quarta-feira, 27 de maio de 2009

Notas sobre "futebol e violência" -- IV



Ufa! Cheguei ao fim, juro, juro...

Ainda mais, espírito de porco persecutório, gordinho esdrúxulo, gatinho histriônico, bem... er... entendi o recado.

Do futebol (terceiro clichê)...

Talvez, de todos os clichês, o agora analisado seja o mais preconceituoso em relação ao futebol -- atualmente é aquele que está se tornando o mais popular, provavelmente por causa do recrudescimento da violência nos estádios. É um clichê que tem suas raízes na psicologia social do século XIX, sendo uma espécie de atualização do famoso estudo de Gustave Le Bon: "A psicologia das multidões" (ver Gustave Le Bon, "Psychologie des foules", Paris, Retz, 1975). Seria a "demonização" da multidão, entendida como uma horda anárquica e desorganizada, movida basicamente por instintos, personificando, como tal, a morte dos laços sociais. Seria como se, a partir da multidão, a interação social deixasse de existir. E, uma vez que os instintos, nessa psicologia racionalista, são vistos de uma forma "negativa", significando mais uma perversão da razão do que outra coisa, a violência tornar-se-ia, como instinto típico, o leitmotiv da multidão.

E como ficaria o indivíduo na horda?

Nada bem. Ele sofreria um processo de regressão cognitiva, com a conseqüente perda do seu controle volitivo, sendo comandado pelo caos impessoal da multidão. O indivíduo perderia sua individualidade e sua identidade, pois seria vítima de uma fusão entre sua personalidade e a massa. O resultado de todo esse processo é aterrador: perdendo sua individualidade, o indivíduo perde sua razão, afasta-se da "civilização" e se inunda de "instintos básicos", principalmente os mais pavorosos, a começar pela violência. Sim, ele se torna muito violento...

Tal visão seria um clichê de matiz conservador, atestando um conhecido medo de base: o medo das massas, tão característico do século XIX e de várias "elites" de nossa época. Seria a defesa desesperada da integridade do indivíduo diante do poder de fusão da multidão. Pode-se até conceber uma situação em que ocorra tal fusão; pode-se até pensar em alguns exemplos concretos de fusão, principalmente nos casos cujo "tema", que move e interpela a turba, seja "negativo" e de fácil assimilação emocional; contudo, tais situações são bem específicas e não podem funcionar como paradigma para outras situações que envolvam "multidões".

Sociologicamente, "a multidão como horda ensandecida" seria uma interpretação de tipo irracional da ação coletiva. Ainda que se possa conceber determinadas ações coletivas irracionais, geralmente a ação coletiva, mesmo quando ocorrem explosões de violência, é inteligível e a violência motivada, sendo dificilmente assimilada a explosões irracionais.

O clichê pode ser conservador, mas não é monopólio de intelectuais assumidamente conservadores. Pode-se encontrar a utilização do clichê, até mesmo com mais virulência, entre intelectuais de esquerda, principalmente na análise do fenômeno do hooliganismo (Ver Jean-Marie Brohm, "Une violence cannibale", Manière de voir -- Le monde Diplomatique --, n°39, maio-junho 1998. O título do artigo, sem dúvida, é extremamente sugestivo; já o título de um livro do autor, praticamente diz tudo: Les meutes sportives. Critique de la domination. Lembrar que "meutes" em francês significa uma tropa de cachorros treinados para a caça...). E, de fato, as torcidas organizadas são vistas, não apenas no meio acadêmico, mas também no "senso comum", como hordas babando sangue (e, muitas vezes, a violência das torcidas a isso se assemelha). O clichê emigrou de uma avaliação geral de toda multidão e de toda ação coletiva, para uma consideração específica de um fenômeno social particular: as torcidas organizadas.

Contudo, seria difícil considerar a torcida organizada como uma horda anárquica e desorganizada; ao contrário, ela parece ser "ultraorganizada" -- vide o exemplo de hooligans alemães utilizando meios sofisticados de comunicação e de organização durante a copa do mundo na França. A torcida organizada não é uma "horda", embora seja violenta -- ao menos, os rituais que "guiam" as condutas dos indivíduos na torcida organizada parecem estimular as relações de agressividade e, consequentemente, a transformação desta em violência.

Tal violência seria irracional? Acredito que não. Boa parte da violência das "organizadas" é nitidamente premeditada, motivada e dirigida contra seu pior inimigo: uma outra organizada. E, na maioria das vezes, a violência das organizadas nunca se concretiza, realizando-se num complexo aparato de mise-en-scène, no qual o teatro e a simulação de violência -- a "exibição" da torcida -- parecem ser mais importantes do que propriamente o confronto físico entre as torcidas.

