sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Convite



Lançamento do livro 'Dinâmica do Capitalismo Pós-Guerra Fria – Cultura Tecnológica, Espaço e Desenvolvimento', organizado pelo Professor Marcos Costa Lima - e com textos de Claude Serfati, Surajnjit Saha, André Furtado, François Chesnais, Jonatas Ferreira, entre outros.

Na ocasião a Profª. Ana Cristina Fernandes fará a apresentação do livro.

Data | 29 de dezembro de 2008

Hora | 18h30min

Local | Centro Cultural Benfica

Rua Benfica, 157 (em frente à FACEPE) tel 3227 0657

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

O xixi masculino e o processo civilizador


Vênus e Cupido, Lorenzo Lotto (cerca de 1520)

Por Luciano Oliveira

Para que serve ler? Segundo um personagem do filme Terra das Sombras, “lemos para saber que não estamos sós”. Lemos igualmente, acrescento, para saber que as coisas também não estão sós; que elas têm nexos, causas, história. Ler, nesse caso, é tomar conhecimento dos processos que determinam por que as coisas são como são, de que elas já foram diferentes e que, da mesma forma, podem ser alteradas. Ler, em resumo, é aprender a reler o mundo!

Foi depois que li o livro clássico de Norbert Elias, O Processo Civilizador, que tomei consciência de que usos e costumes que nos parecem tão naturais ─ como comer com garfo e faca, por exemplo ─ têm uma história. Ao lê-lo, relembrei uma imagem que guardo da infância: minha avó comendo com a mão! Revejo-a à mesa, mergulhando a mão no prato de feijão, arroz e farinha, e amassando a mistura até ela tomar a forma de um quibe, que depois molhava no caldo de carne guisada e levava à boca, arrancando um naco com as gengivas duras de tanto uso, pois já não tinha dentes. A leitura de Norbert Elias como que reabilitou aos meus olhos a prática “primitiva” da minha avó, pois descobri que seus modos à mesa já fizeram parte dos costumes das mais nobres Casas de velha Europa!

Mas não apenas comer com a mão. Assoar o nariz com os dedos e voltar a servir-se da carne, arrotar sem nenhum constrangimento e até mesmo soltar sonoras e fedorentas flatulências à mesa, tudo isso já compôs modos normais de comportamento. Até que... A história é muito longa e quem estiver interessado em saber como e por que adquirimos modos civilizados à mesa e em outras circunstâncias, algumas constrangedoras ─ na hora de evacuar, por exemplo ─, sugiro ler o livro de Elias.

Todo esse intróito tratando de coisas menores e até sujas, com alguma tinta de erudição, tem a finalidade de não chocar o leitor com uma questão séria (juro que não estou ironizando): por que os homens, em vez de urinarem em pé, não fazem xixi sentados, como as mulheres? A uma primeira reflexão, a resposta parece evidente: dispondo de uma “mangueirinha”, os homens podem se aliviar com facilidade na posição bípede ─ o que, aliás, é muito prático em eventos como o Pré-Caju ou o Carnaval de Olinda... Já as mulheres, coitadas, não dispondo desse apêndice bastante funcional, para elas a posição abaixada é a mais cômoda! Até aqui, estamos na lógica da natureza. Mas o homem é bem mais do que um animal natural. Exemplo: é mais natural comermos com as mãos. Mas comemos com garfo! Ora, da mesma forma que inventamos a mesa, inventamos o vaso sanitário. Por que então não poderíamos, nós homens, sentar no vazo em vez de nos aliviarmos em pé e, por mais certeiros que sejamos, respingar pelas bordas e chão gotículas de urina que, depois de secas, vão provocar aquele odor desagradável de uréia?

Aqui entram considerações de ordem cultural. Urinar em pé, a princípio um gesto facilitado pela simples anatomia masculina, adquire um valor de afirmação viril e passa a integrar a ideologia do macho. Sem quê nem pra quê, é verdade, mas muitas vezes é assim que as coisas são. No caso, abaixar-se para urinar, assemelhando-se a um gesto feminino, passa a ser considerado coisa de “bicha”. Existe mesmo uma expressão grosseira para se referir a um lugar que se quer injuriar: “terra em que homem mija de cócoras”! Quem não a conhece?

Santa estupidez! Urinar sentado no vaso da nossa casa não tem outro significado senão ser um hábito de higiene e de respeito pelas pessoas que vivem no mesmo lar. Informo, aliás, que este é um hábito que tenho desde muito tempo, cujo início não consigo precisar direito mas que, certamente, desenvolvi convivendo com duas mulheres: minha esposa e a filhinha que tivemos. Isso me lembra um prognóstico feito há muito tempo pelo poeta francês Louis Aragon, o de que “a mulher é o futuro do homem”. Éramos eu e duas mulheres, e elas me civilizaram. O que me leva a concluir com o autor que citei no início, Norbert Elias, que termina sua obra monumental afirmando que “a civilização ainda não está terminada”. Pois bem: modestamente, esta é a minha singela contribuição para essa obra ainda em aberto. Senhores, sentai!

sábado, 13 de dezembro de 2008

Exuberância sem Crítica?



