domingo, 10 de agosto de 2008

É Possível Democracia sem Debate Público? (Parte II)


Índice de Fragilidade do Estado. Criado por Monty G. Marshall and Jack Goldstone, do Center for Global Policy, George Mason University. (Disponível em: http://www.systemicpeace.org/polity/polity4.htm)

Enquanto diversos países do mundo se engajam em campanhas pela quebra do silêncio em torno do aborto - seja como forma ajudar as mulheres a lidar com o turbilhão de sentimentos contraditórios que o procedimento gera, seja como forma de evitar que o estigma que envolve o tema não impeça o acesso à informação - o Brasil parece ter optado pelo silêncio. Talvez o uso do termo “opção” não seja adequado. Mais adequado seria afirmar que a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados silenciou um debate que, independentemente de seu conteúdo ou de seu resultado, deveria estar no cerne de qualquer decisão em uma sociedade democrática.

Desde 1991, o Projeto de Lei 1135/91 tramita no Congresso Nacional. O PL visa à supressão do artigo 24 do código penal, que prevê uma pena de um a três anos de detenção a toda mulher que “provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque”. No dia 9 de julho deste ano, o deputado federal Eduardo Cunha (PMDB- RJ), presidente da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania e relator do PL, levou seu parecer para ser votado pelos membros da Comissão. Parte do problema é que seu parecer estava pronto antes mesmo das audiências públicas que visavam esclarecer a questão para os membros da Comissão. Não menos significativo é o fato de que o parecer considerava o PL inconstitucional, quando não há nada na Constituição que sugira tal fato. Para entender os problemas envolvidos no parecer do deputado, veja a petição redigida pelo juiz Roberto Lorea e pela antropóloga Débora Diniz, reproduzido em post abaixo. O caráter antidemocrático da votação, conduzido de forma a beneficiar as posições contrárias ao projeto, foi resumido pelo Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfêmea) em uma nota pública:

- o PL foi debatido em apenas duas audiências públicas, o que é pouco para a complexidade do tema;
- metade dos especialistas convocados para a primeira audiência eram integrantes de igrejas cristãs, iniciativa que afronta o princípio constitucional da laicidade do Estado brasileiro, que não deve orientar suas leis por convicções religiosas de quaisquer igrejas;
- as duas audiências públicas foram realizadas quando o relator já havia constituído posição e apresentado seu parecer; ao longo das audiências, vários parlamentares adiantaram seu voto, ou seja, em que pese o esforço de parlamentares aliados, especialistas convidados e da sociedade civil, essas audiências representaram uma farsa pois o parecer do relator foi seriamente questionado na sua argumentação jurídica e, mesmo assim, está mantido como documento da CCJC, pelo presidente da Comissão.(http://www.cfemea.org.br/noticias/imprimir_detalhes.asp?IDNoticia=721)

A questão, portanto, é grave. E por uma série de razões. É inconcebível, por exemplo, que um legislador de um país desconheça a Constituição. Mais inconcebível ainda é que, apontadas suas interpretações equivocadas, o documento redigido com base em seus equívocos continue a servir como referência para uma decisão que afetará a vida de milhões de pessoas. Também é inconcebível que um Estado laico se apóie tão fortemente na posição de Igrejas – especialmente quando esta posição é tratada como algo monolítico, sem que de fato o seja. Assim como ocorre com outras instituições da sociedade civil, a diversidade de opiniões também ocorre no seio do cristianismo, inclusive da Igreja Católica. A posição da CNBB, segundo a qual o aborto é proibido em todo e qualquer estágio da gravidez, data do final do século XIX, no pontificado do papa Leão XIII. Ao longo de sua história, a Igreja Católica oficialmente apresentou graus de tolerância distintos em relação ao aborto com base na idéia de Aristóteles de que a alma humana só apareceria nos fetos masculinos aos 40 dias de gestação e, nos femininos, aos 90 (como diria Judith Butler, viva Aristóteles!). Essas datas variaram ao longo da história da Igreja, indo de 40, 80 ou 116 dias, durante os quais o aborto era tolerado. Foi ao expor esta diversidade de posições e ao defender o direito de escolha das mulheres de levar uma gravidez a termo que a teóloga e freira católica Ivone Gebara foi forçada a dois anos de silêncio pelo Vaticano. Que a Igreja Católica se veja na obrigação de calar a boca de seus dissidentes e apresentar suas posições oficiais sem levar em conta a diversidade de opiniões é uma coisa. Que um Estado laico que se propõe democrático o faça, e se apoiando na posição autoritária de uma das Igrejas que compõem a sociedade civil, são outros quinhentos.

