quarta-feira, 23 de setembro de 2009

GIORGIO AGAMBEN E O POLÍTICO (workshop)

(só para lembrar...)

DE 9 ÀS 12h.:
Josias Vicente de Paula (UFPB): “Política e Estado em Agamben”
José Luiz Ratton (UFPE): “Entre o Humano e o Não-humano: muçulmanos, vida nua e extermínio no Brasil"
Aécio Amaral (mediador)

DE 14 ÀS 17h.:
Aécio Amaral (UFPB): "Vida e potencialidade: Agamben e o biopoder contemporâneo"
Jonatas Ferreira (UFPE): “Heidegger, Agamben e o Animal”
Josias Vicente de Paula (mediador)

DATA: 25/09/2009
LOCAL: Sala de Seminários do PPGS da UFPE
Centro de Filosofia e Ciências Humanas, 12o. andar

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

CAZZO PROMOVE!!!


GIORGIO AGAMBEN E O POLÍTICO (workshop)


DE 9 ÀS 12h.:

Josias Vicente de Paula (UFPB): “Política e Estado em Agamben”

José Luiz Ratton (UFPE): “Entre o Humano e o Não-humano: muçulmanos, vida nua e extermínio no Brasil"

Aécio Amaral (mediador)


DE 14 ÀS 17h.:

Aécio Amaral (UFPB): "Vida e potencialidade: Agamben e o biopoder contemporâneo"

Jonatas Ferreira (UFPE): “Heidegger, Agamben e o Animal”

Josias Vicente de Paula (mediador)


DATA: 25/09/2009

LOCAL: Sala de Seminários do PPGS da UFPE
Centro de Filosofia e Ciências Humanas, 12o. andar


Depois, seguiremos em passeata para tomar umas e outras no Recanto da Várzea (antigo Quiquiá) e comemorar os dois anos de CAZZO. FESTA!

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Entre o Burocratismo e a Anomia

Já que estamos falando de educação e que Artur está de férias no Congo Belga, roubei o texto abaixo do Blog dos Perrusi. Com palavra, o Dr. Perrusi, o Psiquiatra de Intermares.

Cynthia


Não imaginava que fosse um fenômeno mundial. É muito esquisito saber que acontece noutros países, pois o problema, desse jeito, torna-se mais profundo, menos conjuntural.

Leiam abaixo. Vou comentando. Pesquei na Folha de São Paulo.

CLÓVIS ROSSI

A impunidade da ignorância

LONDRES – Pelo choque que me causou, repasso ao leitor o essencial de artigo do escritor espanhol Rafael Argullol para “El País”.

Começa relatando que alguns dos melhores professores universitários espanhóis estão se aposentando “precipitadamente”. Cita dois motivos: “o desinteresse intelectual dos estudantes e a progressiva asfixia burocrática da vida universitária”.

Explico o sentimento de choque: não sei se a situação ocorre também no Brasil, mas sei que o caldo de cultura descrito por Argullol é parecido no Brasil (como, aliás, no resto do mundo).

Bem parecido, quase igual, pra dizer a verdade. A vida acadêmica é absolutamente burocratizada. Quando não, é anômica. Vive-se num pêndulo entre o burocratismo e a anomia. E, quanto mais se tenta ser produtivo, fazendo pesquisas, por exemplo, mais se entra numa rede maluca de regras e procedimentos completamente kafkianos. Fazendo pesquisa, virei um empreendedor de atalhos burocráticos. Sei todos os caminhos e todas as escadas que levam à secretaria de orçamento da UFPB. E não nego: os servidores são simpáticos e prestativos, mas são todos, apesar dos sorrisos, da ajuda e da competência, vetores de um sistema impessoal, que parece mais uma máquina de moer paciência, além e aquém de nossas vontades.

Tenho pesadelos com todas as rubricas que infestam a Conta da União. Meus sonhos têm uma única temática: recebo uma bolada da UNESCO, mas não posso gastar por causa de duas ou três rubricas ensandecidas. Corro delas, mas cinco rubricas, escondidas no andar da pró-reitoria de administração, apanham-me com uma rede de artigos que me impossibilitam gastar o dinheiro. Ganhar um bom financiamento de pesquisa é uma maldição — não recomendo a ninguém. As rubricas são más: dão choques elétricos no cérebro. Meus sonhos, cá entre nós, dariam uma boa animação de terror para criancinhas. Minhas experiências, sem dúvida, dariam um bom diário de campo: etnografias da burocracia universitária.