Por Judith Butler

Poucos de nós estão imunes à festividade destes dias. Os meus amigos de esquerda escrevem-me dizendo que sentem algo parecido com uma “redenção”, ou que “o país nos foi devolvido”, ou ainda que “temos um dos nossos na Casa Branca”. É claro que ao longo do dia sinto-me, tal como eles, tomada pela surpresa e a excitação, já que a idéia de ver o regime de George W. Bush pelas costas é um alívio enorme. E com a idéia de que Obama, um candidato negro, progressista e sensível muda a história, nós sentimos o cataclisma, à medida que ele produz um novo terreno. Mas pensemos atentamente neste novo terreno, mesmo que não conheçamos neste momento todos os seus contornos. A eleição de Barack Obama, ainda que não possa ser hoje completamente apreciada, é historicamente significativa, mas não é, nem pode ser, uma redenção e, se subscrevermos à forma superior de identificação que ele nos propõe (“estamos todos unidos”) ou que nós propomos (“ele é um de nós”), arriscamo-nos a acreditar que este momento político vencerá os antagonismos que são constitutivos da vida política, especialmente da atual vida política. Sempre houve bons motivos para não abraçar o ideal da “unidade nacional” e para fomentar suspeitas face a uma identificação uniforme e absoluta com um líder político. Afinal de contas, o fascismo baseava-se em parte nessa identificação com o líder, e os republicanos usam o mesmo tipo de expediente para conseguir mobilizar os afetos politicos quando, por exemplo, Elizabeth Dole, olha para a sua audiência e diz: “Adoro cada um de vocês.”

Para ler o artigo na íntegra (numa tradução não muito cuidadosa), clique aqui. Para lê-lo no original, em inglês, clique aqui.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Pudor e vergonha: o que se revela e se esconde


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Antonio Ricardo Rodrigues da Silva

Lucian Freud é considerado um dos mais importantes pintores ingleses da atualidade, talvez o mais importante da segunda metade do século XX. Nascido em Berlim em 1922, filho de Ernest Freud e Lucie e neto do pai da psicanálise Sigmund Freud, Lucian se consagrou com uma pintura muito particular, onde a figuração do humano, notadamente na exposição de seus corpos, quase sempre nus, demonstra sua agucidade em mostrar coisas e situações quase sempre de um âmbito privado, que se preferiria não se notar ou ver. A crueza de suas figuras que apresentam o retrato físico e existencial das pessoas em poses paradoxalmente não posadas saltam aos nossos olhos.

Diferentemente de um outro pintor britânico – Francis Bacon, cujo mal estar advém da extrema distorção da figura humana que pode ser reduzida a um pequeno conjunto de músculos, aparentando-se a uma exposição de carnes num açougue, o mal estar e também a perplexidade de haver ali beleza, aparece na pintura de Freud, a partir de um estranho desconhecimento, que passamos a reconhecer como muito familiar, na medida em que reconhecemos ali, a expressão de nossa vulnerabilidade, seja no corpo das jovens, onde a posição não é ortodoxa e a proporção é alterada, seja nas dos gordos e velhos, estes últimos anunciando a decaída física e conseqüentemente a perspectiva da morte. Uma pintura que parece a princípio sem pudor, pois além de mostrar nossa nudez sem retoques, com seus limites, escancara nossa fragilidade. Uma pintura que possibilita uma identificação aparentemente mínima, sutil, mas olhando mais de perto, avassaladora. O despudor de Lucian talvez seja o de nos mostrar o que já sabemos, mas insistimos em deixar no limbo quanto mais tempo for possível, até que graças a habilidade de um artista, sejamos confrontados com a novidade que já é nossa velha conhecida.

O pudor e a vergonha estão relacionados a um mal estar, gerado pelo que pode ferir a decência, a honestidade ou a modéstia. Este sentimento está quase sempre ligado (mas não só) a atos e coisas que se relacionam com a sexualidade, na articulação entre o que deve e pode se mostrar e o que se deve esconder.

Em 1905, o avô de Lucian, Sigmund Freud publicou os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” texto fundamental para se compreender como a psicanálise entendia a sexualidade humana. Este livro colocou Freud novamente no olho do furacão moral vienense, não só porque o tema era o sexo, mas, sobretudo pela abordagem que fazia desse impulso. Todos sabemos que no século XIX muito se falou e se escreveu sobre o tema, com o estabelecimento das ciências sexuais. Os livros de Havelock Ellis (1859-1939) e, sobretudo o de Krafft-Ebing (1840-1902) (Psychopatia sexualis) eram verdadeiros best sellers. A especificidade da abordagem freudiana – já explicitada no texto fundador de 1900 - “A interpretação dos sonhos” dizia respeito ao fato de que a fronteira entre o normal e o patológico tinha sido definitivamente esfumaçada. As noções do sonho como uma “psicose noturna e realização alucinatória do desejo” falavam desse transitar, reforçados ainda mais pelo fato de que muito cedo Freud recusou a noção de degenerescência – cara à psiquiatria do seu tempo e que tentava explicar os ditos desvios da conduta sexual a partir de uma disposição degenerativa herdada.

Com os “Três ensaios” a sexualidade dos humanos se afasta notadamente da dos animais. A noção de instinto – fundamental para a biologia e para a psiquiatria, e até então referência importante para a explicação do sexo entre os humanos, é interrogada pela psicanálise. Esboça-se o conceito de pulsão, sendo a partir deste que não só a sexualidade, mas a própria constituição do humano passa a ser pensada. A pulsão é um conceito limite entre o somático e o psíquico. Ancorada no corpo (sua fonte) tem como objetivo descarregar a tensão e para isto precisa de um objeto, meio para atingir sua finalidade. Esses objetos podem ser desde uma parte do corpo (próprio ou de outro) até uma pessoa inteira. Freud vai reconhecer então uma sexualidade na infância e considerá-la a matriz da organização psíquica, rompendo com a noção de que esta estaria ausente e só aparecia nos casos de crianças degeneradas. O mito da infância inocente é derrubado, passando a criança a ser entendida como um pequeno ser em desenvolvimento dotado de uma disposição perversa polimorfa, isto é, capaz de experimentar imenso prazer em atividades as mais diversas, desde o sugar do seio materno, o excretar e reter, até o ser tocado, tocar, olhar e exibir-se ao outro. Essa disposição ampla deve, no entanto ir se organizando em torno da genitalidade e aqui aparece um componente de certa forma normativo, na medida em que, caso isto não se estabeleça, organizar-se-iam as perversões, entendidas neste contexto como as práticas perversas polimorfas dos adultos com um fim em si, não levando a união dos genitais no coito. Para que a genitalidade seja alcançada as disposições perversas polimorfas próprias e fundantes da matriz devem tomar outros destinos. A sublimação e o recalque seriam dois destinos possíveis.

