segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Jeitinhos e Jeitinho: do imprescindível diálogo entre métodos, bases teóricas e representações do pesquisador

Tâmara de Oliveira

* Este texto é uma versão resumida e atualizada de paper elaborado para comunicação no ST13 (Dilemas da Modernidade Periférica) do 31° Encontro Anual da ANPOCS (2007).

Preparando uma comunicação para o 31° Encontro Nacional da ANPOCS em 2007, não pude deixar de tomar posição sobre um trabalho recém-publicado à época (Almeida, 2007), apresentando como demonstração científica a dicotomia entre “brasileiros ricos, educados e do sul-maravilha” e o “povão pobre, mal-educado e nordestino”, realimentando a velha construção social do desprezo ensinado aos primeiros para com os segundos – assim definidos, dicotomizados e moralmente confortados por esclarecimento “científico”. Embora o livro A cabeça do brasileiro tenha sido apresentado como polêmico, sido debatido na TV em 2007 e foi até objeto de (raras) críticas em mídias, tenho a impressão que, em geral, os cientistas sociais no Brasil são mais ou menos indiferentes à “grande obra”, embora esta apareça atualmente indicada para leitura, no site da ANPOCS. Apresento a seguir as bases de minha tomada de posição sobre o trabalho de Almeida (2007)

Jeitinhos: Estudei o trânsito de Aracaju-Se como espaço público brasileiro, interrogando-me sobre práticas e representações em torno do suborno, de laços clientelistas ou afetivos, entre transgressores e responsáveis institucionais (Oliveira, 2004). Os dados empíricos da pesquisa indicavam a força construtiva de representações sobre a identidade nacional, nas orientações práticas de ruptura das normas de sanção no trânsito. Essas representações tiveram significativamente uma imagem sintética na expressão jeitinho brasileiro. Um Brasil simbólico, se exprimindo enquanto singularidade natural e/ou transhistórica, apareceu significativamente como ator social por excelência, como artista onipotente das rupturas do princípio da igualdade e da impessoalidade das normas de sanção no trânsito, como o sujeito responsável por nossas próprias ações ilegais. Tratava-se de uma representação qualificando o Estado-Nação como entidade singular e negativa, ser vivo, pensante, ativo e refratário aos princípios ideais modernos. Minha imaginação brincava ao ouvir muitos dos informantes, personificando a imagem geográfica do território brasileiro, desenhando um gigante barrigudo, com pernas curtas e sorriso malandro que manipula as pessoas, as instituições e as normas ideais de um espaço público, para se dar bem, se divertir, proteger os amigos e/ou os poderosos.

Mas foi preciso ponderar metodologicamente o peso desse julgamento negativo: mesmo nos numerosos casos em que o informante construiu um discurso espontâneo sobre o jeitinho, ou seja, antes da pergunta do pesquisador sobre esse fenômeno, sua palavra já se construíra em referência às relações entre os atores e a gestão institucional da regulação no trânsito, pois era esse o recorte do problema de pesquisa. Já quando os discursos referiam-se às interações entre particulares, aumentava significativamente um julgamento positivo do jeitinho. Apareciam representações explicativas da ruptura de normas para a solução de problemas do próximo ou de si mesmo, com julgamento positivo e apontando para a solidariedade entre indivíduos ou para estratégias criativas de sobrevivência diante de dificuldades, como traços da identidade brasileira. Assim, verdade é que, à medida que a polissemia dos informantes a respeito do jeitinho foi colocando problemas analíticos e interpretativos, foi-se revelando como a própria pesquisadora possuía aquele gigante mal feito e malandro enquanto referência sub-reptícia de suas questões sociológicas sobre o Brasil moderno.

