terça-feira, 28 de julho de 2009

“Deixe sua mensagem após o sinal”: telefonia celular e novos modos de sociabilidade (parte 1)



Jonatas Ferreira e Marcia Longhi

Se alguém resolve refletir acerca do modo como as tecnologias de comunicação e informação estão mudando as nossas vidas, é bem provável que esta pessoa não decida falar de telefonia celular. Há novidades bem mais glamourosas por explorar: uso de internet de alta velocidade no campo da saúde, regulamentação da Internet, e-governo, e-comércio, novas formas de ativismo no ciberespaço etc. Ninguém dá grande importância ao bom e velho telefone celular – velho, sim, o avô dos nossos modelos estilosos tem mais de 20 anos – que deixou mesmo de ser novidade. Segundo os últimos dados publicados pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, 76% da população brasileira dispõe desse ícone, já tem idade para tal, da sociedade de informação. Tornou-se tão presente que a gente deixou de os ver – como tudo na vida, como nos ensina a fenomenologia, o mais presente se ausenta. Quer dizer, salvo quando aquele amigo exibido aparece com um novíssimo modelo, capaz de proezas técnicas inimagináveis há alguns anos.

O telefone celular, no entanto, vem mudando nossa vida de uma forma categórica. Quem imaginaria a gama de novas situações sociais que esse pequeno aparelho propicia. Lembro que há três anos, entrando num conhecido restaurante da cidade do Recife, necessitei ir à casa de banhos. Enquanto lavava às mãos escutei com assombro uma voz rouquenha, espremidinha que vinha de um dos três cubículos dedicados a necessidades mais urgentes que às minhas. E a vozinha dizia algo como: “...mas meu bem, você não sabe que eu amo você”. Pausa dramática, algum tipo de esforço audível e: “... amo sim, você não percebe como minha voz está embargada de emoção?” O causo de fato aconteceu e o prosaico, por vezes, ensina. É difícil imaginar há vinte anos uma negociação amorosa tão escatológica, um sentimento expresso de forma tão corporal como aquele. A pessoa saiu de sua cabine, sem me perceber, lavou as mãos como se nada tivesse ocorrido e seguiu em direção a uma mesa onde a aguardavam alguns colegas engravatados.

E essa é uma primeira lição. Nenhuma tecnologia contribuiu tanto para realizar o sonho (ou pesadelo) de uma acessibilidade absoluta quanto o telefone celular. Desconsiderando a convergência que há hoje entre computadores e telefones celular (uma novidade recente sobre a qual falarei), é possível dizer: não foi o PC, ou a Internet, que realizaram, do ponto de vista da acessibilidade, a fantasia da biblioteca de Babel de que fala Borges - metáfora exaustivamente mobilizada para descrever a World Wide Web. Salvo alguns problemas técnicos, ou a decisão heróica de não ter esse tipo de facilidade, estamos acessíveis o tempo todo, em todo lugar – menos Maria Eduarda. Nos estádios de futebol, nos cinemas, nas salas de aula, nas reuniões de trabalho, nas maternidades, funerais, casamentos, casas de banho!, estamos sempre a uma tecla do resto do mundo. E isso, por si só, envolve a negociação de uma etiqueta tensa entre um mundo virtual e enlouquecedor na proliferação de suas demandas e os compromissos presenciais que nos lançam em outra direção. Quem pode reivindicar atenção presencial, por séria que seja a a necessidade de tal demanda, quando o resto do mundo teima em impor emergências amorosas, profissionais, domésticas?

Porque estamos acessíveis o tempo todo e em todo lugar somos mobilizáveis sempre e em qualquer lugar pelas engrenagens produtivas - e também pelos laços afetivos, pela urgência de compromissos de diversas ordens. Para alguns, há aqui o que comemorar. Para uma enorme camada da população brasileira sem conexões produtivas com a sociedade de informação, a posse de um telefone móvel significou a inclusão em fluxos de trabalho, por exemplo. Serralheiros, encanadores, eletricistas, esteticistas, vendedoras, jardineiras, podem agora ser facilmente conectados – o que certamente dinamiza a atividade produtiva não formal da economia. Tristemente, é precisamente para essa parcela da população que o serviço de telefonia móvel é mais caro no Brasil – ora, além de vir substituindo a telefonia fixa, nunca democratizada em nosso país, e realizar alguns tipos de comunicação que a maioria de nós prefere realizar pela Internet, o celular se impõe como para essa população sempre a partir de planos mais dispendiosos - como os pré-pagos, por exemplo.