O que constitui a vida, e a vida humana, em particular, é uma questão complexa e que tem se tornado progressivamente mais difícil de determinar à medida novas tecnologias de produção e de reprodução da vida têm aparecido. De fato, a Constituição brasileira leva em consideração esta dificuldade e estabelece que a proteção da vida não pode ser determinada constitucionalmente a partir de sua concepção, mas deve ser regulamentada a partir de leis ordinárias. Foi isto, por exemplo, que garantiu a aprovação no Congresso Nacional, em 2005, do uso de células-tronco embrionárias advindas de embriões não-utilizados pelas clínicas de fertilização. Por que, no caso do aborto, o direito à vida seria determinado constitucionalmente a partir da concepção, como acredita, equivocadamente, o deputado Eduardo Cunha? Creio que a resposta é relativamente simples: porque um argumento moral lhe serve de substrato. Note-se que estou usando do que se poderia chamar de uma grande dose de caridade interpretativa e considerando o relatório do deputado como baseado em uma crença real, ainda que equivocada, e não como um ato de má-fé. A idéia implícita é a de que a mulher é responsável por toda e qualquer gestação que derive de um ato consentido. Assim, em abstrato, o princípio moral é válido. O problema surge quando consideramos que princípios morais não podem ser determinados a partir de um universalismo abstrato à maneira do imperativo categórico de Kant, mas da realidade, de casos concretos. A forma como a realidade é atualmente considerada nos julgamentos morais varia enormemente, indo desde uma espécie de relativismo moral absoluto, como defendido pelo comunitarismo, a perspectivas universalistas não-essencialistas, como defendidas pelo realismo crítico, ou por algumas vertentes (pós-? Neo-?) hegelianas do pós-estruturalismo. Não pretendo entrar nesta discussão aqui, mas apenas apontar que a questão é complexa e tem que ser debatida, e não tratada como se fosse auto-evidente.

Sabe-se, por exemplo, que, mesmo com o uso dos métodos contraceptivos mais eficazes, como é o caso da pílula, existe uma chance de cerca de 2% em um ano de que ela falhe. E isso considerando que as mulheres de fato tenham acesso à informação e a métodos eficazes como este. Isto significa que, ainda que o sistema de educação e de saúde pública do Brasil garantisse o acesso universal a ambos (o que, convenhamos, não é o caso), o aborto, assim como ocorre no resto do mundo, ainda seria utilizado como recurso por uma grande parte das mulheres. De fato, de acordo com o Cfêmea, estima-se que ocorram cerca de um milhão de abortos por ano no Brasil, o que dá uma média de 2.740 por dia. Se seguíssemos a legislação atual, seriam 1 milhão de "criminosas" nas cadeias brasileiras a cada ano, o que, na prática, não ocorre. Apesar disso, depois que o tema passou a ser discutido, têm ocorrido tentativas de que se reforçar a lei, como o pedido de investigação por aborto de cerca de 10 mil mulheres no Mato Grosso do Sul, neste ano. Antes que se parta para a defesa de ações como esta, seria conveniente observar alguns dados sobre a situação no resto do mundo. De acordo com a Women on Waves,

-Mais de 1/3 de todas as gestações no mundo são não-planejadas.
-Todos os anos, cerca de 1/4 de todas as mulheres grávidas do mundo decidem fazer um aborto (cerca de 42 milhões por ano).
-Aproximadamente 25% da população mundial vive em países com leis sobre o aborto altamente restritivas, especialmente na América Latina, África e Ásia.
-O status legal do aborto faz pouca diferença em relação aos níveis de incidência estimada de abortos (torná-lo ilegal não diminui seu número)
-Onde é ilegal, são principalmente as mulheres sem recursos financeiros que recorrem a métodos não-seguros de aborto, o que resulta na morte de uma mulher a cada 7 minutos.
-20 dos 42 milhões de abortos efetuados a cada ano são considerados não-seguros.
Entre 10 e 50% dos abortos não-seguros requerem intervenção médica, o que nem sempre ocorre porque, em países em que é ilegal, as mulheres não procuram assistência.
-Quando desempenhado por pessoas competentes e sob condições sanitárias adequadas, o aborto é um procedimento bastante seguro. Nos EUA, por exemplo, a taxa de mortalidade por abortamento é de 0.6 por 100.000, isto é, mais seguro do que uma injeção de penicilina.
-Quando o aborto foi proibido na Romênia em 1996, a taxa de mortalidade materna aumentou drasticamente, tornando-se 10 vezes maior do que no restante da Europa. Quando foi descriminalizado novamente, em 1989, a taxa voltou a cair.