De fato, desde o conhecimento do homem da rua, passando pela canção popular, até interpretações científico-sociais célebres sobre o Brasil e sua (não?)modernidade, a socialização dos brasileiros possui componentes simbólicos que os ensinam a associar a tensão validade/facticidade (Habermas, 1999) do princípio da igualdade das normas e da impessoalidade de sua aplicação, à identidade nacional. Esse aprendizado, tão bem sintetizado pelo jeitinho brasileiro, leva facilmente a uma interpretação determinista dessas associações, que só faz repetir macrossociologicamente que nossas normas não são factuais por causa da nossa identidade nacional, como se esta fosse substancial; como se as práticas e as representações sociais dos brasileiros não fossem mais do que a eterna reprodução homogênea de uma condição que os determina de fora pra dentro. Isso tudo significava que minhas dificuldades analíticas e interpretativas vinham do fato de que, representando o jeitinho como fenômeno homogêneo e explicação macrossociológica do problema de pesquisa, eu só conseguia reproduzir minha própria interiorização de um estoque social de conhecimentos (Berger/Luckman, 1990) sobre a modernidade e sobre o Brasil. Estoque este que compreende os princípios ideais de regulação moderna como atributos e/ou categorias explicativas de realidades estrangeiras à brasileira. Mas, o que fazer com as diferenças empíricas, sobretudo aquelas que demonstravam a polissemia do julgamento dos informantes sobre sua própria representação da identidade nacional – muitas vezes, num mesmo informante? O que fazer com a presença de representações legitimadoras de uma ação comunicativa e de uma regulação social impessoal que também se manifestavam, mesmo se em contradição com outras? Desprezar analiticamente a polissemia empírica seria mergulhar num objetivismo desenfreado, crente de que a consideração exclusiva dos elementos comuns de um fenômeno é suficiente para a produção de um conhecimento científico válido. Assumindo então as diferenças como dados empíricos relevantes, a tomada do conceito de espaço público como construção social da realidade ganhou força em minha abordagem do trânsito urbano. Eu mantive o problema de pesquisa em limites que me permitiam estudá-lo pensando nas relações entre trânsito, jeitinho brasileiro e modernidade no Brasil. Mas a análise dos dados buscou movimentar-se por instrumentos metodológicos atentos às mediações entre a orientação prática e a estrutura. Limitei-me a técnicas qualitativas de análise, não só porque a pesquisa centrava-se nas representações sociais dos atores, como também porque elas permitiriam um aprofundamento da comparação entre discursos. Penso ter conseguido isso articulando duas metodologias construtivistas diferentes – a interacionista de Berger e Luckmann (1990) e a estruturalista de Bourdieu (1979) –, à sociologia compreensiva weberiana.

O jeitinho revelou-se então como capital simbólico (Bourdieu, 1979) de mediação atores/instituições nas práticas de ruptura das normas de sanção no trânsito, sob a forma de justificativa de fundo da orientação prática dos informantes. Quero dizer com isso que o conteúdo justificativo do jeitinho brasileiro diferenciava-se segundo a situação ou classe social dos transgressores diante das instituições – daí a diversidade de conteúdos dessa representação, daí sua polissemia. Trabalhando com análise tipológica, eu construí quatro tipos ideais de discurso, dois dos quais se afastavam de uma apropriação ao mesmo tempo essencialista e estratégica do jeitinho enquanto identidade nacional. Com efeito, o que a análise evidenciou foi que tal apropriação é efetivamente característica de segmentos sociais tendo mais capital intelectual e/ou sócio-econômico na construção social do espaço público estudado – os informantes de situação média-intelectualizada e os de situação média-alta. Tal evidência foi sociologicamente importante porque ela foi obtida indutivamente: na construção dos tipos, foi utilizado apenas o critério do conteúdo significativo dos discursos, sem nenhuma pré-classificação dos informantes segundo suas variáveis sócioeconômicas; posteriormente eu verifiquei que cada tipo de discurso correspondia a uma situação social diferente. Reconstruindo-se sociologicamente tais diferenças, pode-se então compreender que o gigante artista e malandro, aquele que impede a realização dos princípios normativos de impessoalidade e igualdade porque funciona sob o signo da corrupção e dos laços afetivos, extrai sua existência e sua força das desigualdades objetivas e simbólicas entre os atores na construção social da realidade.