E é sobre o recalque dessas disposições que Freud se deterá ao falar dos “diques anímicos contra os excessos sexuais”. Subjaz aqui uma noção da sexualidade como do âmbito de um excesso que necessita ser domado, controlado, desviado, limitado para que a organização psíquica se realize. Haveria então tanto do ponto de vista da própria criança como da expectativa social que esses componentes pudessem ser controlados e Freud dirá que o asco, os ideais estéticos e morais e a vergonha (pudor) seriam esses condicionantes. Vergonha e pudor seriam peças centrais nessa organização. Interessante é pensar que por trás desses sentimentos, haveria uma forte disposição constitutiva e ao mesmo tempo intempestiva e que seria da resolução dessa conflitiva que teríamos as especificidades de cada pessoa e de seu lugar no mundo. O pudor e a vergonha provocam o recalque necessário para uma certa organização psíquica que desembocará num franco desenvolvimento rumo a uma certa autonomia necessária à vida de uma pessoa, que é capaz de reconhecer-se e implicar-se no percurso e destino de sua vida humana, demasiada humana. No entanto, se as operações recalcantes forem excessivas, levarão junto consigo a espontaneidade, a criatividade e a empatia, peças importantes na vida pessoal e social, tendo como uma das suas conseqüências, a inibição. A importância de se focar o pudor é que ele trás a possibilidade de se acessar sua outra face – o despudor e a partir desse contato se integrar uma dimensão preciosa da experiência humana. A pintura de Lucian nos dá uma dessas senhas.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Pudor e despudor


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O texto abaixo saiu na Continente Multicultural de Dezembro, dentro de um pequeno dossiê sobre "pudor". Compartilho no CAZZO.

Jonatas Ferreira

Em O animal que logo sou, Jacques Derrida reflete acerca de um tema inusitado: o constrangimento de, nu, perceber-se objeto do olhar distraído de seu gato de estimação. Chamemos esse constrangimento por um nome adequado: pudor. O pudor, a percepção da própria nudez, em sentido estrito e lato, é para ele uma experiência ontológica fundamental – inseparável de outras imagens daquilo que se tem considerado próprio do ser humano, tais como, a razão, a história, o luto. Trata-se de uma experiência acerca dos limites do humano, de sua relação com o animal que ele não pode deixar de perceber em si próprio – e que o espreita. O ser humano é o ser capaz da nudez. Retorno de uma mirada sobre nossa própria finitude, o pudor é uma experiência de estranhamento, no sentido que essa palavra adquiriu a partir de Freud, ou seja, viver como estrangeiro aquilo que nos é mais íntimo e como íntimo, próprio, aquilo que nos é mais estrangeiro.

Esse sentimento, no entanto, varia cultural e historicamente. A nudez não se apresentava para o rei Luís XIV do mesmo modo como se apresentou para Jimmy Carter. A fístula anal do primeiro foi tratada, exibida, discutida, tocada por sua corte com uma sem-cerimônia considerável; comparativamente, a mídia e a entourage presidencial tratou da convalescença de Carter de modo discreto, quando ele se submeteu a uma cirurgia para tratar de problemas no mesmo sítio. Radicalizando o argumento, creio ser legítimo dizer que a diferença entre duas culturas poderia ser formulada a partir daquilo que faz os indivíduos se sentirem nus. Assim, embora vários grupos indígenas no Brasil possam encarar sem constrangimentos o corpo feminino, algumas etnias tendem a ver no sangue menstrual algo a ser ocultado. Na França dos séculos 16 e 17, os banhos públicos, a nudez coletiva nessas circunstâncias, ainda eram socialmente aceitáveis. Mesmo quando passaram a ser proibidos, a nudez de membros de uma classe não era considerada vergonhosa se presenciada por membros de uma classe subalterna – estes eram percebidos de algum modo como parte dos utensílios domésticos.

É possível afirmar que o Renascimento marca na Europa uma trajetória gradativa de controle corporal (como se portar à mesa, onde defecar ou urinar, o estabelecimento de regras para a compartilha de cama com pessoas de posições sociais distintas) que culminará na individualização, na valorização da intimidade, e do autocontrole. Erasmo poderia ser mais tolerante acerca dos gases produzidos pela digestão do que os manuais de etiqueta dos séculos XIX ou XX - muito mais estritos acerca da disciplina corporal. No caminho do autocontrole corporal, da valorização da intimidade, observa Nobert Elias, desaparece “a despreocupação em mostrar-se nu, como também em satisfazer necessidades corporais na frente dos outros. Tornando-se menos comum na vida social esse espetáculo, adquire uma nova importância a descrição do corpo na arte”. Assim, no século XIX, a nudez artística era bem melhor tolerada que a nudez de uma paciente diante de seu médico.

O pudor é a fronteira daquilo que poderíamos considerar civilizado. A nudez, nesse sentido, é uma vivência que nos coloca nas fronteiras da civilidade. A forma como nos percebemos verdadeiramente nus tem sempre um valor humanizador – mesmo que esse valor se revele através de um sentimento de constrangimento. Por isso, não podemos dissociar pudor de despudor.