A organização atual das federais é incompatível com a produção científica. Somos, na verdade, uma repartição pública. Cadê a reforma universitária? Virou uma utopia.

Os professores, escreve Argullol, “se sentem mais ofendidos pelo desinteresse [dos estudantes] do que pela ignorância”. Acrescenta que um amigo lhe disse que “os estudantes universitários eram o grupo com menos interesse cultural da nossa sociedade, e isso explicava que não lessem a imprensa escrita, a não ser que fosse de graça, que não buscassem livros fora das bibliografias obrigatórias, ou que não assistissem a conferências se não fossem premiados com créditos úteis para serem aprovados”.

Não me sinto particularmente ofendido. O que sinto é um baita desânimo. Claro, não generalizo, pois existem alunos muito bons. Porém, a maioria não lê bulhufas. E falo de alunos de ciências sociais que, em tese, deveriam ter uma mínima curiosidade intelectual. Estão nem aí! O problema é que a indiferença não é monopólio da graduação, mas também da… pós. Os alunos da pós reclamam das leituras. 50 páginas semanais é um estorvo! Na universidade, qualquer tipo de esforço é visto como uma imposição do professor. No fundo, ler é um ditadura imposta por um sádico. O esforço só é concebido quando há uma contrapartida ou uma recompensa imediata. Pavlov venceu!

Inocentemente, defendo as virtudes do diálogo democrático entre professor e aluno. Acho, imaginem só, que o contrato pedagógico deve substituir a autoridade. Através do blablablá igualitário, tentando diminuir as assimetrias que existem entre docente e discente, penso na possibilidade de esclarecer e de justificar o sentido do esforço e os modos de transmissão do saber. Como prêmio da minha patetice, recebo uns 10 bocejos, três roncos e um silêncio profundo (lá no fundo da sala, tenho certeza que escutei um risinho…).

Como voltar ao chicote? É tarde demais! É o fim da autoridade. Cavamos nossa própria cova. Minha vocação igualitária matou minha vontade de poder. :)

É o triunfo do que o escritor chama de “utilitarismo”. Os estudantes são adestrados na “impunidade ante a ignorância”, porque o conhecimento é um “caminho longo e complexo” e perde para o imediatismo da posse instantânea.

Simplesmente, é incompreensível a idéia singela de que a aquisição de um conhecimento é um “caminho longo e complexo”. Há um desejo frenético para que seja um caminho rápido e simples. A transmissão do saber teria como modelo os manuais de auto-ajuda ou as pregações de algum pastor da Universal. Procuram-se fórmulas, um kit qualquer, ou uma catarse, uma revelação rápida, que esclareça tudo de uma vez. O modelo pedagógico que mais se aproxima do “caminho rápido e simples” é o professor de cursinho, aquele que ensina porra nenhuma, e nem pode, pois a organização de um cursinho é, metaforicamente, um grande manual de auto-ajuda. É o lugar onde se oferecem espetáculos, fórmulas e, muitas vezes, uma catarse cênica que pode revelar “caminhos rápidos e simples” para se entrar numa universidade.

Não tenho informações para afirmar se essa situação ocorre também no Brasil. É evidente, em todo o caso, que há ou houve recentemente uma discussão sobre a asfixia burocrática.

Gilberto Dimenstein já comentou, tempos atrás, o fato de que professores de universidades públicas estavam se aposentando cedo e passando ao ensino privado.

O utilitarismo e o predomínio do individual são características contemporâneas globais. Estamos nós também cevando “a impunidade ante a ignorância”?