Em 2005 o telefone fixo estava presente em 54% da população residente na área urbana, passou em 2006 para 50%, depois para 45% e em 2008 registrou 40%. O oposto ocorre com a telefonia celular. Tínhamos 61% da população com acesso ao telefone celular em 2005 e hoje esse percentual é de 76%. Esse declínio da telefonia fixa mostra que há muito tempo essa área deixou de se reinventar e que está condenando uma parte do Brasil ao abismo, na medida em que as concessionárias de telefonia não têm interesse em levar a banda larga ao interior do país (Pesquisa sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação no Brasil 2008;CGI.BR, 2009).

(Continua)

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Atores Sociais, Novas Identidades e Determinações Sociológicas: notas a favor de algumas cautelas



Por Luciano Oliveira

1. De algum tempo para cá, num contexto assinalado de um lado por uma crise no registro cultural da esquerda, e de outro pelo aparecimento do que tem sido chamado de “novos movimentos sociais”, começou a tomar forma um discurso em torno das "novas identidades", tecidas por novos sujeitos históricos identificados não mais a partir de sua inserção no processo produtivo, como soía acontecer nos velhos tempos do esplendor marxista, mas a partir de uma singularidade assinalada por uma pertinência étnica ─ negros e índios, por exemplo ─, comportamental ─ como é o caso dos homossexuais ─ ou outra, como é o caso das mulheres, identificadas a partir de sua condição feminina, e assim por diante. Nuns e noutros casos, a dimensão laboral dos seus integrantes já não é o elemento definidor de sua identidade, como acontecia, por exemplo, com o "velho movimento social" por excelência: o movimento sindical.

Pensando no contraste com a situação anterior, dois traços podem ser assim destacados nesta nova percepção, por assim dizer, pós-marxista: a descentralidade do trabalho enquanto elemento conferidor de identidade, e a positividade, per se, desses novos sujeitos. A descentralidade do trabalho apóia-se em elementos derivados ao mesmo tempo da esfera "objetiva" ─ a perda real de importância do operariado industrial no cenário econômico e político das últimas décadas, o que é algo empiricamente constatável ─, mas também da esfera "subjetiva": o trabalho, antes o grande valor enaltecido tanto por uma burguesia interessada em dispor de trabalhadores dóceis, quanto por uma vanguarda revolucionária interessada em produzir militantes orgulhosos de sua condição proletária, passa a ser um tanto depreciado e, em seu lugar, emerge uma valorização do "lúdico", dos "desejos" etc.

No que diz respeito ao segundo traço, a positividade per se dos novos sujeitos, também se opera uma mudança de eixo. No registro anterior, a questão racial e a questão feminina (limito-me a esses dois casos porque a questão comportamental, evidentemente, sequer "existia") estavam subordinadas à questão central do conflito capital versus trabalho. O racismo e o sexismo eram então vistos (quando o eram, aliás...) como subprodutos da estrutura de classes, a serem resolvidos apenas no quadro da superação desta última. Sabe-se hoje que isso não é verdade. Mas o que é importante assinalar, para efeito do argumento que quero adiante desenvolver, é que no novo registro pós-marxista há uma identidade negra, como há uma identidade feminina etc., não assimiláveis e muito menos dissolvíveis numa identidade proletária que um dia ─ enquanto identidade da "classe universal" ─ as absorveria numa comunidade dos "produtores livremente associados".