Permitam-me agora problematizar a hipótese que viemos defendendo. Ora, um grande desafio teórico para aqueles interessados em discutir o estatuto do corpo nas sociedades contemporâneas foi lançado por Foucault, em sua famosa e inconclusa História da Sexualidade. Ali encontramos o ápice de um lento processo de rompimento com o pensamento excessivo, que encontramos, por exemplo, na obra de Bataille, sob cuja influência podemos situar muito dos primeiros trabalhos de Foucault. Se fora possível concluir a partir da História da Loucura que a sociedade moderna, a sociedade do trabalho, da disciplina, da razão, constitui-se a partir da repressão do excesso, do erotismo, este último Foucault nos desafia e revê antigas conclusões: a forma de poder que se constitui nos últimos séculos nas sociedades ocidentais não é estruturada a partir de uma repressão da sexualidade, mas de sua exacerbação discursiva, de sua conversão em estímulo para a produção de corpos dóceis. Estaríamos, portanto, equivocados em imaginar que o principal mecanismo de constituição do poder na sociedade moderna fosse repressivo, estruturado sobre a pudicícia; o poder moderno é produtivo, ele estimula, disponibiliza, potencializa, e não vive exclusivamente como força negativa, coercitiva. Seria o despudor, a mobilização incansável de nossa sexualidade em inúmeros setores da vida quotidiana, uma das principais estratégias da sociedade do consumo? Essa suposição parece encontrar eco em inúmeras evidências de nosso dia-a-dia. Afinal, não erotizamos o consumo de cervejas, não estamos sempre preocupados com nossa performance amorosa, com o modo de corrigi-la quimicamente?

E se estivéssemos mesmo diante daquilo que Marcuse chama de dessublimação repressiva? E se estivéssemos diante de uma colonização de nosso erotismo pelas estruturas de poder, como julga Foucault? A um homem já maduro, como eu, cai bem o talhe desse tipo de raciocínio.

Vencer o pudor que cercava nossos corpos e desejos foi imaginado por muitas décadas como caminho fundamental para nossa libertação, todavia. Mencionemos de passagem o papel da psicanálise nesse sentido. Mas há também exemplos na literatura e na filosofia. Blanchot já disse acerca de Sade, por exemplo, que se tratava do espírito mais livre que o gênero humano jamais produziu. Em Justine, o marquês fala pela boca de Esterval: "A única causa de todos os nossos erros reside no que sempre tomamos por leis da natureza, o que não vem senão de costumes ou de preconceitos da civilização. (...) Ofender as leis dos homens é ultrajar um fantasma". Nessa mesma linha, Bataille não nos falou do excesso erótico como um valor fundamental, como espaço de resistência à sociedade do trabalho, da razão e do controle? O Surrealismo, de um modo amplo, não nos fez ver a necessidade de ampliar nossos horizontes existenciais, rasgando os véus da pudicícia, ampliando os canais que nos ligam aos nossos desejos mais íntimos?

Mesmo que aceitemos a força da tese foucaultiana para explicar diversos fenômenos políticos, econômicos e culturais, ainda cabe perguntar: a sociedade que invade o desejo, que rasga os véus do pudor, não produziria uma forma de repressão mais profunda? Afinal, o estranhamento do pudor pode ser vencido? Acredito que novas formas de pudor se constituem em uma sociedade em que a exposição de genitálias, do ato sexual, de formas não convencionais de erotismo passam a contar com uma tolerância bem maior que outrora.

Acredito que ainda nos sentimos nus diante de nossa finitude, que ainda nos espanta e envergonha a precariedade de nossos corpos. Por isso, é preciso eternizá-los, através de sua higienização, de cuidados cosméticos, de cirurgias plásticas que contrariam a gravidade e o tempo. O grande pudor da sociedade de consumo é não estar apto ao consumo, falhar diante das perspectivas de prazer, não obter o gozo máximo, o desempenho ótimo. É sermos lembrados de que afinal somos precários, mortais.

sábado, 6 de dezembro de 2008

Sexus Sequior



Faz algum tempo que venho lendo textos relativos ao humor e, mais especificamente, ao humor como uma forma de entendimento do mundo. Dois autores se destacam nesta perspectiva: Kant e Schopenhauer. As reflexões de Schopenhauer sobre o riso estão em sua obra máxima, O Mundo como Vontade e Representação. Para resumir uma longa estória, o tal livro foi publicado em volumes diferentes, mas os volumes não são nada mais do que edições diferentes do mesmo livro. Claro que, em acordo com a lei de Murphy, eu comprei o volume errado: aquele em que ele escreve menos sobre o riso. Foi então que resolvi vasculhar a internet e encontrei suas obras completas, digitalizadas e disponibilizadas pela Robarts Library, a biblioteca da Universidade de Toronto.

Lendo uma coisinha aqui, outra ali, descobri que seu último livro, Parerga e Paralipomena, de 1851, traz um pequeno ensaio chamado “Sobre as Mulheres”. Reproduzo alguns trechos, retirados de uma tradução portuguesa, abaixo. Embora não se trate de um texto sobre humor ou riso, Schopenhauer me fez refletir sobre a linha tênue que separa o cômico do trágico.


O porco.

Cynthia



O simples aspecto da mulher revela que não é destinada nem aos grandes trabalhos intelectuais, nem aos grandes trabalhos materiais. Paga a sua dívida à vida não pela ação mas pelo sofrimento: as dores da maternidade, os inquietos cuidados da infância; deve obedecer ao homem, ser uma companheira paciente que o conforte. Não é feita para grandes esforços, nem para dores e prazeres excessivos; a vida para ela pode decorrer mais silenciosa, mais insignificante, mais serena que a do homem, sem que ela seja, por temperamento, melhor ou pior.

O que torna as mulheres particularmente aptas para cuidar, para dirigir a nossa primeira infância, é o fato delas mesmas se conservarem pueris, frívolas e de inteligência acanhada; conservam-se toda a vida umas crianças grandes, uma espécie de intermediárias da entre as crianças e o homem. [...]