Estamos é lascados… A organização da universidade pública brasileira está datada. Quem produz ciência nesse estabelecimento, destinado a atender interesses do além-mundo, é um herói. Eu sou um deles; sim, sou um herói, mas me sinto muito mais um otário.

domingo, 13 de setembro de 2009

Sociologia Musical

No último Encontro Nacional de Estudantes de Ciências Sociais, em João Pessoa, presenciei um momento histórico: Nelson Tomazi (UEL) requisitou a Paulo Marcondes Soares (UFPE), nosso sociólogo da arte e letrista de plantão, que fizesse uma letra para uma música sobre Durkheim. Em outro momento histórico, numa reunião com o grupo de Estudos Africanos do PPGS na casa de Eliane Veras, na última sexta feira, presenciamos a concepção do Pancadão do Durkheim que, esperamos, esteja sendo devidamente gestado por Paulo neste exato momento. A idéia é fechar o círculo musical sobre os três porquinhos, iniciativa de Sérgio Silva (Unicamp) e Gabriel Cohn (USP). Abaixo, "Critica e Resignação na Manhã de Carnaval", com música de Sérgio Silva e letra de Gabriel Cohn, e o mundialmente famoso "Samba da Mais Valia" (letra e música de Sérgio Silva) – com legendas em francês para contemplar a ala Radical Chic do Cazzo. Olha o tamanho da responsabilidade de Paulo Marcondes, tadinho.

Cynthia




sábado, 12 de setembro de 2009

Sociologia no Ensino Médio: o que ensinar?



O texto abaixo é uma versão de um trabalho que apresentei em uma mesa redonda sobre conteúdos e metodologias do ensino da sociologia no nível médio, no XXIV Encontro Nacional de Estudantes de Ciências Sociais, João Pessoa- PB.


Cynthia Hamlin


No início de 2008, participei de um curso de extensão de formação de professores de sociologia do ensino médio oferecido pela UFPE e pela Secretaria de Educação do estado de Pernambuco. Dos cerca de quinhentos professores que participaram do curso, seguramente menos de dez por cento tinha formação em ciências sociais: a maioria vinha de áreas como história, geografia, pedagogia, matemática, biologia e até educação física. Apesar da diversidade, uma semelhança entre eles chamou-me a atenção: a grande maioria acreditava que o objetivo maior da introdução da sociologia nas escolas era “mudar a sociedade”.


Em um nível muito geral, concordo que há aí um fundo de verdade, especialmente se a mudança que se tem em mente diz respeito ao exercício pleno da cidadania e da democracia. Já no final do século XIX Durkheim (apud Lahire 2007: 388) enfatizava que

um povo é tão mais democrático quanto maior o papel da deliberação, da reflexão e do espírito crítico no que diz respeito às questões públicas. E tão menos democrático quanto mais a inconsciência, os hábitos irrefletidos, os sentimentos obscuros, em resumo, os preconceitos subtraídos ao exame são, ao contrário, preponderantes.

A idéia de se prover os estudantes com conteúdos sociológicos “necessários para o exercício da cidadania” apareceu na Lei de Diretrizes e Bases de 1996, sendo também sugerida nas Orientações Curriculares Nacionais de Sociologia (OCN’s). É verdade que as OCN’s não colocam muita ênfase nesta questão e após participar do referido curso de formação de professores, o que me parecia uma fragilidade no documento, hoje me parece uma virtude. Esclareço. Não se trata de negar a dimensão crítica e emancipatória da sociologia e, portanto, seu poder de mudar a sociedade, mas de enfatizar sua dimensão curricular a fim de salvaguardar seu papel específico nas escolas. Embora as OCN’s sejam orientações de caráter essencialmente aberto, tanto no que diz respeito aos conteúdos curriculares quanto aos procedimentos didático-pedagógicos, seu pressuposto básico é o de que o conhecimento sociológico só será realmente incorporado à educação se for trabalhado com base em um modelo curricular que a valorize enquanto um campo específico do saber e cujos temas não podem ser repassados de forma transversal, por meio de outras disciplinas. Em outros termos, o ensino da sociologia deve dizer respeito a um tipo específico de conhecimento escolar que, ainda que tenha o exercício da cidadania como um fim último, não se limita a ele.


Não reconhecer a sociologia como campo especializado abre a possibilidade de que seu ensino degenere em simples produção/reprodução ideológica, numa espécie de glorificação do senso comum sob a ilusão de um conhecimento especializado que, na melhor das hipóteses, transformaria as aulas de sociologia em verdadeiras conversas de botequim.