Noutras palavras, já não há "totalidade". Isto é: as novas identidades já não se constroem por referência a uma instância a elas “exterior” ─ o lugar de inserção no processo produtivo ─, mas por referência a elas mesmas! Noutros termos: é a condição existencial desses novos sujeitos ─ serem negros, mulheres, homossexuais etc. ─ que lhes confere uma identidade reivindicada por eles mesmos como positividade. Logo, como algo a ser respeitado enquanto diferença e singularidade, e não exatamente como um "problema" a ser resolvido. O que se passa com a questão homossexual é bem ilustrativo desse processo: o homossexual, antes visto como um "doente", reivindica ser um indivíduo singular pertencente a uma minoria dotada do estatuto de legitimidade como outra qualquer. Resumindo: a descentralidade do trabalho, tanto quanto a positividade per se, seriam dois dos elementos constitutivos do que tem sido chamado de novas identidades. Procurarei, neste breve texto, levantar algumas questões relacionadas a esses dois fatores. Vamos por partes.

2. Como já avancei, a perda substancial de importância do mundo do trabalho enquanto instância de socialização dos indivíduos não é uma realidade a ser inscrita apenas no registro dos "desejos", mas um fenômeno empírico verificável no registro bem material da economia e suas injunções: as forças produtivas modernas, dominadas pela robotização e informatização dos processos produtivos, são altamente liberadoras de mão-de-obra. Isso ocasiona que, se de um lado estão colocadas as condições materiais para uma cada vez maior (e obviamente bem-vinda ... ) importância de um novo "mundo lúdico" em relação ao tradicional "mundo do trabalho", por outro lado vale a pena não esquecer que isso é igualmente fonte de sofrimento e angústia, porque liberação de mão-de-obra também significa ─ pelo menos até agora tem significado ─ precarização das relações de emprego, com o virtual fim do contrato de trabalho por tempo indeterminado, desemprego e, finalmente, exclusão social.

Esse é um fenômeno mundial, atingindo até mesmo os países dotados das mais sólidas e tradicionais estruturas de inclusão via emprego. Na França, por exemplo, Robert Castels estima que cerca de 70% das pessoas entram atualmente no mercado de trabalho sob formas mais ou menos atípicas, ocasionando o que ele considera uma "fragilização completa da condição salarial" [1]. Esse fenômeno, que tem sido chamado de "desemprego estrutural", será, juntamente com a questão ecológica, um dos grandes problemas que a humanidade terá de enfrentar no século que se inicia. Nessas condições, percebo faltar no discurso muitas vezes entusiasmado sobre as novas identidades uma reflexão mais realista que leve em conta esse importante problema. É como se a ruidosa crise do marxismo tivesse remetido para o arquivo morto do nosso acervo analítico uma questão central para a existência de qualquer sociedade (com perdão da má palavra): o modo de produção. Pensá-la, entretanto, parece-me indispensável para se trabalhar a possibilidade de construção de um "mundo lúdico" liberado do subproduto cruel que a crise do "mundo do trabalho" tem produzido até agora: desemprego, marginalidade e exclusão.

Alguns dados que relevam da lógica mais elementar e da simples aritmética são capazes de nos convencer de algumas evidências: se o setor produtivo da economia absorve e absorverá cada vez menos mão-de-obra, das duas, uma ─ ou, provavelmente,
as duas: o processo de redução do tempo de trabalho, que no século XX fez avanços extraordinários [2], terá de continuar: as pessoas empregadas trabalharão menos, para que muitas pessoas que estão desempregadas possam trabalhar. Ou (mas, como sugeri, as duas coisas não são excludentes) a lógica da economia mercantil-capitalista, centrada sobre a produção de bens, terá de mudar de eixo: é no setor de serviços ─ inclusive de serviços "improdutivos" como assistência à infância e à velhice, animação cultural etc. ─ que as possibilidades de emprego são praticamente infinitas, seja porque as necessidades humanas nessas áreas são também infinitas, seja porque são áreas onde a robotização das atividades nunca substituirá ─ pelo menos a contento ─ o elemento humano. Que se pense, por exemplo, no bem infinito que faz, num doente, um carinho na sua mão ... Isso exigirá mudanças nos valores, certo, mas sobretudo na própria teoria do valor, que já não poderá se assentar sobre o trabalho "produtivo"!