A natureza parece ter querido fazer com as raparigas o que se chama, em estilo dramático, um lance teatral; durante alguns anos adorna-as duma beleza, duma graça e duma perfeição extraordinárias, à custa do resto da sua vida,a fim de que, durante esses rápidos anos de esplendor, possam apoderar-se fortemente da imaginação dum homem e levá-lo a encarregar-se lealmente delas, de qualquer modo que seja. Para levar a cabo semelhante empreendimento, a simples reflexão e a razão não dariam suficiente garantia. Por isso a natureza deu a mulher, como a qualquer outra criatura, armas e instrumentos necessários para lhe assegurar a existência e só durante o tempo indispensável, porque a natureza, neste caso, procedeu com sua costumada economia: assim como a formiga fêmea, depois da sua união com o macho, perde as asas que lhe seriam inúteis e até perigosas no período de incubação, assim também a maior parte das vezes, depois de dois ou três partos, a mulher perde a beleza, sem dúvida pela mesma razão. Daí resulta as raparigas considerarem geralmente as ocupações domésticas ou os deveres do seu estado como coisas acessórias e puras bagatelas, enquanto reconhecem a sua verdadeira vocação no amor, nas conquistas e em tudo que daí depende, a toilette a dança, etc.

[...]

O que distingue o homem do animal é a razão; confinado no presente, lembra-se do passado e pensa no futuro: daí a sua prudência, os seus cuidados, as suas freqüentes apreensões. A razão débil da mulher não participa dessas vantagens nem desses inconvenientes; sofre de uma miopia intelectual que lhe permite, por uma espécie de intuição, ver de uma maneira penetrante as coisas próximas; mas o seu horizonte é limitado, escapa-lhe o que é distante. Daí resulta que tudo quanto não é imediato, o passado e o futuro, atuam mais fracamente na mulher do que em nós: daí também a tendência muito mais freqüente para a prodigalidade, e que por vezes toca as raias da demência.

[...]

Em circunstâncias difíceis é preciso não desdenhar recorrer, como outrora os germanos, aos conselhos das mulheres, porque elas têm uma maneira de conceber as coisas totalmente diferente da nossa. Vão direitas, ao fim, pelo caminho mais curto, porque fixam geralmente os olhares no que têm mais à mão. Nós, pelo contrário, não vemos o que nos salta aos olhos, e vamos procurar muito mais longe; precisamos que nos levem a uma maneira de ver mais simples e mais rápida. Acrescente-se ainda que as mulheres têm decididamente um espírito mais ponderado, e só vêem nas coisas o que nelas há realmente; ao passo que nós, impelidos pelas paixões excitadas, aumentamos os objetos e representamos quimeras.

As próprias aptidões naturais explicam a piedade, a humanidade, a simpatia, que as mulheres testemunham aos desgraçados, ao passo que são inferiores aos homens no que respeita à equidade, à retidão e à escrupulosa probidade. Devido à fraqueza da sua razão, tudo o que é presente, visível e imediato, exerce sobre elas um domínio contra o qual não conseguiriam prevalecer as abstrações, nem as máximas estabelecidas, nem as resoluções energéticas, nem consideração alguma do passado ou do futuro, do que está afastado ou ausente. Possuem da virtude as primeiras e principais qualidades, mas faltam-lhes as secundárias e acessórias.

Assim, a injustiça é o defeito capital dos temperamentos femininos. Isto resulta da falta de bom senso e de reflexão que apontamos; e o que agrava ainda este defeito, é que a natureza, recusando-lhes a força, deu-lhes a astúcia, para lhes proteger a fraqueza: daí a sua instintiva velhacaria e invencível tendência para a mentira. O leão tem os dentes e as garras; o elefante e o javali as presas, o touro os chifres, a siba a tinta, que lhe serve para turvar a água em volta dela; a natureza deu a mulher apenas a dissimulação para se defender e proteger; esta faculdade supre a força que o homem tira do vigor dos membros e da razão.

A dissimulação é inata na mulher, tanto na mais esperta como na mais tola. É lhe tão natural usá-la em todas as ocasiões como a um animal atacado o defender-se logo com as suas armas naturais; e, procedendo assim, tem até certo ponto consciência dos seus direitos, o que torna quase impossível encontrar uma mulher absolutamente verdadeira e sincera. É justamente por isso que ela percebe tão facilmente a dissimulação nos outros e não é prudente usá-la com ela.

Desse defeito fundamental e das suas conseqüências nascem a falsidade, a infidelidade, a traição, a ingratidão, etc. [...]

Os homens novos, belos e robustos, são destinados pela natureza a propagar a espécie humana, para que esta não degenere. Tal é a vontade firme que a natureza exprime pelas paixões das mulheres. É certamente de todas as leis a mais antiga e poderosa. Desgraçados pois, dos interesses e dos direitos que lhes opuserem obstáculos. Serão, no momento oportuno, suceda o que suceder, implacàvelmente esmagados, porque a moral secreta, inconfessada e mesmo inconsciente, mas inata nas mulheres, é esta: 'Fundamo-nos no direito de enganar aqueles que imaginam que podem confiscar em seu proveito os direitos da espécie, pelo fato de proverem econòmicamente à nossa subsistência. É a nós que foram confiadas, é de nós que dependem a constituição e a salvação da espécie, a criação, da geração futura; é a nós que compete trabalhar nisso com toda a consciência'.

As mulheres, porém, não se interessam absolutamente nada por este principio superior in abstracto, comprendem-no apenas in concreto, e quando a ocasião se apresenta, não têm outro modo de o exprimir senão pela maneira de proceder; e sobre este assunto a consciência deixa-as muito mais em sossego do que se poderia crer, porque, no recesso mais íntimo do coração, sentem vagamente que, traindo os seus deveres para com o indivíduo, cumprem-no ainda melhor para com a espécie, que tem direitos infinitamente superiores.

Como as mulheres são criadas unicamente para a propagação da espécie e toda a sua vocação se concentra neste ponto, vivem mais para a espécie que para os indivíduos, e tomam mais a peito os interesses da espécie que os dos indivíduos. É o que dá certo a todo o seu ser e à sua conduta uma certa leviandade e opiniões opostas às dos homens: tal é a origem desta desunião tão freqüente no casamento, que já se tornou quase normal.