Ao enfatizar objetivos como o estranhamento e a desnaturalização do senso comum, as OCN’s apontam para a forma pela qual a sociologia pode, por meio de seus conteúdos, facilitar o exercício da cidadania. O que parece estar em jogo aqui é algo muito semelhante ao argumento que Norbert Elias propõe em O Processo Civilizatório: embora os seres humanos venham desenvolvendo uma atitude progressiva de distanciamento e de controle dos afetos em relação aos fenômenos naturais, tal distanciamento tem sido menos efetivo em relação aos fenômenos sociais. É este desafio que nós, sociólogos, precisamos enfrentar nas escolas sem, no entanto, perder de vista que a dimensão moral dos fenômenos humanos não admite uma separação tão estreita entre um distanciamento cognitivo e um engajamento afetivo.


Um estudo comparativo (ainda inédito) entre professores brasileiros e alemães desenvolvido por Thomas Leithäuser e Silke Weber (2009) demonstra que a preocupação com o estranhamento/desnaturalização, por um lado, e o receio de se transformar as aulas de sociologia em conversas de botequim alimentadas pela ausência de distanciamento reflexivo, por outro, é comum entre os dois grupos de professores, ainda que, sob determinados aspectos, por razões diametralmente opostas. Nas palavras dos autores do estudo, o objetivo do trabalho consistiu em saber

como os professores podem conseguir transmitir a seus alunos não apenas conhecimentos necessários, mas também o hábito de questionar e pensar de modo consistente, de desenvolver motivação para a reflexão filosófica e sociológica [...]. Queríamos saber dos professores como realizam [...] essa tarefa em suas aulas, quais os problemas que enfrentam, qual o apoio que necessitam e como conseguem, diante de todas as barreiras e dificuldades, dar aulas de qualidade.


O estabelecimento de grupos focais possibilitou que os professores refletissem sobre suas experiências e preocupações, revelando algumas semelhanças e algumas diferenças entre o contexto brasileiro e o alemão. São tais diferenças que, em minha opinião, ilustram bastante bem os dilemas envolvidos no estabelecimento de um currículo de sociologia (e também de filosofia).


É importante mencionar aqui que, enquanto os professores brasileiros ministravam sociologia e filosofia, os alemães ministravam uma disciplina chamada ética e filosofia mas que, segundo os autores do estudo, são bastante comparáveis em termos de preocupações gerais. Ambos os grupos mencionaram a dificuldade de se ensinar temas complexos mediante a ausência de reconhecimento dessas disciplinas que se manifesta das formas mais variadas: de uma carga horária excessivamente reduzida ao horário em que as aulas são ministradas (após as disciplinas consideradas importantes, quando os alunos já estão cansados). Diante desse problema, surge a questão de como engajar os estudantes em uma discussão produtiva que não seja percebida como um mero “descanso” das atividades sérias. É aqui que as dificuldades percebidas pelos brasileiros e pelos alemães parecem se distanciar.


Para os brasileiros, um dos principais problemas diz respeito à formação sociológica e filosófica insuficientes. Há um desconhecimento das teorias e dos métodos utilizados pela sociologia e a inexistência de um currículo uniforme é percebida como um entrave ao ensino. Para os professores alemães, cuja formação não é questionada, o problema maior diz respeito à dificuldade de transpor conteúdos complexos para alunos de pouca idade, o que se manifesta no medo de oferecer respostas excessivamente teóricas e abstratas aos estudantes, especialmente porque a disciplina é muito nova nas escolas. Um outro problema mencionado pelos professores alemães refere-se à segmentação do saber: dado que as escolas alemãs também têm uma disciplina de Política, quando os problemas morais se confundem com os políticos surge a dúvida em relação à disciplina na qual eles devem ser abordados.


Ausência de formação que impede a transmissão de um conhecimento especializado, por um lado, excesso de especialização que gera uma segmentação do saber, por outro. O medo de respostas pouco fundamentadas teórica e metodologicamente versus o risco de um tratamento excessivamente abstrato e distanciado dos problemas sociais. Em ambos os casos, a conseqüência desastrosa de que as aulas se transformam em puro blá-blá-blá, o que impede que essas disciplinas estabeleçam a mediação necessária entre o conhecimento especializado e uma participação consciente nas questões públicas.


No caso específico dos professores brasileiros, parece haver ainda uma crença difusa e generalizada de que muito da angústia experimentada será dissipada com o estabelecimento de um currículo que não apenas garanta uma certa uniformidade nos conteúdos repassados pelas diferentes escolas em diferentes séries do ensino médio, mas que, sobretudo, lhes diga o que ensinar. É comum, inclusive, ouvir referências à necessidade de um currículo mínimo nacional. Parte do problema é que, para que as Secretarias de Educação possam estabelecer seus currículos, respeitando as especificidades locais, seu quadro de professores precisa ser especializado. Como isso não corresponde à realidade dos professores de sociologia do ensino médio no Brasil, gera-se o desejo de que alguém lhes diga claramente o que fazer, retirando de seus ombros a responsabilidade do desenvolvimento dos currículos.