Pode-se fazer a hipótese de que a "ultra-organização" das organizadas surja justamente a partir de um meio "anômico", isto é, de um meio social onde as normas e as regras perderam boa parte de sua legitimidade e de sua eficácia; onde as pessoas não sabem mais quais são os direitos e os deveres de um convívio social contratual e institucional; onde não sabem mais a quem recorrer porque a legitimidade de toda sanção foi por água abaixo. As organizadas se nutrem então da anomia? Talvez. Da insegurança social generalizada? Pode ser. No entanto, mesmo que tais hipóteses sejam falsas, acredito que as "organizadas" são, de fato, organizadas e que sua violência, quando acontece, não é "instintiva" ou "irracional", e sim desejada e, muitas vezes, premeditada.

Inconclusões

Depois de todo esse périplo, confesso que termino a viagem um tanto insatisfeito. Na verdade, meu desagrado recai justamente na divisão básica do artigo: a violência do e a violência no futebol. Inicialmente, pensei que tinha sido um bom insight e, de fato, tal divisão ajudou-me a perceber algumas questões; mas com o transcorrer da análise fui enredando-me em algumas dificuldades teóricas. O que quero dizer é o seguinte: várias teorias examinadas no artigo analisam a violência como sendo no futebol e, também, do futebol. E, provavelmente, a realidade da violência está no e vem do futebol; afinal de contas, ela pode perpassar toda e qualquer instituição social. No fundo, enredei-me nas aporias do dualismo entre o externo e o interno, entre o "dentro" e o "fora", entre o no e o do...

Como superar tais aporias?

Sinceramente, não sei bem... Talvez uma das formas seja reavaliar o papel do futebol na sociologia e na antropologia. O futebol sempre aparece explicado por outras realidades, como a religião e a política. Sua verdade está sempre deslocada de si mesmo, em outro lugar que não o do futebol. O ponto de referência para compreendê-lo sempre está fora de si mesmo, como se, somente através da política ou religião, por exemplo, o futebol pudesse realmente ser entendido. Como tal, não seria inteligível; como derivação de outra instância, enfim seria compreendido.

Talvez devêssemos compreender o fut como um fato social total; isto é, como um "campo" ou uma "instituição" relativamente autônoma. Mais: não só autônoma, mas que também condensasse várias outras determinações sociais. O futebol também serviria como ponto de referência para se entender outros fenômenos sociais como a religião, a política e, no caso do tema desse artigo, a violência. Ao invés de explicarmos o fut pela violência, faríamos a viagem inversa: explicaríamos várias facetas gerais da violência via o futebol. Imaginem explicar detalhes da missa do padre Marcelo via o espetáculo futebolístico? Em suma, a sociologia do esporte deveria reivindicar, por exemplo, um status epistemológico semelhante ao adquirido pela sociologia ou pela antropologia da religião (para uma defesa admirável dessa tese, ver Alain Ehrenberg, "Le culte de La performance", Paris, Calmann-Lévy, 1991).

Não acho que esteja exagerando. O futebol tem uma importância fundamental para o brasileiro; entender nossos valores e nossos processos de identificação passa necessariamente pelo futebol. Parodiando o antigo técnico irlandês do Liverpool, Bill Shankly: o futebol, para o brasileiro, não é uma questão de vida ou de morte. É muito mais importante do que isso. Como desprezar esse ponto de referência básico para compreendermos a nós mesmos?

Aproveitando meu entusiasmo, diria que o futebol é uma das instâncias sociais brasileiras que encarna o que tem de mais “moderno” no povo brasileiro. O fut é competição, epopéia individual, ascenso e descenso, mobilidade social, mérito, fim dos status de nascença, de etnia, social e de renda, afirmação de soberania nacional -- o fut é a encarnação do desejo igualitário do povo brasileiro. O fut é trabalho em equipe, divisão de tarefas, planificação de todos, projeto em comum, união de cores e de sentido, organizador de corações e mentes, êxito coletivo -- o fut é a encarnação do desejo de solidariedade do povo brasileiro. O fut é contingência, destino incerto, o imponderável, estando entre o certo e o errado (bola na mão ou mão na bola? Foi falta ou não?), o justo e o injusto (mereceu a vitória?), o legítimo e o ilegítimo (o juiz roubou?) -- o fut é a encarnação do desejo de justiça e liberdade do povo brasileiro.