[...]

Note-se ainda que o homem em geral fala com certas atenções e humanidade aos mais ínfimos de seus subordinados, mas é insuportável ver com que altivez uma senhora da sociedade se dirige a uma mulher de classe inferior, que não esteja ao seu serviço. Isso é devido talvez a que entre as mulheres as diferenças de classe são muito mais precárias que entre os homens e essas diferenças podem fàcilmente ser modificadas ou suprimidas; a situação que um homem ocupa depende de mil considerações; quanto às mulheres, uma só decide tudo: o homem a quem souberem agradar. A sua única função coloca-as num pé de igualdade bem mais acentuado, e por isso procuram criar entre si diferenças de categoria.

Foi necessário que a inteligência do homem se obscurecesse pelo amor para que chamasse belo a esse sexo de pequena estatura, ombros estreitos, ancas largas, e pernas curtas; toda a sua beleza reside, com efeito, no instinto do amor. Em lugar de se lhe chamar belo, teria sido mais justo chamar-lhe inestético. As mulheres não têm nem o sentimento nem a inteligência da música, como não têm o da poesia, ou das artes plásticas; o que há nelas é pura macaqueação, puro pretexto, pura afetação explorada pelo desejo de agradarem.[...]. Disse-o Rousseau: 'As mulheres, em geral, não apreciam arte alguma, não entendem nenhuma e não têm nenhum talento." (Carta a d'alembert). Aqueles que não se detêm nas aparências já certamente o notaram. Basta observar, por exemplo, o que as ocupa e lhes atrai a atenção num concerto, na ópera ou na comédia, notar a sem-cerimônia com que, nas mais belas passagens das maiores obras primas, continuam a sua tagarelice. Se é verdade os gregos não admitirem as mulheres nos espetáculos, tinham muita razão; nos seus teatros podia-se, pelo menos, ouvir alguma coisa. No nosso tempo, seria bom acrescentar ao mulier taceat in eclesia, um taceat mulier in theatro, ou então substituir um preceito pelo outros, e suspender este último em letras grandes no pano da cena.

[...]

Dever-se-ia tomar como regra esta sentença de Napoleão I: 'As mulheres não têm categoria'. Chamfort diz também com muito acerto: 'São feitas para negociarem com as nossas fraquezas, com a nossa loucura, mas não com a nossa razão. Há entre elas e os homens simpatias de epiderme, e muito poucas simpatias de espírito, de alma e de caráter'. As mulheres são o sexus sequior, o sexo segundo, a todos os respeitos, feito para conservar à parte e no segundo plano. Certamente, deve-se-lhes poupar a fraqueza, mas é ridículo prestar-lhes homenagem, o que até nos avilta aos seus olhos. A natureza, separando a espécie humana em duas categorias, não fez as partes iguais... Foi certamente o que sempre pensaram os antigos e os povos do Oriente; compreendiam melhor o papel que convém às mulheres, do que nós fazemos com nossa galantaria à antiga moda francesa e a nossa estúpida veneração, que é na verdade a mais completa expansão da tolice germano-cristã. Isto só serviu para as tornar arrogantes e impertinentes: por vezes fazem-me pensar nos macacos sagrados de Benarès, que têm tanto a consciência da sua dignidade sacrossanta e da sua inviolabilidade, que julgam que tudo lhes é permitido.

A mulher no Ocidente, o que chamam a dama, encontra-se numa posição absolutamente falsa, porque a mulher, o sexus sequior dos antigos, não foi feita de modo nenhum para inspirar veneração e receber homenagens, nem para levantar mais a cabeça que o homem, nem para ter direitos iguais aos dele. As conseqüências dessa falsa situação são demasiado evidentes. Seria para desejar que na Europa se pusesse de novo no seu lugar natural esse número dois da espécie humana e se suprimisse a dama, alvo das zombarias da Ásia inteira, da qual Roma e Grécia se teriam rido igualmente. Esta forma seria um verdadeiro benefício no ponto de vista político e social. O princípio da lei sálica é tão evidente, tão indiscutível, que parece inútil formulá-lo. O que se chama verdadeiramente a dama européia é uma espécie de ser que não deveria existir. Só devia haver no mundo mulheres caseiras aplicando-se aos trabalhos domésticos, e raparigas que aspirassem ao mesmo fim e se educariam sem arrogância, para o trabalho e para a submissão. É precisamente por haver damas na Europa que as mulheres de classe inferior, isto é, a maior parte, são muito mais para lastimar do que no oriente.

As leis que regem o casamento na Europa supõem a mulher igual ao homem, e têm assim um ponto de partida falso. No nosso hemisfério monógamo, casar é perder metade dos direitos e duplicar os deveres. Em todo o caso, visto que as leis concederam às mulheres os mesmos direitos dos homens, também lhes deveriam ter conferido uma razão viril. Quanto mais as leis conferem às mulheres direitos e honras superiores ao seu merecimento, tanto mais restringem o número daquelas que têm realmente parte nesses favores, e tiram às outras seus direitos naturais, na mesma proporção em que os deram excepcionais a algumas privilegiadas.

[...]

Concedendo à mulher direitos acima da natureza, impuseram-lhe igualmente deveres acima da natureza; daí decorre para ela uma infinidade de desgraças. Essas exigências de classe e de fortuna são de tão grande peso que o homem que se casa comete uma imprudência se não contrai um casamento 'vantajoso'; e se deseja encontrar uma mulher que lhe agrade completamente, procurála-á fora do matrimônio, e contentar-se-á com assegurar a situação da amante e dos filhos. Se pode fazê-lo duma forma justa, razoável, suficiente, e a mulher cede, sem exigir rigorosamente os direitos exagerados que só o casamento lhe concede, perde então a honra, porque o casamento é a base da sociedade civil e prepara para si uma triste existência, porque é feitio do homem preocupar-se demasiadamente com a opinião dos outros. Se, pelo contrário, a mulher resiste, corre o risco de desposar um marido que lhe desagrada ou de se consumir conservando-se solteirona, porque tem poucos anos para se decidir.