Tudo isso, evidentemente, demandará muita ousadia política e imaginação criadora, além de competência econômica, pois uma diminuição do tempo de trabalho não poderá significar uma correspondente diminuição salarial, com o que ficaríamos presos à lógica dos processos de empobrecimento atualmente em curso. Ao contrário, o nível de renda dos cidadãos-consumidores deverá permanecer compatível com um nível de demanda global satisfatório e com as "novas necessidades" surgidas a partir do próprio progresso tecnológico, o que só será possível com a manutenção de um nível de produtividade em patamares altos.

Mudanças dessa magnitude não se farão sem uma intervenção política decidida, consciente das verdadeiras questões cruciais que estão em jogo neste processo um tanto impropriamente chamado de "fim do trabalho" ─ pois que na verdade se trata antes do fim de um certo tipo de emprego. Em todo caso, o que importa considerar é que na ausência de uma intervenção desse tipo, não será certamente o livre funcionamento das engrenagens econômicas atualmente vigentes que irão resolver as graves questões aqui afloradas. Não são as leis do mercado, por exemplo, que irão encontrar uma solução para o fato de que na cidade de São Paulo, já nos anos 90, existiam cerca de 50 mil pessoas "liberadas" do emprego, mas trabalhando para o narcotráfico ─ um número maior do que os empregados na indústria automobilística[3]. Afinal de contas, as pessoas precisam viver para poder ser sujeitos desejantes ...

Esse pequeno détour um tanto economicista, aparentemente fora de lugar numa discussão sobre um tema do qual o anti- economicismo é praticamente um pressuposto, teve apenas a finalidade de chamar a atenção para alguns processos que continuam sendo, senão determinantes, pelo menos condicionantes. O fim do trabalho ─ ou, se preferirmos, o fim do emprego como o conhecíamos ─- não é um processo que leve, por si só ─ isto é: sem que ao mesmo tempo sejam promovidas profundas mudanças no mundo da economia ─, a um desabrochar de novas identidades mais felizes do que as infelizes identidades laborais forjadas pela tétrica "sociedade disciplinar" de que nos falava Michel Foucault [4].

Mais do que isso, as legiões de desempregados que hoje perambulam pelos quatro cantos do mundo revelaram algo que não tínhamos percebido quando eles - pelo menos nas dimensões atuais - não existiam: ter um emprego, não é apenas ter sido condenado a alienar a força de trabalho, como a crítica marxista sempre lembrou. Sem dúvida, é também isso, sim, mas é igualmente uma maneira de inserir-se na sociedade, de exercer uma atividade reconhecida como socialmente relevante e, através disso, sentir-se participante da comunidade dos homens. A tese da descentralidade do trabalho na constituição das novas identidades, assim, merece ser melhor ponderada.

3. Passo à segunda questão. Ela se refere à positividade per se das diferenças e singularidades, não mais referidas a uma estrutura normativa a elas exterior que, como tal, lhes daria sentido ─ e eventualmente, no caso de "desvio", lhes corrigiria os rumos. O sentido, se há algum, passa a ser o de sua própria experiência existencial, operando-se assim uma "perda dos horizontes totalizantes” [5] que caracterizava aquilo que os pós-modernos, ironizando a utopia marxista, chamam de "grandes narrativas". O perigo que vejo aqui é o de que o estrito respeito a todas as formas de singularidade, sem a introdução de um princípio normativo qualquer, termine por considerar todas as diferenças como dotadas de um mesmo estatuto de autonomia e positividade ─ o que não ocorre.

De um lado, é verdade, há minorias comportamentais que reivindicam o seu "direito à diferença" dentro de uma lógica de positividade, na medida em que recusam ser o negativo de uma suposta "normalidade" e afirmam sua diferença enquanto tal,
autonomamente, assumindo aquilo que Luc Ferry chamou de “ética da autenticidade”[6]. Mas existem minorias e minorias, e não são todas que estão em condições de reivindicar um tal estatuto. É o que ocorre, por exemplo, com segmentos sociais miserabilizados como favelados, moradores de rua, meninos de rua, catadores de lixo etc. Nesses casos, segundo penso, seria impossível falar-se numa "ética da autenticidade", porque esses segmentos querem deixar de ser o que são, e muito menos em autonomia, porque a sua condição não é algo que eles tenham livremente escolhido ou eventualmente aceito, segundo sua vocação, mas a conseqüência longínqua de processos econômicos sobre os quais eles não têm nem remotamente qualquer possibilidade de influir. E, no entanto, nesses novos tempos pós- marxistas, às vezes ouvimos alguns discursos que parecem não estar suficientemente advertidos dessas determinações.