Ufa!, fim do ufanismo (fiz isso para impressionar Cynthia)... mas vocês não acham que a fenomenologia do drible do jogador brasileiro diz tanto de nosso "caráter" quanto o candomblé e o carnaval?

Enfim, o futebol encarna e produz valores caros às sociedades democráticas... para o bem ou para o mal. Pois a epopéia futebolística também nos avisa que, na modernidade, onde tem vencedor, tem perdedor; onde tem mérito, tem "jeitinho"; onde tem altruísmo, tem egoísmo; onde tem um, tem outro. O fut nos avisa que, no nosso mundo, entre o êxito e o fracasso, há uma incerteza fundamental -- assim, ele nos consola, pois, numa sociedade onde a exigência do sucesso é absoluta e o fracasso significa depressão, pelo menos ficamos sabendo que o acaso, de vez em quando, abre uma ferida no Destino. O fut encarna, definitivamente, uma das leis cotidianas da nossa modernidade: "a interdependência complexa dos destinos na busca da felicidade" (Christian Bromberger, "Le révelateur de toutes les passions", Manière de voir -- Le monde Diplomatique --, n°39, maio-junho 1998, página 35).

Que assim seja!

Notas sobre "futebol e violência" -- III
Notas sobre "futebol e violência" -- II
Notas sobre "futebol e violência" -- I

Artur Perrusi

Referências Bibliográficas

- ACTES de la recherche en sciences sociales. (1994). Actes de la recherche en sciences sociales - Les enjeux du football(103).
- BROHM, Jean-Marie. (1983). Les meutes sportives: critique de la domination. Paris: L'Harmattan.
- COSTA, Jurandir Freire. (1984). Violência e psicanálise. Rio de Janeiro: Graal.
- EHRENBERG, Alain. (1991). Le culte de la performance. Paris: Calmann-Lévy.
- ELIAS, Nobert & DUNNING, Eric. (1986). Sport et civilisation. Paris: Fayard.
- LE BON, Gustave. (1975). Psychologie des foules. Paris: Retz.
- LE MONDE Diplomatique. (1998). Le Monde Diplomatique - Manière de Voir - Football et passions politiques (39).
- PERELMAN, Marc. (1998). Le stade barbare, la fureur du spectacle sportif. Paris: Éditions Mille et Une Nuits.
- SEBRELI, Juan José. (1998). La era del fútbol. Buenos Aires: Sudamericana.

9 comentários:

Cynthia disse...

Não me diga que você não gostou do espírito de porco?

Futebol como fato social total... e se a explicação parecer mais complicada do que a realidade?

Cynthia disse...

Não me diga que você não gostou do espírito de porco?

Futebol como fato social total... e se a explicação parecer mais complicada do que a realidade?

Artur disse...

O delírio é mais complexo do que a realidade. Mas a complicação é uma deformação neurótica da complexidade. Eu deliro; assim, minha explicação será mais complicada do que a realidade. Hehe...

Pedro Albuquerque disse...

Realmente boa sequência, professor. Para muito além da rede de casualidades e causalidades que tece o pensar a sociedade munida de olhos par tanto, a sociologia, mesmo travestida de "papo interessante para ambiente de bar" põe luz em questões muito interessantes, para dizer o menos.

Despido dos jargões e pressupostos téoricos, fico eu aqui a pensar, olhando os comentários da professora Cynthia, como eventos aparentemente simples (o que não quer dizer simplório) guarda secretas complexidades. E como a complexidade pode ser também ela uma experiência estética.

Não sei bem se conseguir comentar eu pretendi, mas, na dúvida, reitero meus elogios aos posts.

Abraços.

Cynthia disse...

Não acredito que Jonatas se deu ao trabalho de acelerar o passo do gato!!!! Artur, não está na hora de rolar um remedinho?

Artur disse...

Nossa, o gatinho, de histriônico, ficou histérico. Passarei um Felinax 500mg, um ansiolítico para gatos. Espero que acalme o coitado...

Pedro, valeu pela leitura. E lembre-se: o simples pode ser o produto do complexo.

Cynthia disse...

O remedinho não era para o gato... de qualquer forma, parece que ele desacelerou.

Artur disse...

Aaah... Entendi. Talvez, um Jonatox 850mg na veia resolva, mas acho, sinceramente, um caso perdido.

Anônimo disse...

Pois e realmente eh Programa Maravilhoso ver o desfile de 20 de Setembro in Piratini. Em 2007 eu Fui Pela Primeira Vez Assisti-lo e fiquei emocionada, hum e desfile muito lindo Feito COM CADA UM alma daqueles gaúchos Por Que Vivem la. Vale a pena.