terça-feira, 9 de setembro de 2008

Testando o positivismo de Durkheim - parte III


O positivismo com face deprimida...

Navegar é preciso. Continuemos...

Se estou certo em colocar como uma forma de positivismo a separação entre a ciência e o senso comum ou a ideologia, Durkheim prolonga uma tradição antiga que tem, inclusive, como ilustre membro Karl Marx. Prolonga uma tradição que vai desembocar, na sociologia francesa contemporânea, em Bourdieu, por exemplo. Durkheim seria taxativo: o senso comum é pré-noção, ilusão, e o trabalho do sociólogo é, através da construção científica do objeto, produzir uma ruptura nítida entre o social (senso comum = saber social) e o sociológico (o social construído cientificamente = ciência do social).

Talvez, Durkheim não seja tão taxativo assim, embora sempre tenha defendido uma separação entre a sociologia e o senso comum. Ora, o senso comum ou, no caso aqui examinado, as representações coletivas não são ilusões. As representações coletivas religiosas, por exemplo, não seriam apenas a primeira manifestação de socialidade, mas também o começo de todo conhecimento e auto-conhecimento do ser social. As representações coletivas são formas de conhecimento, portanto possuem um núcleo de veracidade. Durkheim chega a afirmar que há verdades mitológicas, e que a diferença entre estas e as verdades científicas é apenas de... controle. Assim, a verdade mitológica

"es un cuerpo de proposiciones aceptadas sin control (contrariamente a nuestras verdades científicas, siempre sometidas a verificación ou a demostración)... Son las representaciones quienes crean ese carácter de objetividad de las mitologías y lo que les confiere este poder creador, es su carácter colectivo: es también este carácter lo que hace que ellas se impongan al espíritu" (1968: 135).

Assim, encontramos uma defesa da veracidade das produções ideativas do senso comum em Durkheim. Tal questão é de monta, pois tem várias implicações:

- a ciência não monopoliza a produção de conhecimento, nem a verdade;
- a ciência segue os mesmos princípios cognitivos do senso comum;
- resgatar o senso comum é resgatar a existência da razão prática;
- o cotidiano do indivíduo não é visto necessariamente como fonte de ilusão e alienação;
- afirmação de um relativismo epistemológico.

São as representações coletivas que fazem "funcionar" a sociedade; logo, não podem ser baseadas em ilusões, dado que assim a sociedade não se manteria coesa nem se perpetuaria. A coesão social precisa estar fincada no real, senão explode. A realidade da coesão social e das representações coletivas possuem um vínculo necessário com o real, donde sua "correspondência" com o mundo, donde sua veracidade.

Levando logicamente adiante o raciocínio, podemos afirmar que o conhecimento científico é um produto social, sucessor moderno da religião, e produtor de verdades, porque é também uma representação coletiva, isto é, possui um vínculo necessário com o real. A verdade é, assim, impessoal. No entanto, a impessoalidade da verdade não é incompatível com a diversidade individual. Durkheim respeita o que chama de individualismo intelectual, característico da ciência moderna, mas afirma que a junção de pensadores individuais só será benéfica ao conhecimento científico se as verdades parciais produzidas individualmente "vienen a concentrarse en la conciencia común y allá encuentran a la vez sus limites y sus complementos necesarios" (142). A ênfase na consciência comum é fundamental e... epopéica:

"la conciencia colectiva, sin pasar obligatoriamente por la filosofía, puede apoderarse de la verdades científicas y coordinarlas en un todo. Así se constituye una filosofía popular que es la obra de todos y que está hecha para todos; y no son solo las cosas físicas lo que esta filosofía popular alcanza y expresa: es también, y sobre todo, el hombre, la sociedad" (139).
Tal posição prefigura Gramsci! Substitua a ciência pela "filosofia da práxis" e teremos essa filosofia popular, esse bom senso revolucionário...