Peguemos de propósito o mais fragilizado desses segmentos, os "meninos de rua". Ora, existem a respeito deles alguns discursos que, mesmo conhecendo-os muito bem, parecem negligenciar as terríveis determinações das quais eles são sobretudo vítimas, ao transformarem uma situação existencial insuportável ─ estar na rua ─ numa experiência forjadora de uma ... identidade! É o que faz, por exemplo, um documento do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, ao "renegar iniciativas que buscam a sua 'domesticação', 'acomodação' ou 'ajustamento' ao sistema social vigente", elevando o menino de rua ─ objeto onde se concretizam todas as injustiças de uma organização social cruel e pervertida ─ à categoria de "sujeito de direitos e sujeito da história." [7]

Essa mesma linguagem dos direitos escutei de um militante num seminário sobre direitos humanos no Recife. Ele considerava um avanço da cidadania no país uma frase que teria ouvido de um menino de rua dirigida a um policial: "Eu sou menor e você não pode me bater porque a lei me protege". É óbvio. Polícia ─ será necessário dizê-lo? ─, em lugar nenhum do mundo deve ter o direito de bater em ninguém. E muitíssimo menos numa criança. Isso é tão óbvio que nem precisa de justificação. Talvez não devesse sequer ser dito, pois é como se qualquer argumento a favor dessa verdade a enfraquecesse, ao dar a impressão de que ela precisaria de qualquer coisa em seu apoio que não seja a mais solar evidência. Eu não tenho nenhuma crítica, assim, à frase do menino. Mas me pergunto se o entusiasmo do militante em face dela não esconde o perigo de não ver todo o absurdo da situação: qual seja, a de crianças estarem na rua confrontando-se com a polícia! Não como um caso isolado, eventual, mas como uma situação existencial permanente.

Noutra feita, participando de um seminário especificamente sobre meninos de rua, escutei de um sociólogo a descrição quase idílica de um grupo desses meninos brincando diariamente num chafariz na praça perto de sua casa, tudo isso sob o olhar rancoroso dos moradores de classe média do local. E ele se perguntava se, no fundo, essa hostilidade das pessoas não seria um ressentimento do "mundo do trabalho" contra o "mundo do lúdico"! Uma postura análoga a essa encontra-se na reflexão de uma antropóloga, monologando como se fosse uma representante do "mundo do trabalho" com uma menina de rua:

“Mas esta minha irmãzinha de rua, que não está satisfeita com as suas condições, que não gosta dos inimigos que a rodeiam, será que quer todos os ônus da nossa civilização? Se quiser, terá que abandonar a tirania da natureza, universo silvestre do aqui/agora e optar, pagando em repressão, simbolização, sublimação.”[8]

Indo até o fim no seu monólogo ─ que por vezes, do ponto de vista estilístico, dá a impressão de ser um delírio ─ a autora chega a emitir a suspeita de que está cometendo o delito de etnocentrismo:

“Nós não duvidamos que ser cidadão é o máximo da evolução. [ ... ] Mas o que nós temos a lhe propor como solução, será mesmo a melhor? Pois este é o problema que lhes coloco. Será que as agruras e as angústias da cidadania são tão desejáveis? Ou somos tão apenas etnocêntricos?” (idem, p. 196).

Várias respostas podem ser dadas a uma questão desse tipo. Que, aliás, deveria em primeiro lugar ser endereçada à menina com quem ela monologa. A resposta poderia ser: "Por favor, me leva embora daqui" ─ como foi a súplica que o jornalista Gilberto Dimenstein ouviu de uma menina de rua enquanto pesquisava para escrever seu livro sobre extermínio de menores.[9] Numa sociologia mais convencional, o desejo da menina também é o mais encontrado entre os seus companheiros de desdita: numa pesquisa com 461 crianças com idade entre 7 e 17 anos, feita no Recife, apenas 18,6% disseram ter vontade de continuar morando na rua; 10,4% disseram não saber; e 70,4% responderam não a essa questão [10]. Mas será que seria necessário perguntar?