Percebe-se, portanto, que a criminalização do aborto traz consigo um efeito perverso: um reforço das desigualdades que se reflete em maiores taxas de mortalidade materna entre mulheres de classe baixa. Além disso, mesmo para as mulheres de classe média que podem pagar entre cerca de R$ 1.500 e R$ 3.000 por um aborto em uma clínica com condições mínimas de higiene e com um médico minimamente capacitado, não há controle sobre os procedimentos efetuados. Vale lembrar que, para cada Morgentaler guiado por razões humanísticas existe um mercenário e um incompetente de plantão. Foi por razões como estas que a Assembléia Parlamentar do Conselho da Europa aprovou no início deste mês uma resolução que pede que todos os Estados-Membros da União Européia despenalizem o aborto e melhorem a prestação de serviços de contracepção, garantindo assim o direito de todas as cidadãs européias.

Se você ainda tem dúvidas sobre a importância de um debate sério sobre este assunto, compare o mapa relativo à fragilidade do Estado colocado no início deste post com o mapa relativo às leis sobre o aborto, abaixo. Informe-se. Pense. Discuta. É isso que faz uma democracia forte. E por falar nisto, não pude deixar de notar que, dos exatos 100 posts escritos neste blog, apenas os relativos ao aborto não tiveram um comentário sequer. Estranho.



Mapa das Leis sobre o Aborto (disponível em http://www.womenonwaves.org/set-158-en.html)
Legenda:
Vermelho: aborto ilegal em todos os casos ou apenas permitido em caso de estupro ou para salvar a vida da mãe
Rosa: aborto legalmente permitido apenas para salvar a vida da mulher ou para proteger sua saúde física
Amarelo: aborto legalmente permitido apenas para proteger a saúde mental da mulher
Azul: aborto legalmente permitido por razões socioeconômicas
Branco: aborto sob demanda da mulher.

Cynthia Hamlin

7 comentários:

Le Cazzo disse...

Dois posts muito bons, Cynthia. Você citou o Projeto de Lei que regulamentou a pesquisa e comercialização de transgênicos de um lado e a pesquisa com células-tronco embrionárias, de outro. Naquela oportunidade, a Igreja Católica alertava para a implicação de sua aprovação: caminho aberto para a legalização do aborto. Pois, se por acaso se sustenta que a vida humana começaria após a fecundação... não haveria outro conclusão a tirar do assunto. Na época, argumentou-se que as CTEs não tinham viabilidade de se converter em vida humana enquanto não estivessem num útero humano - e no caso, a proposta que vingou foi que apenas se utilizassem para a pesquisa CTEs descartadas.

Agora, o interessante é que durante essa votação também a democracia foi bastante atropelada: por discursos tais como "não podemos perder o trem da história", "quem não é favorável a pesquisa com CTEs é contra a ciência e obscurantista", "é o pessoal da Igreja Católica" etc. Quer concordemos ou não com o resultado, a democracia lá também foi atropelada por meias-verdades, promessas temerárias e acesso desigual de defensores do projeto de lei aos meios de comunicação. Uma pequena propaganda. Fizemos um artigo a esse respeito, eu e Aécio Amaral, que foi publicada em alemão e deve também ser lançado esse semestre num livro organizado por Marcos Costa Lima (não lembro exatamente o título, mas é sobre o capitalismo pós-Guerra Fria). Beijo, Jonatas

Anônimo disse...

Pois é, Jonatas. É terrível ver esses atropelos. Meios de comunicação de massa completamente viesados, votações feitas às pressas e como que na calada da noite e coisas que tais. Acho até que sou capaz de lamentar o fato de a Igreja Católica ter provado de seu próprio veneno na discussão sobre os transgênicos. Ou será que isso está além das minhas capacidades?

Seria legal se você pudesse resumir os principais argumentos desse teu artigo aqui no Cazzo.

Beijo

Anônimo disse...

Belos textos, Cynthia.

O aborto, salvo as exceções de praxe, continua crime. A recente ratificação da sua criminalização foi uma derrota histórica do movimento feminista. Vitória da Igreja e dos conservadores. A legalização do aborto é consequência (axiológica, mas não propriamente política) do estado laico. Derrota, portanto, da laicidade.

Solicitei recursos ao Vaticano para construir algumas centenas de presídios. Afinal, serão milhares de criminosas e de cúmplices do crime praticado.

Um bom slogan seria: "não seja hipócrita, denuncie sua avó, sua mulher, sua filha, sua amiga, e bote tudo na cadeia!"

Numa visão pautada pelo liberalismo, a questão do aborto coloca em contradição dois valores fundamentais da modernidade: vida e liberdade. Tal contradição torna tensa a relação entre o Estado e a moral, entre o espaço público e o privado (aqui, não há necessariamente uma identificação entre público e estatal).

