terça-feira, 15 de dezembro de 2009

O Delírio de Onipotência do Narciso Consumista



Fernando da Mota Lima (http://fmlima.blogspot.com)

Eu tudo quero e tudo posso. Ser feliz, desejo supremo de todo ser humano, é apenas questão de vontade e coragem. Não ter medo de ser feliz, esta é a expressão mágica no país de todos. Aproveitar tudo, viver tudo a que tenho direito. Mais que isso: tudo que desejo. Meu desejo é a medida da realidade. O negócio é chegar lá, lá onde me espera o objeto do meu desejo. E o que aprendi e o que sei é que vale tudo: tudo por dindim, tudo para que o outro me veja e confirme minha existência, tudo pelos 15 minutos de celebridade, que no meu caso serão eternos. Ser sempre o que o outro quer, já que o outro é a medida da minha existência, já que é o outro quem valida o que sou. Ser é ser o outro e à margem do outro que me vê e me valoriza eu sou apenas a sombra do apagão, um zero. Nada.

Se Caetano Veloso canta que Narciso acha feio o que não é espelho, eu vou além, muito além, e afirmo que Narciso é o próprio espelho, que Narciso é uma criação do outro. O outro é o Big Brother, a mídia, o olhar invejoso do vizinho que quer meu carro importado porque odeia o que tenho e o que tenho é o que sou. O outro é o chefe a quem presto vassalagem para ser o que ambiciono: o executivo sem alma, o astro da mídia, a prostituta que se chama acompanhante ou modelo, o deus do futebol com quem me identifico quando visto sua camisa e majestosamente desfilo pelas ruas como se fosse ele. Se ele me toca, ou rabisca um autógrafo no guardanapo de papel onde o nome dele e o meu se imortalizam, sinto-me como se a mão de Deus sobre mim descesse. É quando sei que sou onipotente. Eu tudo posso. Eu tudo quero.

Sou the hollow man, o homem vazio, o homem oco do poema de Eliot. Não me procurem onde não estou e nunca estive: dentro de mim, pois sou pura forma aparente. Sou o reflexo de uma avenida em cujas margens vislumbro outdoors e clipes publicitários, vitrines que semelham templos onde adoramos o Deus mercadoria, massas errantes rolando por ruas anônimas à procura do que todos procuram: um quinhão de fama, um farelo de notícia que prove ao mundo e antes de tudo a mim próprio a existência dentro de mim anulada. Sou o homem vazio, o homem oco que é pura aparência. Dentro de mim há apenas poeira, um deserto sem água, trapos recobrindo minha nudez vazia e uma angústia sem norte, uma ansiedade sem objeto, um desejo de fuga sem destino, o vazio carente de algo que o preencha.

Mas tudo posso, essa é a voz sedutora do clipe publicitário que me persegue e cativa em tudo que ouço e me cerca. Ela escorre geladinha na garrafa de cerveja. Ou é na bunda deslumbrante da loura gostosa que bebe nos meus braços? Ela me faz crer que sou o dono do banco, não o correntista esfomeado entre o desejo de consumo e a taxa de juros. Ela transfigura minha solidão num harém onde as mulheres mais lindas e inacessíveis estão à distância de um travesseiro na minha cama, dóceis e servis como as mucamas dos engenhos de açúcar coloniais. Eles sobrevivem, os engenhos e seus senhores onipotentes, os engenhos e a escravaria moída pela máquina que sem alma tudo tritura; eles sobrevivem no tipo de capitalismo brutal que criamos, na mídia com seu circo de horrores cotidianos.

Sou onipotente pilotando meu carro que é uma máquina de guerra. Dentro dele viaja submissa a mulher que eu quiser, escrava do meu desejo. Dentro dele, miro com desprezo a massa anônima pendurada no estribo do ônibus, espremida nas janelas de veículos ferventes à luz do verão. Dentro dele, vejo de relance a massa de trabalhadores espremida em trens como se fosse sardinha enlatada. Dentro dele traço a fronteira entre dois Brasis atados mas divididos, cada vez mais se defrontando com surda ferocidade. Um país de todos, mas desiguais. Dentro dele, acelerando como um guerreiro em combate, atropelo o pedestre, ultrapasso sinais vermelhos, excedo todas as velocidades porque a potência do meu carro é instrumento da minha onipotência. Dentro dele estou acima da lei porque a lei e todos os códigos inventados pela sociedade são apenas o que acelero e compro.

Os valores e direitos humanos? Digam-me quanto custam, pois tenho o poder de comprá-los. Amor, delicadeza, ética, respeito, civilidade, compaixão, tudo isso soa como palavra tão vazia quanto o vazio que dentro de mim transporto. Como disse, não me procurem onde não sou e estou. Sou pura aparência produzida pelos poderes aos quais servilmente rendo minha liberdade, um sentido de humanidade e beleza que nunca provei nem me apetece. O que não suporto é a solidão, a hora fatal em que preciso mirar-me não no espelho do outro, não no espelho que é o outro, mas no espelho da parede do banheiro que habito, no espelho da minha casa sem humanidade. Nesses momentos irrompe e me sufoca a solidão dos desertos áridos, a angústia sem corpo e forma, a insatisfação sem repouso. Como explicar essa insatisfação permanente, esse movimento sem pausa, se tudo compro e tudo tenho no shopping que é o templo onde venero meus deuses e realizo minha figuração do céu na terra, céu que é aliás o único, pois que sou eterno? Os publicitários, voz da minha consciência, inventaram a terceira idade e assim aboliram a velhice. Eu, que tudo posso, fui além deles: desinventei a morte e me fiz eterno. Eu sou o outro e sou eterno. Mas por que não paro de me doer? Por que sou a droga sem a qual não suporto o mundo nem me suporto? Por que esse vazio que vai de dentro para fora de mim quando o espelho não é o da mídia, mas o da parede do meu banheiro?