Mas será que essa é a resposta mais adequada ao problema? Não creio. De fato, acredito que a demanda gerada pelo desenvolvimento desses currículos pode colocar uma pressão saudável no sentido da contratação de professores especializados nas escolas, da melhoria dos cursos de licenciatura, assim como de uma colaboração mais efetiva entre professores universitários e professores do nível médio – a este respeito, remeto à experiência da Secretaria de Educação de São Paulo, que desenvolveu uma proposta curricular a partir da colaboração de um grupo de professores universitários reunidos pela Sociedade Brasileira de Sociologia.


Acredito, entretanto, que, menos do que determinar o estudo de temas específicos, importa que os currículos consigam estabelecer aquilo que Bernard Lahire, ao propor a introdução da sociologia no ensino fundamental na França, chama de uma terceira cultura entre uma cultura literária e uma cultura científica. Esta terceira cultura busca desenvolver nos estudantes um conjunto de competências e disposições características das ciências sociais que tornará possível aos estudantes questionar a realidade na qual estão inseridos e desenvolver posicionamentos mais solidamente embasados. Longe de almejar a construção de um conhecimento enciclopédico, tais competências e disposições visam simplesmente a incorporação de alguns hábitos intelectuais das ciências sociais à cultura escolar (Lahire, 2007: 400-401):


1) A objetivação etnográfica, ou o desenvolvimento de um “olhar sociológico” capaz de descrever e de narrar aquilo que se pode observar diretamente. Esta competência, além de dirigir a atenção dos alunos para a sociedade que os rodeia, está ligada ao desenvolvimento de um léxico extremamente rico à medida que se aprende a “nomear as coisas, a descriminar situações, a designar os gestos, as mímicas ou as atitudes”.

2) A objetivação estatística por meio da construção de questionários sobre temas de interesses dos estudantes e o desenvolvimento de tabelas, gráficos e proporções que os permita refletir acerca de tendências sociais gerais. Além de possibilitar a aplicação de conhecimentos adquiridos em disciplinas como a matemática, o estabelecimento dessas tendências possibilita que os estudantes percebam seu lugar na sociedade, aproximando-se ou afastando-se da norma.

3) A entrevista sociológica que, diferentemente da entrevista burocrática, jornalística etc, obriga o estudante a se colocar no lugar do entrevistado e, em lugar de impor a ele suas próprias categorias de valor, ajuda o outro a dizer o que quer. De maneira mais geral, a entrevista sociológica representa um verdadeiro exercício democrático na medida, ao requerer uma escuta paciente, atenta e curiosa, pode gerar um sentimento de verdadeiro respeito ao outro.


Certamente que tais habilidades e disposições devem ser desenvolvidas a partir dos grandes temas caros à sociologia, como socialização, cultura, desigualdades sociais (de classe, raça e gênero), instituições sociais (família, economia, religião, política, educação etc), ação coletiva e movimentos sociais dentre outros. Relacionar os hábitos intelectuais anteriormente mencionados a esses grandes temas é, no entanto, responsabilidade de todos nós. Sacrificar nossa liberdade de escolher aquilo que melhor se adéqua ao nosso contexto por medo de arcar com tal responsabilidade é ir contra um dos princípios mais fundamentais da sociologia: o de que a reflexão crítica acerca dos fenômenos sociais possibilita a atuação nos assuntos públicos de forma consciente e responsável.


Referências


Lahire, Bernard (2007) L’Esprit Sociologique. Paris, La Découverte.

Leithäuser, Thomas; Weber, Silke (2009). Ética, Moral, Sociologia e Política na Visão de Professores Brasileiros e Alemães: um estudo qualitativo em ciências sociais. Universidade Federal de Pernambuco, Recife, mimeo.


quinta-feira, 10 de setembro de 2009

O que é Sociologia?