Por outro lado, a pesquisa revelou uma afinidade construtiva entre certos aspectos de interpretações macrossociológicas das relações entre o Brasil e a modernidade – como aquelas que Jessé Souza (2000) define como sociologia da inautencidade – e, as representações sobre a identidade nacional aparecidas na palavra dos informantes de situação média-intelectualizada e média-alta. De fato, a definição do Brasil como país do jeitinho ou como país de terceiro-mundo, converge com explicações científico-sociais que abordam a construção social da realidade como determinação homogênea e exterior à realidade subjetiva dos atores sociais. Assim sendo, considerando que o estoque social de conhecimentos específico à produção científico-social também é distribuída desigualmente, beneficiando a situação social média intelectualizada e a média-alta, é preciso admitir que essa produção possui potencial construtivo na dimensão conservadora da desigualdade de poder social entre os atores, diante da gestão institucional dos princípios normativos, nos espaços públicos brasileiros. Com efeito, trata-se de uma produção científica interagindo com e alimentando um estoque social específico de conhecimentos do senso comum, estoque que é componente da lógica transgressiva da ruptura das normas e que aumenta em proporção ao capital sócio-econômico e/ou intelectual do ator social.

Jeitinho: Já o trabalho de Alberto Carlos Almeida (2007), é definido na orelha do livro como provocador, “politicamente incorreto” e fonte de um “vale-tudo acadêmico”. Embora eu considere “vale-tudo” uma expressão infeliz sobre discussões acadêmicas, resolvi fazer uma incursão sobre esse livro, especificamente sobre seu capítulo dedicado ao jeitinho brasileiro, já que eu tinha material empírico para comparação – embora qualitativo e restrito ao caso de Aracaju. Além disso, considerando que sua metodologia quantitativa é facilmente apropriada pelo conhecimento do senso comum como meio inconteste de obtenção de verdades científicas objetivas e neutras e que, a conclusão geral que o autor apresenta na introdução exerce, voluntária ou involuntariamente, violência simbólica contra a maioria da população brasileira, ou seja, contra suas situações sociais mais carentes, vi-me diante da obrigação acadêmica de por em questão sua pretensa objetividade. Neste sentido, o próprio Almeida exprime o quanto a vulnerabilidade do senso comum à autoridade científica da quantificação lhe é familiar, ao afirmar que a abordagem quantitativa de sua pesquisa proporcionará ao Brasil, pela primeira vez, “a chance de entender o Brasil” (Almeida, 2007, p. 45)

Lanço mão aqui da palavra de um dos meus informantes, para depois argumentar porque, embora cidadão sem escolaridade superior, não jovem, com situação social média-baixa e nordestino, acredito que se trata de alguém que entende melhor o jeitinho brasileiro do que Alberto Carlos Almeida e sua auto-declarada autoridade científica:
P: Uma das coisas que eu ia perguntar, é: “o que caracteriza o Brasil é o jeitinho brasileiro”. O que você pensa dessa frase e o que é o jeitinho brasileiro pra você?
R: O jeitinho brasileiro? É o que, o que falam né? É o que foi criado de, de início, o nosso país, foi essa formação, então, já vem de dentro de milh, milh, vamos dizer: são quinhentos anos de descobrimento do Brasil – na mentira né? Então vamos colocar milhões de anos que o Brasil existe, então antes dos colonizadores de Portugal, de, de, dos espanhóis, virem pr’aqui, antes disso já tinha o jeitinho né? ‘Rapaz, dá, né?’, quer dizer: então mais ou menos por aí. É um sistema que funciona em qualquer situação. Não que você abuse dessa maneira de, de..., mas vamos supor que hoje eu dependa de você pra levar meu filho na escola. Você...num tem tantos compromissos assim, eu digo: ‘amiga, você pode levar meu filho na escola?’ Cê não tem obrigação nenhuma de fazer isso pra mim: ‘Ah, rapaz, tudo bem, que é isso, rapaz, eu levo – tranqüilo’. E, foi um jeito que você deu de...amenizar um sofrimento meu, ou seja, diminuiria minha carga de trabalho; já me deu uma grande ajuda né? O jeitinho brasileiro pra mim é esse de – esse lado. Então, é um benefício que você tem a dar a alguém sem pensar que amanhã vai cobrar aquilo né? Eu acho que é esse o jeitinho brasileiro.
P: E no trânsito, o que seria o jeitinho brasileiro no trânsito?
R: Amenizar a ignorância, né, do, do, da falta de compreensão e entendimento no momento do ato ocorrido. Então vamos supor que tenha uma colisão. Então dois carros: pá! Bateu. Desce um condutor, o outro condutor e os dois vão se desentender: ‘não, você tá errado’; ‘não, é você que tá errado’; ‘meu amigo, vamos conversar e vamos...vamos ver realmente de quem partiu o erro’. Fique certa que eu estando errado talvez eu não queira asumir o próprio erro, né? Por uma questão minha, né, de ser; porque o ser humano, ele tem isso, né? De repente ele tem um erro que ele não admite. Tô certo e pronto. Por algum poder que ele tem. Então naquela forma ali, já pode, já poderia ter o jeitinho brasileiro: ‘quanto é que vai custar teu serviço de lanternagem ou de lataria ou de iluminação, vamos dizer de uma peça que quebrou, quanto é que vai te custar, pense; em média vai achar que é quanto?’ ‘Rapaz, vai ser mil reais’. ‘E se eu levar pra uma pessoa minha...cê tem como levar o carro até lá e eu peço à pessoa pra ele fazer esse orçamento e eu pagando: pode ser?’E a pessoa...aceitar, quer dizer, ele tá fazendo a parte dele ao invés de, vamos dizer, chamar o...Quando não tem coisas graves, é claro. Chamar uma perícia, uma coisa que vai...tirar todo um sistema ali; de repente o que tava certo vai passar a ser errado, entendeu? Eu acho que mais ou menos por aí; um guarda ali que conhece mais um. É mais camarada de um lá. O outro ele nunca viu, então vai pro xadrez: ‘não, tu tá...tu é meu, vou te defender aqui, a gente faz o que puder aqui’. Também isso é jeitinho brasileiro, né? Esse sistema, ói...!” – 34 anos, nordestino, casado, três filhos, ensino médio incompleto, pequeno comerciante, usuário não motorizado do trânsito (ciclista).

