musée de l’Homme (Qureshi, 2004). A partir de então, estas peças foram exibidas em uma única exposição, em 1994, intitulada A Escultura Etnográfica no século XIX: da Vênus Hotentote à La Tehura de Gauguin, primeiro no Musée d’Orsay, depois em Arles (Garrec, 2002). Os jarros contendo seu cérebro e sua genitália, ao que tudo indica, permaneceram guardados (escondidos?) no porão do Musée de l’Homme. Nesta última exibição a reação do público foi amplamente desfavorável e ela nunca mais foi exposta.

Neste mesmo ano, os descendentes dos Khoisan, organizados num movimento chamado “conferência nacional Griqua”, deram início a uma campanha pública de repatriação de seus restos mortais. Esta campanha se insere em um contexto que é necessário compreender. Com o fim do regime do Apartheid, em 1994, estabelece-se a necessidade da criação, no plano simbólico, de elementos que possam representar uma nova identidade nacional. Isto inclui não apenas uma releitura da história do país por meio de uma reforma do ensino, mas também, e talvez principalmente, a criação de novos heróis nacionais que resumam de alguma forma qualidades consideradas importantes. É aí que ganham força os movimentos de grupos étnicos minoritários, amplamente apoiados pelo movimento estudantil, pelo movimento feminista, pela mídia e pelo governo sul-africano. De fato, pouco depois da eleição de Nelson Mandela, o presidente recém eleito transmite o desejo do povo sul-africano de reaver os restos mortais de Baartman em uma visita oficial do presidente francês, François Mitterrand (Richert, 2002). A posição do governo sul-africano era a de que o retorno da “Vênus Hotentote” era nada menos que um símbolo de “descolonização psicológica” (citado em Garrec, 2002). E foi assim que Baartman, identificada como subumana pela ciência européia do século XIX, tornou-se heroína nacional da África do Sul. Nas palavras de Gould (2004: 279):

Se os povos Khoi-San eram tidos pelos velhos cientistas como aproximações dos primatas inferiores, eles agora se distinguem como os heróis dos movimentos sociais modernos. As suas linguagens, com cliques complexos, foram certa vez desprezadas como uma mixórdia gutural de sons animalescos. São agora admiradas pela sua complexidade e sutileza de expressão. Cuvier estigmatizara o estilo de vida de caça e extrativismo dos San (boximanes) tradicionais como a degradação suprema de um povo estúpido e indolente demais para se dedicar à agricultura ou à criação de gado. As mesmas pessoas hoje se tornaram modelos de retidão para os modernos militantes ecologistas devido à sua abordagem compreensiva, não exploratória e equilibrada dos recursos naturais. [...] Além disso, enquanto os contemporâneos de Cuvier procuravam sinais físicos de bestialidade na anatomia dos Khoi-San, os antropólogos agora identificam essas pessoas como, talvez, o mais pedomórfico dos grupos humanos. [...] Por esse critério, quanto maior o grau da pedomorfose, maior a distância de um passado simiesco.


Apesar disso, foram necessários oito anos de negociação intensa para que Baartman pudesse ser devolvida a seu povo e cremada segundo os rituais Khoisan. A repatriação, símbolo do processo de descolonização, esbarrou na lei francesa, que afirma que “os bens do domínio público são inalienáveis e imprescritíveis” (Art. L. 52). Baartman, ou seus restos mortais, era, oficialmente, parte do patrimônio público francês e devolvê-la à África do Sul representaria um precedente importante no sentido de requisições, por parte de outras ex-colônias, de devolução do patrimônio roubado durante a colonização. Crescentemente pressionado pela opinião pública internacional, o governo da França não teve outro remédio, senão ceder. Seria necessária uma modificação na lei, mas de forma tal que isso não representasse riscos aos museus da Europa e seu patrimônio. Uma análise dos relatórios do projeto de lei apresentado ao Senado francês (Richert, 2002) e de sua aprovação (Garrec, 2002) deixam claras as preocupações do governo da França neste sentido. Uma série de dificuldades foi colocada ao longo dos anos, como a declaração, por parte do diretor do Museu de História Natural, de que os jarros contendo a genitália e o cérebro de Baartman não faziam parte do inventário do museu e que sua existência baseava-se meramente em relatos orais. Era a palavra da direção do museu contra a de um dos maiores biólogos vivos (à época) do planeta: Stephen Jay Gould escreve seu artigo sobre a Vênus Hotentote (originalmente publicado em 1985) a partir de sua visita aos porões do museu, logo após a visita do astrônomo Carl Sagan, e lá, num relato extremamente irônico, ele afirma ter visto a genitália e o cérebro de Baartman:

Saartjie continua hoje mantendo a sua vitória sobre o sr. Broca [um dos maiores antropólogos e anatomistas clínicos do século XIX]. O cérebro dele se decompõe num frasco mal vedado. O tablier dela está colocado acima, enquanto o seu bem preparado esqueleto olha para cima. A morte, como diz o bom livro, é tragada pela vitória. (Gould, 2004: 280).


Uma outra derrota sofrida pelos franceses refere-se ao próprio status da Vênus como patrimônio público. Ocorre que, em 1994, a “lei bioética” foi sancionada e incluída no código civil. Esta lei, redigida em termos bastante genéricos, tinha por objetivo interditar atentados à dignidade humana, “notadamente por meio do comércio de órgãos ou de elementos do corpo humano retirados de seres vivos ou de cadáveres” (Richert, 2002: 8). Isto gerou um problema considerável, pois, se a lei se aplica a coleções científicas, como as coleções etnográficas dos museus, os restos de Baartman não poderiam ser considerados como patrimônio, nem privado, nem do Estado, e o museu não poderia ser considerado seu guardião legal. Fez-se necessário, portanto, esclarecer em que medida a lei poderia ser aplicada aos restos humanos conservados nas coleções científicas. Isto, por sua vez, levou à necessidade de caracterizar a natureza do interesse científico suscitado.

Qual era, portanto, o interesse científico que o esqueleto, o cérebro, a genitália e um molde de gesso poderiam suscitar nos dias de hoje? Este, creio, foi o mais interessante argumento desenvolvido pelos franceses e, em minha opinião, consiste em uma das maiores falhas ao se recorrer a argumentos puramente biológicos a fim de lidar com questões éticas – algo que vem ocorrendo nos debates contemporâneos sobre cotas raciais no Brasil. A fim de não reproduzirem os argumentos racialistas do século XIX, o relatório do projeto de lei faz referência à fala do diretor do laboratório de antropologia biológica do Musée de l’Homme, o prof. Langanay. Segundo o referido professor, “o esqueleto de Saartjie Baartman ‘não é nada mais do que o esqueleto de uma fêmea de pequena estatura’ e qualifica de ‘racista’ a dissecação efetuada por Georges Cuvier” (Ibid.:11). Por esta razão, e somado ao fato de que a ciência não poderia, mesmo por meio da genética, chegar a conclusões aceitáveis com base na analise de um único indivíduo, Baartman passa a ser também considerada como desprovida de interesse científico. O projeto de lei é, assim, aprovado, fazendo referência específica ao seu nome a fim de evitar que a lei seja aplicável a outros casos: “por derrogação do artigo L. 52 do código de domínio do Estado, procede-se à restituição, pela França, dos restos mortais de Saartjie Baartman, chamada ‘Vênus Hotentote’, à África do Sul”.

Assim, os restos mortais de Baartman chegaram à África do Sul em maio de 2002 e, em nove de agosto de 2002, dia da mulher naquele país, foi realizada sua cerimônia de cremação. Durante o funeral, o então presidente da África do Sul, Thabo Mbeki, afirmou: “A estória de Sara Baartman é a estória do povo africano. É a estória da perda de nossa antiga liberdade ... É a estória de nossa redução ao estado de objetos que podiam ser possuídos, usados e descartados por outros” (citado em Afro European Sisters Network, 2007).