Como uma pessoa extremamente engajada no ensino de introdução à sociologia, vivo preocupada em encontrar definições que façam sentido para os pobres mortais não iniciados no jargão sociológico. Já tentei uma breve arqueologia da sociologia e definições millôrdianas retiradas da Bíblia do Caos que poderiam ilustrar a imaginação sociológica:

-"o rebolado da garota de ipanema é cultural ou genético"?
-Esse tom de voz totalmente diferente com que nos dirigimos ao nosso patrão e aos nossos empregados, é social ou genético"?
- "Não, meu filho, eles não estão afirmando nada. Estão só usando sinais semânticos, macros semiológicos, para exprimir convenções semafóricas com objetivos subliminares".

Por alguma razão, meus alunos parecem continuar confusos. Tento a definição de Heraldo Souto Maior:

- "Sociologia é o meio de vida dos sociólogos".

Nada.

Na minha próxima turma de introdução à sociologia vou tentar algo diferente:

"Sociologia é o estudo de pessoas que não precisam ser estudadas por pessoas que precisam".

Acho que dessa vez as coisas ficarão claras. De uma vez por todas.

Cynthia

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Expressões identitárias entre « a turma do bem » e os « radicais chics » : por que Habermas e Laclau não se entendem bem ? (parte 2)



Tâmara Oliveira

Radicalizando uma crítica à nebulosa multiculturalista, alguns vão simplesmente apresentá-la como componente da ideologia liberal globalizada, meio de construção/legitimação de identidades fratricidas que alimentam um ethos competitivo a serviço do mercado(Sachot, 2006). Outros vão aceitar a crítica multiculturalista do caráter realmente dominador e ilusoriamente universal do modelo de integração social moderno, mas põem em questão teórica e/ou prática seu princípio particularista de integração social (Castel, 2009; Lenoir-Achdjian, 2006 ; Schnnaper, 2006 ). Eu mesma (2008), modestamente, sem reduzir o multiculturalismo à ideologia liberal e acatando aspectos de sua crítica ao universalismo moderno, já insisti numa velha pergunta: a tendência a identificar desigualdades sócio-econômicas a demandas identitárias não desvia a atenção das afinidades sócio-econômicas, estas que reúnem todo o arco-íris de homens e mulheres que (mal) vivem do trabalho na mesma dependência de um capitalismo hiper-acelerado e socialmente “descomplexado”?

Pois bem, Habermas e Laclau inserem-se numa aceitação crítica da nebulosa multiculturalista, problematizando o princípio particularista de integração social que certas de suas expressões concretas e mobilizadas defendem. Recusando a identificação entre preservação de culturas e preservação das espécies naturais, Habermas (1994) afirma que se o Estado pretender garantir a sobrevivência de uma cultura, estará necessariamente roubando aos seus membros “a liberdade de dizer sim ou não que é necessária se querem apropriar-se e preservar sua herança cultural” (1994, p. 148). Laclau (2000), por sua vez, considera que um dos percursos do multiculturalismo, o da defesa do direito de uma vida em separado de grupos identitários oprimidos, é o de um auto-apartheid, pois, proclamando que os valores e instituições ocidentais são atributos dos machos brancos “ocidentais”, tais grupos não só reforçam o enfrentamento entre particularismos como a manutenção do status quo, já que tal enfrentamento terá a hegemonia dos grupos dominantes.

Mas os aspectos realçados na crítica de um ou do outro já encerram o que os separa. Habermas nos remete a um entendimento do universal como positividade em aberto mas possível, encarnável pelos debates entre os cidadãos concretos de uma nação. Laclau nos remete a um entendimento do universal como negatividade necessária, como insuperável “presença da ausência” do universal nos embates entre grupos por hegemonia. Melhor dizendo, o realce habermasiano da liberdade dos membros de um grupo para dizer sim ou não a uma identidade cultural, deixa claro que sua perspectiva de universalidade privilegia o indivíduo e a discussão num horizonte de interpretação comum, que integra abstrata e igualmente todos os cidadãos. Laclau, por sua vez, concentrando-se em grupos identitários e em dinâmica hegemônica, situa teoricamente o vínculo entre o universal e o particular no privilégio analítico de grupos em luta por poder político. Retomando ainda a instigante entrevista de Vandenberghe, diria que, quanto ao privilégio do indivíduo ou do grupo, é assim que o compreendo quando ele situa reatualizadores da obra de Habermas num horizonte “acionista” e Laclau num horizonte “pós-estruturalista”.