O primeiro grupo de conteúdos é articulado a um julgamento francamente positivo do jeitinho, enquanto o segundo o é a um julgamento opositivo, onde a validade legitimada de um acordo interativo e comunicativo, se opõe à expectativa de injustiça da regulação social sistêmica, pois esta seria marcada pela ruptura do princípio de impessoalidade da aplicação das normas. Melhor dizendo, a análise de conteúdo da palavra desse e dos outros informantes, sob uma abordagem construtivo-compreensiva, interpreta-os como atores sociais claramente inseridos na tensão validade/facticidade (Habermas, 1999) da regulação social moderna, como atores que têm a confrontação decepcionante como componente constitutivo de sua apropriação subjetiva da realidade social. Ou seja, assim como entendem pelo menos os autores Mériti de Souza (1999) e Bernardino Leers (1982), o jeitinho brasileiro não forneceria uma explicação inconteste de um suposto caráter não-moderno do Brasil. No que diz respeito aos aspectos identitários das representações do jeitinho brasileiro, a análise permitiu validar certos elementos interpretativos desse fenômeno social que também aparecem em outros autores que o estudaram especificamente, indicando que as ciências sociais já têm pontos consensuais em seu entendimento do jeitinho brasileiro. Vou colocá-los em meus próprios termos, especificando autores afins: caráter multidimensional e polissêmico de suas práticas e representações, cuja articulação com julgamentos de valor é relativa aos contextos (Oliveira 2004; Mériti de Souza, 1999; Lívia Barbosa, 1992; Bernardino Leers, 1982); nexos causais com as dimensões estruturais da sociedade brasileira, notadamente com sua estratitificação social, ou seja, articulado à reprodução de um dos primeiros graus de concentração social no mundo, em apropriação de bens materiais e simbólicos (Oliveira, 2004; Mériti de Souza, 1999; Bernardino Leers, 1982).