Recife, 5 de dezembro de 2009

16 comentários:

Le Cazzo disse...

Eita! Perdemos um Seguidor!!! Volta aqui!!! Jonatas

Cynthia disse...

Onde? Que seguidor? Fernando? Fernando é seguidor?

Cynthia disse...

Ah. Esquece. Fim de ano: tico e teco andam exaustos.

puchkin disse...

Fernando,

Me desculpe, mas esse seu texto não passa do mais que conhecido e limitado anti-capitalismo romântico. A crítica ao dinheiro. À mercadorização das relações humanos. A fetichização da mercadoria. À ilusão de potência que o mercado publicitário oferece. Ora, o que o senhor propõe em troca? QUe alternativa o senhor mostra?

Como todo pensamento pequeno-burguês em crise (típico da cátedra do CFCH), não supera seus rodopios em falso.

O ponto de fuga de seu texto - aquele que você não colocou pois continua um burguês preso à prisão que tão bem criticou - é o socialismo.

Socialismo já!

well disse...

Sinto alivio em ele continuar sendo esse "titpinho" burguês e não repetir coisas ainda mais "cansativas".

Talita disse...

O Puchkin entrou com os cravos da chuteiras nas canelas da pátria que não usa caneleiras. Apesar da retórica "datada", não deixou ponto sem nó. Na verdade, ele atirou na repetição enfadonha do mesmo. Matou? Não. Mas colocou o dedo na ferida. Não se diz nada de novo sobre a cultura depois da teoria crítica? É só esse enterno retorno "crítico" à reificação, à fetichização, etc. Sou contra o socialismo.Mas eu fico lembrando das análises finas feitas pelos estudos culturais ingleses. Lembram? "The uses of Literancy" Que livro! Nada desses esqueminhas críticos bem formulados para explicar tudo e nada. Nada de modinhas passegeiras à Jean Baudrillard, que explicavam a complexida da sociedade ocidental com dois exemplos de análise num supercado. Puchkin, você tocou meu coração.

Fernando disse...

Puchkin e Talita:
Lamento constatar, segundo a crítica de vocês, que meu artigo não passa de repetição lamentosa. Se eu fosse Richard Hoggart, escreveria The Uses of Literacy para o presente, não um simples artigo de duas páginas. Quanto a Puchkin, sem nenhum desapreço pelo do Cazzo, já disse preferir o original, que aliás escrevia sobre nobres e aristocratas e,até onde o li, nem sonhava com socialismo. Acredito sinceramente que o sociolismo seria o sistema político-econômico ideal para a humanidade. Infelizmente, seguindo observação fina de Freud, somos humanos e portanto a única porcaria funcional que fomos capazes de inventar foi o capitalismo. A solução, para que eu não mais me desentenda com Puchkin, é abrirmos uma clínica: eu forneço o diagnóstico, já que com isso ele diz concordar comigo, e ele a terapia.
Fernando.

Cynthia disse...

Uma clínica? Que idéia boa! Já tem quem cobre o aluguel?

puchkin disse...

Cynthia,

Você sabe qual é o destino das velhinhas usurárias na literatura russa, não sabe?

Leon disse...

Esse Pchkin é um saco.Saiba que Cynthia é jovem e avançada para quem já tem a idade dela. E não leia isso como paradoxo pós-estruturalista, ela é uma pessoa muito generosa intelectualmente também. Não precisa de destino dostoievskiano não. Já tive aulas com ela, e sei bem disso. E essa Talita querendo dar lição para o Professor Fernando? sai daí! Na resposta o prof. colocou os dois em seu devido lugar: no silêncio obscuro dos que querem criticar por criticar. Socialismo. Essa é boa! Cresce Puchkin.

Le Cazzo disse...

Eita! O clima aqui tem esquentado. Calma meu povo que Fernando da Mota Lima é uma figura sem par e sem não-me-toques; certamente não liga para a polêmica que seus textos, Graças a Deus!, suscita. Puchkin, Talita são bem-vindos. Quanto à polêmica com Cynthia, vale o mesmo princípio. Mas deixo a critério de Cynthia defender-se se ela se julgou ofendida por nosso amigo socialista e russo.

Le Cazzo disse...

E o comentário acima foi escrito por Jonatas.

puchkin disse...

A pequena-burguesia de fato não tem humor. Qualquer leitor medianamente dotado de um aparato crítico notou que eu estava brincando com a proposta - também esta feita em tom de brincadeira - da professora Cynthia de cobrar aluguel da "clínica" do professor Mota Lima.

Saudações revolucionárias!

Cynthia disse...

Não, não me senti ofendida e entendi a brincadeira. E depois que Leon correu em meu socorro fiquei até pensando que, em breve, poderia ser promovida a antiguidade e aumentar meu valor de mercado...

Independentemente disso, acho que talvez as pessoas estejam pesando um pouco a mão na hora de fazer as críticas aos textos e aos comentários. Quando se trata de debater idéias, acredito que a melhor forma de crítica é aquela que se atém às idéias e não às pessoas. Além de mais eficaz, garante a continuidade do debate, que é, afinal de contas, o propósito não só do blog, mas de toda atividade acadêmica.

Paz e amor para tod@s.

Lucas disse...

Excelente texto. Peço licença para enviá-lo àqueles que eu achar pertinente, pois enquanto a torre de marfim fervilha com boas ideias e intenções, o mundo lá fora rasteja acorrentado dentro da caverna de Platão.

Um abraço.

Le Cazzo disse...

Lucas,

Precisa pedir licença, não: é só citar o autor e a fonte.

Abraço,
Cynthia