Arthur Schopenhauer

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008



Jonatas anda todo envaidecido depois que o resultado da seleção do doutorado foi publicado. É que o primeiríssimo lugar foi para Erliane Miranda, orientanda dele desde a graduação. Parabéns para Erli e para tod@s @s aprovad@s!

Credo. Isso aqui tá parecendo coluna social. Deve ser o cansaço de fim de ano.

Cynthia

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Rainha da Noite

Como não agüento mais a Rainha da Noite me assustando toda vez que entro no Cazzo ("Der Hölle Rache"... Valei-me!) , resolvi colocar aqui duas versões do Youtube da famosa árIa, junto com uma tradução livre (bastante!), mais abaixo. A idéia é que veneno também é antídoto. Assim, a mardade de uma pode silenciar as outras duas. Ih, mas vai sempre sobrar uma mai mar de todas.

Prestar atenção no primeiro vídeo.





Der Hölle Rache kocht in meinem Herzen,
Tod und Verzweiflung flammet um mich her!
Fühlt nicht durch dich Sarastro Todesschmerzen,
So bist du meine Tochter nimmermehr.
Verstossen sei auf ewig,
Verlassen sei auf ewig,
Zertrümmert sei'n auf ewig
Alle Bande der Natur
Wenn nicht durch dich Sarastro wird erblassen!
Hört, Rachegötter, hört der Mutter Schwur!

O fogo dos inferno da vingança tá assando meu coração,
As labareda da morte e dos aperreio tá por tudo lado!
Se Sarastro não se torcer todin' de dor pela tua mão,
Então vancê num é minha filha, ess' menina!
Largada pra sempre!
Abandonada pra sempre!
Destruído vai ser pra sempre
Tudo os laço da natureza,
Se vancê num deixar Sarastro branco feito paper!
Pestenção, tudo os Exus Tranca Rua, escuita a jura de uma mãe!

Biossociabilidade e biopolítica: reconfigurações e controvérsias em torno dos híbridos nanotecnológicos


Jonatas Ferreira e Rosa Maria Pedro
Introdução

[Na falta de tempo, ou inspiração, vai a Introdução do artigo a ser publicado na próxima edição da revista argentina Redes]

As novas tecnologias de manipulação da vida, em especial aquelas que operam em escala molecular, tais como a transgênese, a produção de tecidos a partir de células-tronco, perspectivas de terapia gênica, a produção sintética de genomas por nanotécnicas, acenam com a possibilidade de aperfeiçoamento indefinido do corpo humano e, no limite, imortalidade. Para autores como Sfez, Blumenberg ou mesmo Bauman, estaríamos diante da eminência de uma 'solução' ou resposta técnica, secular para um sonho antigo e milenar: o da imortalidade. Partindo de uma outra linha de argumentação, e alinhando-nos a pensadores como Foucault, Agamben, Rabinow e Rose, acreditamos que esse tipo de constatação requer uma questão preliminar: o que significa a produção e reprodução da vida para a biologia molecular e o conjunto de novas técnicas que ela vem mobilizando - em especial a nanotecnologia? Divergências entre esses últimos autores sendo desconsideradas, parece consensual uma idéia: a biopolítica ainda é o campo em que essa pergunta pode e deve ser formulada.

Interpretando Foucault a partir de Hannah Arendt, Agamben acredita que, desde os gregos, a política estrutura-se a partir da relação ambígüa que se trava entre uma vida ética e politicamente digna de ser vivida e uma vida biológica, uma “vida nua”. Para ele, a política moderna se estabelece quando as discussões acerca dos destinos da polis não comportam outro âmbito de significação da vida humana que não o labor, a satisfação de necessidades biológicas. Este cenário compreende a articulação de uma aparente contradição: o ato político, por um lado, percebe-se civilizador, determinado a partir de uma ordem não meramente orgânica, natural, e, por outro, pressupõe uma articulação e inscrição no âmbito da vida pura – ainda que essa articulação se expresse sob a forma de exclusão. O ato civilizador se estrutura por oposição e, ao mesmo tempo, a partir de uma contaminação com o puramente biológico. Desse modo, matar é incivilizado; mas durante a guerra o inimigo é apenas proliferação de vida tout court. De uma maneira ampla, poderíamos dizer que sempre que o exercício da política levantar a questão da soberania, de elaborar a possibilidade da decisão soberana, necessariamente estaremos envolvidos com questões como: sob quais condições o civilizado pode invadir legitimamente o terreno da vida nua, da vida biológica? O poder soberano é aquele que decide quando e como a fronteira entre esses dois campos (vida civilizada, vida nua) deve ser ultrapassada. Por esse motivo, sua jurisdição é sempre limítrofe. Soberano é aquele que decide quando a linha divisória entre o civilizado e o biológico, entre cultura e natureza, deve ser ultrapassada – e aqui percebemos a dívida de Agamben para com o pensamento de Carl Schmitt.