Pois bem, o informante citado, através de uma linguagem cotidiana, sem nenhuma pretensão científica, manifesta poder refletir sobre a multidimensionalidade e a complexidade do que ele conhece sobre o jeitinho em sua experiência social – coisa que salta aos olhos quando, descrevendo uma prática oposta ao sentido positivo de solidariedade e de acordo interativo com os quais ele vinha definindo a identidade nacional, se surpreende, mas reconhece que ela também é jeitinho brasileiro. Já Alberto Carlos Almeida (2007) produziu um texto demasiadamente simplista, embora tenha realizado um grande trabalho de levantamento quantitativo do fenômeno – não por ser quantitativo, mas pelo tratamento que deu a esses dados. Sem falsa modéstia, Almeida (2007) explode aqueles elementos passíveis de consenso entre os estudos sobre o jeitinho: é contraditório quanto à relatividade aos contextos, embora explicite ter usado as categorias analíticas que Lívia Barbosa (1992) desenvolveu justamente para dar conta dessa característica, já que ele busca demonstrar um laço substancial entre jeitinho, corrupção e arcaismo brasileiro. E, embora não apresente instrumentos teórico-metodológicos capazes de explorar as relações entre os conteúdos simbólicos dos entrevistados e as dimensões estruturais da sociedade brasileira – já que sua metodologia foi delimitada por técnicas de pesquisas de opinião –, chega a uma explicação pretensamente macrossociológica sobre o Brasil, inscrita na introdução do livro.

Tal explicação, composta por duas dicotomias complementares, diz o seguinte: a) existem dois Brasil em conflito de valores – o da classe baixa, cujos valores são arcaicos e estão em lenta erosão e, o da classe alta, cujos valores são alinhados “a muitos dos princípios dominantes nos países desenvolvidos” (Almeida, 2007, p. 25) e que tende a se fortalecer com o aumento da escolaridade média da população; b) o abismo entre esses “dois Brasis” pode ser ainda maior se, à variável ensino superior, acrescentam-se outras, como aquela entre homem, jovem, residente de capital do Sul ou Sudeste, em oposição a alguém sem o nível fundamental completo da educação formal, “for do sexo feminino, de maior faixa etária e residente em alguma cidade que não seja a capital, situada na região Nordeste” (Almeida, 2007, p. 26).

O primeiro capítulo do livro, sob a suposição de um vínculo substancial entre o jeitinho, a corrupção e o arcaísmo de um dos Brasis, vai afirmar que as práticas jeitosas e sua aceitação são enraizadas em todo o Brasil. Mas isso não significou a mínima inflexão em sua tese geral dicotômica: a primeira característica do Brasil arcaico das classes baixas, aquele em apartheid cultural para com o Brasil moderno das classes altas, é justamente o apoio das primeiras ao jeitinho brasileiro. Em primeiro lugar, em termos da tese geral do livro, como distinguir um país moderno das classes altas de um país arcaico das classes baixas, através de uma exclusiva dedução da situação sócio-econômica pelo grau de escolaridade, já que seus gráficos e tabelas não apresentam quaisquer outras variáveis sócio-econômicas? Em segundo lugar, uma reflexão sobre a análise dos dados sobre o jeitinho, revelou problemas graves de adequação entre dados apresentados e algumas de suas conclusões: a) se as práticas e a aceitação são enraizadas em todo o universo estudado e, considerando que o pesquisador vincula substancialmente o jeitinho à corrupção e ao arcaismo, como concluir que os mais escolarizados são os mais modernos no Brasil, se, embora declarem menos aprovar o jeitinho do que os analfabetos (43% contra 67%), declaram em maior quantidade conhecê-lo e praticá-lo (99% contra 63% e 70% contra 51% respectivamente)? b) como concluir que, à medida que as gerações mais novas forem substituindo as mais velhas, haverá uma forte rejeição do jeitinho e da corrupção, se os mais jovens declaram mais praticar e aprovar o jeitinho do que os mais velhos, mesmo associando-o mais à corrupação (74% contra 54% , 56% contra 43% e 54% contra 37%, respectivamente)?