A questão que fica para reflexão é: será que argumentos como os colocados pelo presidente Mbeki não são suficientes para justificar uma determinada postura ética? Será que temos que fazer referência à (suposta) inexistência das raças ou de diferenças biológicas a fim de fazermos o que é bom e justo? Como afirma Stephen Jay Gould, um biólogo cuja obra aprendi a admirar grandemente durante a minha pesquisa sobre Baartman, “a igualdade humana é um fato contingente da história”. Isto significa dizer que o Homo sapiens poderia ter evoluído de forma bastante diferente do que ocorreu, produzindo grandes diferenças raciais no seio da espécie, em lugar das pequenas diferenças entre os grupos humanos que testemunhamos hoje. Se fosse este o caso, ainda não seríamos todos iguais no que diz respeito ao direito de uma vida digna de ser vivida? Por esta razão, reproduzo mais uma vez as palavras de Gould (Ibid), que resumem aquilo que ele considera

um enunciado fundamental sobre a variação humana. Repita-o amanhã cinco vezes antes do desjejum; mais importante, compreenda-o como o centro de uma rede de implicações: “A igualdade humana é um fato contingente da história”.


Cynthia Hamlin

6 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom, Cys.
Pena que eu não tenha nada para acrescentar.
Beijos!
G.

Anônimo disse...

“A igualdade humana é um fato contingente da história”. De fato, não podemos pensar de outra maneira, ou pelo menos, depois da modernidade não é mais possível pensarmos que a igualdade humana seja algo natural ou biologicamente dado. Pelo contrário, a igualdade é uma construção típica da modernidade. É ela o motor das revoluções modernas e da gênese do individualismo burguês. Se a igualdade fosse algo natural ao status do homo sapiens, como explicar o nazismo? Como explicar o horror totalitário no século XX? Se os homens são por natureza iguais, como explicar a aplicação moderna de políticas que fazem os homens cada vez mais supérfluos/descartáveis?
Todavia, além de contingente à história, acho que seria interessante pensarmos ainda que o que oferece a condição de igualdade ao homem é o fato de poder ser reconhecido como tal entre os seus pares. Pensemos no caso da igualdade entre os antigos... Sabemos que o modelo de democracia ateniense era restritivo, na medida em que excluía mulheres, militares e estrangeiros. Todavia, há algo no conceito que traz um elemento explicativo – a igualdade só funcionava entre seus pares. Qual lição podemos tirar disso? A cidadania é o direito a ter direitos (Arendt, 1979), pois a igualdade em dignidade e direitos dos seres humanos não é um dado. É um construído da convivência coletiva, que requer o acesso ao espaço público. É este acesso ao espaço público (em sentido habermasiano), que permite a construção de um mundo comum através do processo de asserção dos direitos humanos (julgo esse conceito ainda insuficiente e falho, pois se Habermas lembrou-nos da perda da dimensão dialógica na modernidade, esqueceu-se que até então a cidadania foi mais conjugada no masculino do que no feminino como já reivindicara Susan Faludi, Nancy Fraser, Seyla Benhabib ou mesmo Carole Pateman).
Rousseau estava sumariamente errado! A humanidade, ou melhor, a condição humana não é um dado que vem junto ao nascimento. O ser humano, privado do seu estatuto político (ou seja, privado de uma esfera onde possa ser visto e ouvido pelos seus pares); na medida em que é apenas um ser humano, perde as suas qualidades substanciais, ou seja, a possibilidade de ser trado pelos Outros como um semelhante, num mundo compartilhado. Baartman era apenas um ser humano no jogo das teias e representações do colonialismo europeu. Sua dimensão humana foi desapropriada/descontextualizada. Sua persona sofreu o esvaziamento de suas histórias mais profundas em nome de um voyeurismo momentâneo e pseudocientífico. Isso fica evidente na fragmentação do seu corpo por meio da hiperfocalização em suas partes específicas e dos recortes clínicos de partes cuidadosamente selecionadas do seu corpo. Esta divisão em partes da Vênus Hotentote e suas representações deixaram traços sofreram concentrações em alguns âmbitos (museus) e dispersão em outras (cartões postais nazistas, por exemplo).
Esta é a conseqüência do desdobramento dual da ciência e do espetáculo na modernidade. Nesta obscura relação acredito ser possível revelar muito sobre as relações de gênero. Não me refiro aqui apenas ao tratamento diferencial dado a homens e mulheres pela empresa colonial, nem a como homens e mulheres vivenciaram a representação de Baartman de maneira diferente como público (as observações que Cynthia elabora entre o corpo da Vênua Hotentote e o movimento feminista são muito sugestivas), mas principalmente, para os desdobramentos de metáforas de gênero e para as qualidades metafóricas do gênero dentro da própria representação.
Finalmente, gostaria ainda de dizer que o texto de Cynthia me fez refletir sobre os limites com que sempre fora pensado o colonialismo pela história e pela ciência política – uma interpretação convencional, limitada e formal de uma relação política e econômica entre metrópole e colônia. O colonialismo não pode mais ser visto como um processo de imposição de uma metrópole européia singular, mas deve sim ser encarado (a antropologia nos oferece melhores ferramentas para isso!) como camadas entremescladas de reações políticas e linhas de projeções e domesticações em conflito entre si que convergiram em mal-entendidos, lutas e representações locais específicas.
* * *
Concordaria que ciência e espetáculo são mesmo faces de uma mesma moeda, Cynthia?

