quinta-feira, 25 de junho de 2009

Realismo, Feminismo e a Negatividade na Experiência Hermenêutica II



Realismo Crítico e Feminismo

Talvez a principal dificuldade em trabalhar as questões do feminismo de uma perspectiva realista diga respeito à confusão generalizada entre realismo e o maior inimigo teórico das feministas: o essencialismo. Não é demais lembrar que o conceito de gênero surge como uma reação às perspectivas essencialistas, especialmente aquelas que, de uma forma ou de outra, sugeriam uma adesão à célebre frase de Freud de que “anatomia é destino”.

Embora algumas formas de realismo sejam essencialistas, este não é o caso do realismo crítico. De forma bastante resumida, o realismo crítico é um tipo de realismo científico não-representativo ou não representacionista (o que significa dizer que não adere a uma teoria da verdade como correspondência) e que concebe a realidade como fundamentalmente aberta (ou não determinística) e estruturada ou estratificada (no sentido específico de que é constituída de mecanismos ou poderes subjacentes aos eventos e aos fenômenos observáveis). Em outros termos, contra as filosofias da ciência de orientação empirista, os realistas críticos contestam o realismo empírico segundo o qual “ser é ser percebido”, ao mesmo tempo em que, partindo das tradições fenomenológicas e hermenêuticas, enfatizam o papel ativo do sujeito na constituição da realidade. Não entrarei em mais detalhes acerca desta crítica, mas destacarei que uma das principais conclusões que se pode tirar desta concepção de realidade aberta e estratificada é que, contrariamente a todas as formas de reducionismo, eventos e fenômenos não podem ser atribuídos a um nível particular da realidade, mas mecanismos causais podem. Isto porque, para os realistas críticos, os “mecanismos”, “poderes” ou “configurações causais” dizem respeito a determinadas propriedades ou aspectos de um determinado objeto, ou uma estrutura em virtude da qual esse objeto apresenta um certo tipo de poder ou potência ou, ainda, uma forma de ação específica que pode ou não ser atualizada, dependendo da ocorrência de condições que ativem esses mecanismos. Dessa forma, a idéia de agência ou de poder causal é mantida, ainda que num sentido estritamente não determinista. (Bhaskar, 1979, 1997; Lawson 1997, 1999, 2003a; Hamlin, 2000, 2008).

Em termos práticos, isso significa dizer que as pessoas não podem ser caracterizadas como objetos meramente físicos, químicos, biológicos, psicológicos ou sociais, mas como estruturas emergentes que incluem todos esses estratos da realidade. Existe, uma relação de dependência entre os mecanismos de cada um desses níveis, ainda que se possa considerar que, especialmente no que diz respeito à relação entre os níveis social e psicológico, deve haver uma emergência concomitante de seus mecanismos ou, nos termos de Caroline New (2005), de uma perspectiva ontológica, é provável que a sociedade, a linguagem e a mente humana tenham emergido juntas.

Ao realismo ontológico caracterizado acima, une-se um relativismo epistemológico (mas não judicativo) que afirma que conhecemos o mundo sob descrições irredutivelmente históricas e sociais. Para os realistas críticos, isso se aplica mesmo às suas proposições ontológicas que, por este motivo, são sempre abertas e sujeitas a reformulações. Quando aplicado aos fenômenos sociais, o realismo crítico reconhece, ainda, o caráter ação-dependente dos fenômenos sociais, isto é, sua existência depende, ao menos em parte, da agência humana intencional. É importante, no entanto, manter a distinção entre os agentes humanos, por um lado, a sociedade e a cultura, por outro. Para Roy Bhaskar (1979), a sociedade humana já está sempre constituída e, neste sentido, qualquer práxis humana ou qualquer ato de objetivação só pode modificá-la. Por outro lado, a sociedade é tida como uma condição transcendental e causalmente necessária para a mediação intencional (Bhaskar, 1996b), em outros termos, não há ação humana (e isto inclui a produção de conhecimento) fora de um sistema de posições (locais, funções, regras, direitos, deveres etc.).

De forma a não estender excessivamente esta exposição, mencionarei uma distinção central ao realismo crítico britânico contemporâneo, conforme operada por Roy Bhaskar: a distinção entre a dimensão intransitiva ou ontológica do conhecimento e sua dimensão transitiva ou epistemológica. A dimensão ontológica, ou o princípio da intransitividade existencial dos objetos do conhecimento, significa simplesmente que os objetos naturais existem independentemente de nossas observações e descrições dos mesmos. Já o princípio da transitividade do conhecimento estabelece que, ainda que exista um mundo “lá fora”, este mundo só pode ser conhecido sob certas descrições social e historicamente contingentes. Se a dimensão transitiva e o relativismo epistemológico que decorre dela permite que os realistas se afastem do que se conhece como “falácia ôntica”, ou a redução do conhecimento à existência (à maneira dos essencialistas), a dimensão ontológica ou intransitiva evita a “falácia epistêmica”, ou a redução do mundo ao que se conhece sobre ele – o que, para os propósitos que nos interessam, significaria uma subsunção absoluta da natureza à cultura ou do sexo ao gênero.

Existe ainda um elemento central ao realismo crítico (especialmente em e que diz respeito à sua dimensão crítica: com base na idéia de que os valores são constituintes do próprio discurso científico, a teoria da crítica explanatória desenvolvida por Roy Bhaskar (1998) refuta a famosa “lei de Hume”, segundo a qual a transição de fatos para valores é logicamente impossível. É esta crítica que fundamenta a idéia de uma práxis transformativa que, com base em noções como ausência e desejo, traz o potencial para a emancipação.

Demonstrado, em linhas gerais, a forma como o realismo crítico pode contribuir para os debates feministas, passarei agora para a descrição do método de explicação desenvolvido pelo economista inglês Tony Lawson o chamado método das explicações contrastivas. Nesta exposição, basear-me-ei fortemente em uma seção de um artigo anteriormente publicado (Hamlin, 2008: 76-78).

Cynthia

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