Espero com isso não estar dando a impressão de ser partidário da idéia, tão cara à nossa tradição autoritária e impiedosa com os mais fracos, de caçar os meninos de rua no laço e jogá-los em campos de concentração! ─ como já chegou a sugerir, aliás, o insuperável Coronel Erasmo Dias [11]. Mas não haverá alternativas? Certamente sim, inclusive aquela apontada pelo próprio M.N.M.M.R quando, lucidamente, propõe para esses meninos "vivências pedagógicas em espaços afastados das ruas onde possam experienciar novos valores diferenciados dos vividos na rua" [12].

Mas essa, evidentemente, não é a questão de que me ocupo neste texto. Se evoquei esse problema dos meninos de rua foi apenas porque a sua dolorosa realidade existencial, mais do que talvez qualquer outra, exemplifica muito bem, por causa de sua radicalidade, a necessidade de termos critérios de julgamento quando abordamos
as experiências constitutivas das chamadas "novas identidades", sob pena de não sermos mais capazes de distinguir a diferença da desigualdade, a livre singularidade da mais brutal determinação.

Notas

*Texto apresentado no VIII Encontro Regional Norte-Nordeste da ANPOCS (de 10 a 13 de junho de 1997, em Fortaleza-CE). Agradeço a Joanildo Burity o convite para participar do Encontro. Publicado em Cadernos de Estudos Sociais, Recife, Fundação Joaquim Nabuco, vol. 16, nº 1, jan.-jun., 2000

[1]Robert Castels, L'avènement d'un individualisme négatif". Entrevista publicada em Magazine
Littéraire, Paris, nº 334, julho-agosto de 1995, p. 19.
[2] Num país como a França, por exemplo, a duração anual de trabalho de um assalariado passou de 3.000 a 1.650 horas ─ é uma redução de quase a metade! (Ver: Achille Weinberg, "L' avenir du travail ─ déclin ou renouveau?". In Sciences Humaines, nº. 59, março de 1996.)
[3]Ver: Folha de S. Paulo, Caderno “Cotidiano”, 11 de maio de 1997, p. 1.
[4]Ver: Vigiar e Punir, Petrópolis: Vozes, 1977.
[5]Fernando Calderón e Elisabeth Jelin. Classes Sociales e Movimientos Sociales en America
Latina. CLACSO, s/d, repro., p. 27.
[6]Luc Ferry. L’Homme-Dieu ou le sens de la vie. Paris: Grasset, 1996.
[7] M.N.M.M.R. Contribuição para Definição de uma Política para Infância e Juventude no Brasil, s/d, repro., p. 1. É bem verdade que, adiante, o mesmo documento rende-se ao bom-senso, ao propor "Desenvolver e apoiar programas de educação de rua para as crianças na perspectiva de ser uma abordagem inicial, primeira fase de um processo que leva a outros desdobramentos, inclusive a oportunização de vivências pedagógicas em espaços afastados das ruas onde possam experienciar novos valores diferenciados dos vividos nas ruas". E no mesmo sentido: “Todos estes programas devem ser implantados mantendo uma articulação com a rede de ensino regular” (p. 25) ─ itálicos meus.
[8] Anna Verônica Mautner, “Cidadania e Alteridade”. In Mary Jane Paris Spink (org.). A Cidadania em Construção. São Paulo: Cortez Editora, 1994, p. 195.
[9] Gilberto Dimenstein. A Guerra dos Meninos. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 9.
[10] Cleide Galiza de Oliveira. Se Essa Rua Fosse Minha ─ um estudo sobre a trajetória e
vivência dos meninos de rua do Recife. Recife / Brasília: Fundação Joaquim Nabuco / UNICEF,
1989, p, 55.
[11] Ver: Dimenstein, op. cit., p. 89.
[12]Ver nota 7, acima.