Mas como essas considerações teóricas se aplicam ao problema que nos propomos discutir? Passemos a uma ilustração. O desconforto acerca do que fazer com células-tronco embrionárias seria, de fato, um exemplo da mesma dinâmica civilizadora e das aporias que a idéia de biopoder, tal como formulada por Agamben, abre: são elas seres humanos potenciais ou vida nua? Teríamos direito de realizar pesquisas com células-tronco embrionárias? Qualquer que seja a nossa percepção acerca deste tema, e as respostas que possamos dar às questões acima, ele define um campo de possibilidades que poderíamos chamar de político – ou, mais precisamente, a possibilidade do político construída pela cultura ocidental, tal como o formulam Schmitt, Arendt e Agamben. O espaço do poder tornou-se a vida biológica. Ainda um exemplo: diversos autores comentaram acerca do estranho caso de um norte-americano que teve seqüências genéticas do seu baço patenteadas por uma grande companhia farmacêutica. Diante de sua reivindicação, de que lhe pagassem direitos sobre o enorme lucro que a empresa estaria obtendo com sua informação genética, a Suprema Corte americana foi taxativa: comercializar uma parte do corpo, da vida humana, é contra a lei. Incivilizado, portanto. Pode-se, do mesmo modo, considerar esse material genético, multiplicado em laboratório apenas como informação. De que outra forma o direito de comercialização das informações genéticas do litigante seria garantido à grande empresa farmacêutica em questão? Não é vida, mas seqüência de bases nitrogenadas, moléculas de material inorgânico. A zona de fronteira que é objeto do ato político – o espaço entre a vida humana e a vida nua, entre o que é culturalmente valioso e o que é apenas engrenagem, proliferação do orgânico ou inorgânico, como é o caso de uma seqüência de bases nitrogenadas – estabelece uma relação evidente entre a biopolítica e uma tanatopolítica, entre o que deve ser considerado vivo e o que deve ser considerado inanimado, entre o que deve ser considerado como base da vida social e o que deve ser considerado matéria disponível, estoque. Nestes dois exemplos, todavia, o exercício biopolítico não envolve uma dimensão tanatológica nos termos propostos por Agamben. De fato, não se trata mais simplesmente de uma decisão entre o que deve viver e o que deve morrer, mas o que deve ser considerado vivo e o que deve ser considerado inanimado. Esse pequeno deslizamento conceitual parece importante para entender o novo campo de biossociabilidade que se constitui com as novas biotecnologias.

Há, portanto, uma dimensão profundamente política nas novas tecnologias de manipulação molecular da matéria que não pode ser entendida prontamente a partir do modelo jurídico-político proposto por Giorgio Agamben. Existe no terreno daquilo que se convencionou chamar de convergência tecnológica uma mobilização estranha de aspectos biopolíticos e tanatológicos que convém examinar e que decorre do que identificamos acima como deslizamento conceitual. Neste ensaio consideraremos muito especificamente o surgimento de um novo paradigma para entender e manipular a vida biológica, nomeadamente, o surgimento da nanobiotecnologia, em que a distinção entre o que é animado e o que é inanimado deixa de ser clara. O que significa o surgimento de uma nova medicina em que a molécula, o átomo, e não mais o organismo é a unidade analítica básica? Por um lado, certamente a continuidade do processo que se inicia com a constituição da anatomo-clínica e sua ênfase analítica, não mais no organismo e seus órgãos, mas na análise de tecidos. Esse processo deu lugar a algumas outras rupturas epistemológicas fundamentais: em direção não mais ao tecido, mas à célula; não mais em direção à célula mais ao genoma; não mais em direção ao genoma mais à molécula, ao átomo.

O que significa para o projeto político ocidental o fato de a distinção política fundamental - entre amigo e inimigo, sim; mas fundamentalmente entre o que deve viver e o que deve morrer – encontrar diante de si o embaraço das fronteiras entre o vivo e morto como espaço de operação tecnocientífica? É preciso questionarmos esse lugar político fundamental que a tecnociência passa a ocupar. Falemos imediatamente daquilo que salta aos olhos: isso significa que o biopoder encontra também aqui uma dimensão ecológica que não pode deixar de ser trabalhada. O grey goo, cenário distópico traçado por Eric Drexler, onde a ação de nano-robôs consumiriam a vida na terra, naquilo que ele apresenta de paranóico, deve ser entendido como metáfora das preocupações de controle mediante o qual o biopoder precisa pensar sua legitimidade. Nesse sentido, o ponto de vista foucauldiano, muito mais interessado nos processos micropolíticos que Giorgio Agamben, nos ajuda a perceber que o político se instala também no nível molecular a partir de estratégias rizomáticas. O grey goo como metáfora da força rizomática das grandes corporações sinaliza para o terror ambiental que corrói a legitimidade e ao mesmo tempo demanda a ação soberana. A ansiedade diante da possibilidade de desastres ambientais aparecem hoje claramente em discussões acerca da toxidade de novos materiais produzidos pela nanotecnologia ou sobre o destino a ser dado ao lixo produzido com esse tipo de tecnologia.

Propomos, aqui, problematizar certas ações e intervenções nessa zona limite, o nível molecular, onde aqueles que são capazes de produzir efeitos e conseqüências não são apenas os “atores sociais”, mas, sobretudo, os não-humanos. Em outras palavras, propomos uma interpretação de certas intervenções tecnológicas recentes a partir da questão do político tal como circunscrito acima. Este modo de colocar o problema possui afinidades com as noções que se articulam em torno do referencial de redes sócio-técnicas, tal como proposto por Bruno Latour e Michel Callon, dentre outros. Problematizar a tecnociência que opera na escala do infinitamente pequeno – campo de convergência de duas técnicas revolucionárias, a biologia molecular e a nanotecnologia, nível em que “a diferença entre o orgânico e o inorgânico, entre o vivo e o não vivo” deixa de fazer sentido – pode dar visibilidade aos hibridismos que caracterizam o contemporâneo. As redes que aí se produzem – e os debates que suscitam em torno da produção e circulação dos híbridos – permitem-nos compreender o que pode uma sociedade e quais os seus limites, o que certamente não se restringe às suas possibilidades tecnológicas, mas sobretudo à sua política e sua ética.

Procuraremos, assim, refletir acerca das questões políticas, éticas e culturais que subjazem à perspectiva de uma sociedade que se articula em torno de uma dimensão técnica literalmente molecular, buscando explorar os horizontes biopolíticos e biossociais que, a partir daí, se podem vislumbrar.