Le Cazzo disse...

Prezado Emerson,

muito instigantes suas questões. Mas acho que não concordo inteiramente com você, já que faço uma distinção entre uma dimensão ontológica e uma dimensão epistemológica em relação à noção de raça (e ao conhecimento, como um todo). De um determinado ponto de vista, o conceito de raça é contingente num sentido especificamente discursivo; de outro, ele é contingente no sentido da evolução da espécie, que poderia ter ocorrido de formas distintas. Era neste segundo sentido que estava empregando a expressão do Gould.

Defendo uma noção biológica de raça (the horror!) que diz respeito a algumas diferenças reais e que têm efeitos também reais. Mas os efeitos de raça, no sentido biológico, ao contrário do que defendiam os cientistas do século XIX, não dizem respeito a questões como inteligência, comportamento e outros elementos sociais. Por outro lado, e contrariamente aos que defendem a raça meramente como um construto social, elementos como uma maior presença de melanina podem gerar uma maior susceptibilidade a algumas doenças mediante a ausência de sol, por ex. E vice-versa. Sabe-se que populações com menor concentrações de melanina estão mais sujeitas a câncer de pele.

Já que não existem evidências de que este tipo de diferença gere diferenças comportamentais, mentais etc, o que conta para a explicação do racismo é a dimensão hermenêutica (só para escapar do ambíguo "discurso") do conceito.

O que eu tentei sugerir neste texto é que a igualdade ou diferença biológica tem pouco ou nada que ver com desigualdades sociais. Um discurso da igualdade biológica absoluta pode ser tão racista quanto um que diga respeito a diferenças (desigualdades) entre as raças. Este parece ser o caso da indústria farmacêutica norte-americana, ao se negar a desenvolver pesquisas e medicamentos para a anemia falsiforme, que tende a afetar especialmente as populações negras, com base no argumento de que não há diferenças entre negros e brancos.