Envolvendo uma "guerra dos deuses", a questão do aborto remete imediatamente ao mundo da doxa e da opinião pública (a discussão sobre a pena de morte também gera uma "guerra dos deuses").

A questão das células-tronco reacendeu, no Brasil, a velha contraposição entre ciência e religião (pelo que li, a discussão esgotou-se aqui). Outras (bio) éticas que, porventura, são desconfiadas com o alcance da biotecnologia não tiveram voz alguma -- foram taxadas, de forma arbitrária, como aliadas objetivas do conservadorismo -- (bio)éticas que são uma contraposição a uma visão idílica, apologética e ingênua da ciência e do progresso (como a minha, por exemplo -- hehe).

O "espaço público", no Brasil, se é que existe, não tem condições organizativas, nem éticas (um mínimo consenso laico e republicano) para discutir, democraticamente, uma querela de valores, muito menos uma querela que envolve, além disso, uma certa "tecnicidade", como é a questão das células-tronco.

Jonatas discuta esse artigo no blog, rapaz. Vc e Aécio escrevendo em alemão... Sei não, a leitura pode ocasionar graves problemas neurológicos e cognitivos.

Anônimo disse...

Olha que fofo, os dois vindo me acudir do vexame de ser o único post escrito no Cazzo sem um comentário!

Arture, amore, ainda bem que, entre a psiquiatria e a sociologia, a publicidade nunca se colocou como opção para você.

Quanto ao artigo de Jonatas, eu tenho uma idéia: a gente proíbe ele de colocar filminho até que role um resuminho do artigo por aqui. Pode até ser em alemão, para dar continuidade ao projeto lingüístico-pedagógico que ele vem desenvolvendo aqui no Cazzo.

Tsc. E não é que o danado está se revelando um putis publicitário? Tá prestando atenção em como é que se faz, Artur?

Anônimo disse...

Eu sou um bom publicitário, sim. Não seja injusta. Utilizo uma linguagem direta, de massa! O fato de ter sido despedido de várias empresas de publicidade, significa apenas que, o que vale agora, é filosofar em alemão. Jonatas apenas surfa na onda do momento.

Lembro ainda da propaganda do meu consultório psiquiátrico:

_não consegue ser feliz? Encontre a felicidade química no Consultório Perrusi para Doidos Varridos!

Anônimo disse...

"O 'espaço público', no Brasil, se é que existe, não tem condições organizativas, nem éticas (um mínimo consenso laico e republicano) para discutir, democraticamente, uma querela de valores, muito menos uma querela que envolve, além disso, uma certa 'tecnicidade', como é a questão das células-tronco."

Isto é um fato, Artur. Estive conversando com Betânia Ávila, do SOS Corpo, e ela estava defendendo justamente esta idéia aí de cima para dizer por quê é contra o estabelecimento de um plebiscito para discutir o aborto no Brasil neste momento. Temos que começar pela educação e informação. O difícil é remar contra a maré da nossa grande mídia...

Uma sugestão: pede para Jonatas traduzir sua propaganda para o alemão. Assim, quem sabe você também não atinge os doidos varridos das classes privilegiadas?

Beijo

Anônimo disse...

Betânia tem toda razão.

Atualmente, a Veja ganharia todos os plebiscitos.

Mas creio que o problema não seja apenas esse, do tipo conservadores x progressistas -- a regra do jogo democrático é o respeito à regra do jogo, tanto para um lado, como para o outro. E a liberdade é a liberdade de ser minoria, e blablablá.

Meu medo é o seguinte: o uso de plebiscito para definir uma querela de valores, sem a prévia institucionalização de um espaço público democrático, é muito perigoso.

Não é uma questão de mentalidade, tipo a existência ou a inexistência de civismo, digamos assim -- embora isso seja muito importante, pois toda a representação política brasileira, seja à esquerda, seja à direita, mostrou que não é exatamente republicana.

Falo de instituições capazes de produzir uma mínima institucionalização dos conflitos (não me refiro à busca de consenso, e sim de conflitos normatizados por procedimentos públicos e democráticos).

No Brasil, acho eu, o espaço público, se é que existe, depende mais da mídia do que da sociedade civil organizada (embora essa situação tenha mudado muito, pelo menos em relação à influência da mídia, se tomarmos a última eleição presidencial como parâmetro).

No meu consultório, tentei psiquiatrizar em alemão. Todos psicotizaram. Não me arrisco mais. Assim, alerto Jonatas, o teutônico: todo alemão é um Schreber em potencial.