Essas incoerências parecem diretamente associadas à dificuldade do autor em discutir suas bases teórico-hipotéticas ou à decisão de não disculti-las : elas estabelecem uma relação diretamente proporcional entre aumento de escolaridade, substituição das gerações velhas pelas novas e, mudança dos denominados core values - “alicerces das demais crenças sociais” (Almeida, 2007, p. 20. ). De tal sorte que, o maior conhecimento e prática dos mais escolarizados, assim como a maior aceitação do jeitinho brasileiro/corrupção pelos mais jovens, tornando problemática a confirmação da relação geral teoricamente pressuposta para a pesquisa, não são objeto de um tratamento reflexivo, dialógico, gerando argumentações esdrúxulas como a seguinte:

“Há indícios, portanto, de que está em curso uma importante mudança nos padrões morais do Brasil à medida que as gerações se sucedem. Deve-se salientar que esse dado não se opõe àquele apresentado no Gráfico 3 quanto ao uso do jeitinho. Os mais jovens podem realmente se utilizar mais do jeitinho do que os mais velhos. Porém, para eles, essas oportunidades são menos freqüentes do que para os mais velhos, pois eles consideram que as situações [de ruptura das normas por contatos pessoais] são mais corrupção e menos jeitinho do que os de mais idade”(Almeida, 2007, p.63).

Quer dizer então que os mais jovens praticam mais o jeitinho, identificam-no mais à corrupção, aprovam-no mais e isso tudo significa que têm menos oportunidades para praticá-lo?! Ainda bem que o divino método quantitativo existe para nos demonstrar, sem explicação necessária, esses mistérios da evolução natural das sociedades...Eu gostaria realmente de entender, mas não sei se é o caso de Almeida. Não sei, porque parece que seus dados sobre o jeitinho já estão previamente submissos a uma classificação binária da sociedade brasileira, simbolicamente violenta contra quem é classificado como de baixa escolaridade, classe baixa e preferencialmente nordestino, idoso e mulher. Não sei também porque, em certos momentos de sua argumentação, ele revela que suas conclusões parecem igualmente submetidas a uma abordagem dicotômica da regulação social moderna, não só em termos classificatórios como em termos morais, além de fundamentadas numa contemporânea perspectiva ideológica liberal enquanto atributo natural, indiscutível e anglo-saxão da modernidade (Almeida, 2007, p. 35, 45, 47 e 55).

Dados quantitativos são sempre importantes para a sociologia empírica, quando não são tratados como verdade científica neutra, quando são postos em relação dialógica com as bases teóricas e pensados em suas relações às representações do pesquisador. Tanto é assim que a pesquisa de Almeida (2007) confirma que minha associação qualitativa entre o jeitinho brasileiro e a estratificação social tem representatividade quantitativa, já que seus dados revelam, como os meus revelaram tipologicamente que: quanto menos escolarizados, menos os informantes conhecem o jeitinho brasileiro – eles conhecem as práticas, mas não dominam o conceito. Para Almeida (2007) isso não muda nada, já que eles praticam-no como os outros – mesmo se, o autor reconhece, não têm acesso a práticas que exigem situação social objetiva superior. Se refletisse sobre esses “detalhes”, o autor também poderia reconhecer que o jeitinho, mediador da dinâmica de ruptura das normas cidadãos/instituições, é estoque social de conhecimentos desigualmente distribuído, o que imporia uma conclusão oposta à sua, mas adequada aos seus próprios dados: são os nossos “progressistas” os que mais conhecem, se beneficiam e sustentam o que ele próprio define como uma fonte da corrupção e do arcaísmo no Brasil.

Gostaria de ter entrevistado Alberto Carlos Almeida, porque suspeito que seu discurso adequar-se-ia bem a um tipo ideal de informante construído em minha pesquisa. Esse tipo ideal refere-se a membro de situação social privilegiada que: identifica o jeitinho brasileiro com uma essencialista classificação do país como “terceiro-mundo”; tem uma crença evolucionista em nossa chegada ao “primeiro mundo”; justifica suas práticas de ruptura das normas por seu pertencimento a uma realidade atrasada, corrupta e imoral lhe determinando do exterior, mas declara facilmente, a quem quiser deixá-lo falar realmente, ter plena consciência do seu poder para usar seus bens materiais ou simbólicos para praticar o jeitinho quando bem entender – embora julgue que isso seja imoral e ilegal; falando sobre o trânsito, costuma identificar, sem parecer perceber, pedestre e pobre, definindo esse “dois em um” como pessoa sem condições e sem educação, substancialmente diferente dele; oscila entre duas orientações emotivas para com o pobre-pedestre, podendo combiná-las, sempre sob o signo de seu sentimento próprio de superioridade: complacência e/ou desprezo.