Existe, portanto, uma lição importante por parte dos pós-estruturalistas no que diz respeito às relações entre termos como igualdade/diferença e, neste sentido, concordo com você. Mas não acho que a forma como concebemos igualdade ou diferença seja equivalente à forma como essas coisas se manifestam (ou não) na realidade. Infelizmente, ou felizmente, só conseguimos pensar por meio da linguagem. Mas acho que confundir nosso pensamento e nossa linguagem com a própria realidade é um equívoco grave e constitui o que se poderia chamar de "falácia da concretude deslocada". Às vezes, o velho termo "idealismo" também se aplica.

E respondendo à sua questão, não, não concordo que ciência e espetáculo são duas faces da mesma moeda. A primeira, ao contrário da segunda, tem uma dimensão reflexiva que impede o fechamento e o dogma. Já o espetáculo, seus fins e seus critérios de justificação são outros.

E, Emerson, foi impressão minha ou você também conjuga idéias como cidadania e direitos mais no masculino do que no feminino? Ah, nossos velhos hábitos arraigados...

Grande abraço e espero continuar a contar com seus comentários. Apesar da provocação do final, é sempre bom poder contar com comentários inteligentes.

Cynthia

Anônimo disse...

Professora Cynthia,
Não tive a intenção de parecer hostil com a provocação do final, era apenas para provocar o debate.
Também concordo com suas pontuações sobre as diferenças em relação ao conhecimento científico e o espetáculo.
Acho ainda que a forma com que você pensa o significado de raça - a partir de uma dimensão ontológica e outra epistemológica, uma solução muito interessante para o problema.
Pediria ainda desculpas se pareci que conjugo elementos como direito e cidadania apenas no masculino, pois foi exatamente o oposto que quis dizer... até mesmo por que ando me interessando bastante por teoria feminista ultimamente.
Quanto a contar com meus comentários neste blog, pode confiar! Não sei se meus comentários serão tão interessantes como os textos aqui editados, ms se julgou este meu último interessante, fico agradecido! Descobri este bloq recentemente e estou adorando o ritmo e a forma como você e os outros professores o administram. É um espaço muito interessante pra falar sobre métodos e teorias.
Ah... não poderia deixar de dizer ainda que me apaixonei pelo realismo crítico, ou comecei a fazer leituras mais sistemáticas desta tradição a partir de textos seus. Foram suas reflexões que me inciaram por este caminho... Obrigado!

Le Cazzo disse...

Prezado Emerson,

não interpretei nenhuma de suas colocações como hostis e a "provocação" a que me referi no final do meu comentário foi a minha própria. Estava me referindo a uma certa contradição performática de sua parte, ao defender que os direitos humanos eram conjugados no masculino e seu uso do particular "homem" como um universal.

Quanto ao realismo crítico, é interessante que, ao contrário do que ocorre com a noção de sexo (mas não a de gênero), exista uma certa unanimidade em que a raça é meramente um construto social. Neste sentido, estou remando contra a maré até mesmo entre os meus pares. Fazer o que?

E não se preocupe com possíveis discordâncias: isto faz parte do nosso jogo e nos permite rever nossas próprias posições, seja para reformulá-las, seja para fortalecê-las. Aliás, a gente aqui gosta tanto de uma discussão (desde que civilizada, claro), que às vezes penso em sugerir a troca do nome do blog para Eris, a deusa da discórdia!

Você faz o que, mesmo?

Abç
Cynthia

Anônimo disse...

Cara Cynthia,
Faço doutorado em Ciência Política na UFPE, trabalho com Estudos Legislativos, mas ando ultimamente muito de saco cheio de escolha racional e neo-institucionalismo! Ando buscando novos horizontes... Interessei-me muitíssimo pelo estudo dos métodos/teorias nas ciências políticas e sociais durante o mestrado e ando cadaz vez mais disposto a me aproximar destas questões, e menos do meu objeto anterior de estudo.
Cada vez mais leio e sinto-me tentado a pesquisar questões como a relação entre teoria política e teoria social; teoria política e feminismo; teorias políticas e suas epistemologias/ontologias...
Abs,
Emerson.