Nesse sentido, Durkheim separaria menos a sociologia do senso comum do que deslocaria o tema da ruptura, do ponto de vista da discussão sobre a verdade e a ilusão, para a separação entre as representações coletivas e as individuais. Penso que, para Durkheim, a fonte do erro e da ilusão está na consciência individual. A representação individual flutuaria ao sabor das idiossincrasias pessoais. Não teria a capacidade de se conectar ao real, isto é, por ser individual não conseguiria ter uma relação necessária com a realidade social. Seria completamente subjetiva, pois interior à consciência individual. Não teria fixidez e exterioridade, não conseguindo cristalizar-se no tempo e no espaço sociais. A partir do momento em que uma representação individual transforma-se numa coletiva (se é que isso é possível em Durkheim) torna-se verdadeira. A verdade, assim, é social; a sociedade é que seria, no fundo, a produtora de verdades. Estaríamos diante de uma versão sociológica do velho mote: a verdade está no todo.

Paro por aqui, até porque, sinceramente, discutir sobre positivismo cansa um bocado e vejo, agora, como é importante um blog acadêmico, justamente para ter a liberdade de dizer tal coisa :)

Mas, antes de parar mesmo a discussão, gostaria de fazer algumas rápidas observações sobre um a priori nessas discussões sobre o positivismo. Quero arriscar e defender uma intuição que tenho. Aparentemente, os ditos fundadores da sociologia partem de premissas epistemológicas para fundar metodologias. Seria como se a fundação de um determinado paradigma ou programa de pesquisa envolvesse necessariamente tipos de metodologias, isto é, doutrinas metodológicas seriam sempre fundamentadas por argumentos filosóficos. Desenvolver uma teoria social e uma pesquisa precisaria constantemente de uma defesa filosófica. A metodologia, nesse caso, jamais seria vista como uma heurística prática fundada em critérios externos e internos de validade científica, mas prescindindo de uma fundamentação epistemológica ou filosófica. A dialética marxista, a sociologia compreensiva e o método durkheimiano são devedores desse tipo de raciocínio que implica continuamente a formação de fortalezas epistemológicas e, conseqüentemente, a criação de metodologias aparentemente refratárias entre si. Quem não se lembra da defesa de Lukács da dialética marxista, considerada como uma ruptura e filosoficamente irreconciliável com as metodologias da ciência social burguesa? O que mantinha o marxismo distinto da epistemologia burguesa seria justamente seu... método.

Acredito que Durkheim fez o mesmo quando elegeu seu método, principalmente nas Regras... (2007), como o método da sociologia. E o curioso dessa dogmática metodológica é que Durkheim não tenha, muitas vezes, seguido os ditames metodológicos tão arduamente defendidos. E isso, sem dúvida, demonstrou a fecundidade do seu pensamento e de suas proposições a respeito da realidade social. Foi fecundo porque não seguiu as... Regras.

Assim, confesso meu constrangimento em relação a tais posições. Confesso meu ecletismo metodológico. O que valida uma teoria social, na minha opinião, seria menos a postura metodológica do que suas proposições substantivas sobre a realidade social. A metodologia vai depender do objeto de estudo escolhido, do tamanho da pesquisa, da escolha das explicações, se causais ou não, de quais conceitos utilizados, e por aí vai. Se quero, por exemplo, analisar mitos, dificilmente deixaria de ser estruturalista; se quero estudar os movimentos sociais, dificilmente prescindiria de uma sociologia da ação; se quero analisar interações sociais entre indivíduos num grupo localizado, seria muito mais fácil e lógico utilizar algumas propostas do individualismo metodológico; se quero examinar a integração sistêmica entre grandes agregados sociais, a utilização de teorias sistêmicas e métodos não reducionistas, talvez, ilumine melhor o caminho a ser tomado.

Pois é... Além de ser um sarapatel de esquerda, defendo a feijoada ou a paella como modelo metodológico. A única preocupação desse ecletismo é evitar o erro na medida e na mistura, deixando o prato... azedo.

Acredito que a sociologia é perpassada por vários paradigmas complementares e concorrentes entre si, ao contrário, talvez, das ciências naturais; logo, pululam na ciência social diversas doutrinas metodológicas complementares e concorrentes entre si. Penso que tal fato, se verdadeiro, crie menos confusão do que uma intensa liberdade.

Contudo, como disse Nietzsche:
"não somos mais livres do que jamais o fomos para lançar o olhar em todas as direções; nós não percebemos limite algum, temos essa vantagem de sentir em volta de nós um espaço imenso — mas também um vazio imenso...".

Artur Perrusi
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DURKHEIM, Emile. Pragmatismo y sociología. Buenos Aires: Editorial Schapire, 1968.
DURKHEIM, Emile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007.