Seja como for, voluntária ou involuntariamente e, apesar do seu grande levantamento quantitativo, Almeida (2007) produziu mais uma pérola para a estabilização realidade social subjetiva/realidade social objetiva (Berger/Luckmann, 1990) de brasileiros bem situados sócio-econômica e/ou intelectualmente. Uma pérola revestida da convicção social, amplamente difundida, segundo a qual os métodos quantitativos produzem necessariamente verdades científicas objetivas, neutras. Além disso, contou com apoio público e publicitário do semanário mais lido no Brasil, a Veja, aumentando seu potencial de legitimidade social. E, como se ainda fosse pouco, recebeu legitimidade de Roberto DaMatta em debate televisivo. Mas talvez, já que sou mulher do Nordeste, eu esteja sendo estúpida e arcaica: o autor, como defendeu Roberto DaMatta, põe a escolaridade como variável fundamental para a consolidação de um país moderno e democrático – alguém aí é contra a escolarização da sociedade brasileira? Mesmo porque, se o “povão” é responsável por sermos um dos Estados-Nações mais desiguais do mundo, ele pode ser “educado”. Ah, la nouveauté, que c’est vieux la nouveauté!
Como disse no começo, lamento a aparente indiferença dos cientistas sociais no Brasil para com o trabalho em questão. Não exatamente porque ele exerçe violência simbólica contra os “fracos”, já que isso implica em tomada de posição que não se impõe. Aliás, que não se entenda aqui “fracos” como “bons”, “corretos” ou “mais racionais”, como tem sido a réplica dos entusiastas de Almeida (2007) contra as críticas, reais ou imaginárias, de quem eles nomeiam como “esquerdistas-com-visão-ingênua-do-povo”. Lamento essa indiferença por responsabilidade científica: acredito que as ciências sociais devem exercitar o combate contra confusões entre classificações valorativas e análise científico-social. Neste sentido, o trabalho de Almeida (2007) demanda estudos mais detalhados sobre a coleta, a análise e as conclusões dos dados de sua pesquisa. Com efeito, os problemas verificados entre os dados apresentados e as conclusões sobre o jetinho brasileiro, indicam tratar-se de pesquisa que usa métodos quantitativos de maneira reificada e que não controla a intrusão dos juízos de valor do pesquisador para com seu objeto de análise. Afinal de contas, mesmo reconhecendo que esse controle é sempre delicado e relativo, todo cientista social tem a responsabilidade de praticá-lo. Concluíndo, lembrando que A cabeça do brasileiro é uma obra com potencial de divulgação maior do que a maioria da produção científico-social do país, sendo apresentada atualmente por sua editora como best seller, penso que sua análise crítica deve tornar-se cada vez mais pública. Sem “vale-tudo acadêmico”.

Bibliografia
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BARBOSA, L. 1992. O jeitinho brasileiro. Rio de Janeiro: Campus.
BERGER, P. / LUCMANN, T. 1990. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes.
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CHAUÍ. M. 1994. Raízes teológicas do populismo no Brasil: teocracia dos dominantes,
messianismo dos dominads. In: DAGNINO, E. (org.). Anos 90 – política e sociedade no Brasil.
São Paulo: Brasiliense.
DA MATTA, R. 1979. Carnavais, malandros e heróis – para uma sociologia do dilema
brasileiro. Rio de Janeiro : Zahar Editores.
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LEERS, B. 1982. Jeito brasileiro e norma absoluta. Petrópolis: Vozes.
OLIVEIRA, T. de 2004. Espace public et capital social – l’identité brésilienne comme
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SOUZA, J. 2000. A modernização seletiva – uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília:
UNB.
SOUZA, M. 1999. A experiência da lei e a lei da experiência – ensaios sobre práticas sociais e
subjetividade. Rio de Janeiro : Revan.

Um comentário:

Le Cazzo disse...

Enquanto esperamos o próximo bloco de tradução da entrevista de Sandra Harding - heroica e generosamente realizada pela professora Cynthia Hamlin - resolvemos oferecer a vocês o texto da Professora Tâmara Oliveira, da Universidade Federal de Aracaju. Jonatas