Em segundo lugar, tem-se a oposição integração/luta por poder. Tentarei apresentar essa oposição a partir da exposição sintética dos modelos dos dois autores.

O percurso de Jürgen Habermas, de sua teoria da ação comunicativa (1987), passando por sua argumentação sobre o discurso filosófico moderno (1999), até suas obras e engajamentos mais recentes, tem sempre um mesmo sentido de fundo: o de sustentar teórica e praticamente a articulação entre universal (princípios de integração sustentados com força de obrigação para todos) e particular (indivíduos e grupos diferentes, os construtores concretos daqueles princípios), a partir de consensos inevitavelmente contextuais (posto que encarnados na e pela diversidade dos indivíduos/contextos concretos), mas universalizáveis (extensíveis a outros contextos, devido às próprias potencialidades consensuais e universalizáveis da comunicação humana). Daí sua insistência na separação necessária entre o nível da integração política individual de todos os cidadãos e o da “integração ética de grupos e subculturas com suas próprias identidades coletivas” (Taylor et al., 1994, p. 151) – elevando o primeiro a princípio ideal regulador das sociedades democráticas contemporâneas e considerando que o segundo precisa da validade do primeiro, para que a cultura majoritária não usurpe nem o reconhecimento das minorias nem a autonomia individual diante das identidades coletivas.

Não vou aqui descrever as diversas críticas ao modelo habermasiano, mas a verdade é que algumas delas (Rochlitz ,2002; Elley 1992) parecem-me pertinentes quando indicam que, enquanto variáveis empíricas, a democracia e a cidadania dependem de interações, conteúdos simbólicos e instituições formais ou informais, cuja complexidade põe em cheque a abordagem demasiadamente filosófica, sistêmica e idealizante de Habermas.

Pessoalmente, penso que o aparelho teórico habermasiano reduz a análise do poder e da ação estratégica às esferas formalmente institucionalizadas – sistema Estado e sistema mercado. Sendo assim, o « mundo da vida » é um conceito filosófico sobre a sociedade cuja « adequação de sentido » para com a possibilidade de « ação comunicativa » na “esfera pública” pode ser estabelecida logicamente, mas que não pode dar conta da complexidade sociológica das interações objetivas ou simbólicas de poder e de conflito social, bem como da integração social informal observável na vida pública. Melhor dizendo, insistir sobre o poder e o conflito enquanto potências sistêmicas do Estado e do mercado e, na ética da discussão e na solidariedade enquanto potências do mundo da vida, é correr o risco de negligenciar analiticamente o fato de que a desigualdade de posição, de conhecimento, de interesses e de valores são também uma realidade das interações cotidianas entre os atores sociais, ou seja, do próprio mundo da vida. Penso até que quando Vandenberghe declara em sua entrevista que no Brasil o problema é o contrário do proposto por Habermas, ou seja, aqui o sistema é que é colonizado pelo mundo da vida, está tocando nessas dificuldades do modelo habermasiano.

Numa direção diferente da habermasiana, já que se trata de um teórico político desconstrucionista que se opõe explicitamente ao “princípio regulador de uma comunicação sem entraves” (Laclau, 2000, p.31), já foi dito aqui que Ernesto Laclau também defende uma nova articulação universal/particular, resultando necessariamente na hibridização das expressões identitárias. Tal articulação seria fundamentada não nas potencialidades consensuais, como faz Habermas, mas em seu contrário: nos próprios conflitos por hegemonia entre grupos concretos. Neste sentido, o(s) grupo(s) adquirindo hegemonia, ocupa(m) contextuamente o “lugar vazio” que é o universal, a partir do que Laclau chama de “significante vazio”.

O “significante vazio” quer dizer antes de tudo que o universal não tem conteúdo fora das particularidades, mas tem a função de estabelecer equivalências entre demandas de identidades diferentes, num mundo que é “puramente diferencial” (Laclau, 2000, p. 29). Ele é um momento fluído de agregação e articulação hegemônicas, podendo realizar-se de duas maneiras. A primeira, que defino aqui como “modo potencialmente democrático”, é exemplificada pela articulação de demandas feministas, de grupos negros, de militantes por direitos civis, exigindo que cada conjunto dessas demandas abra-se a um certo grau de hibridez identitária que lhes confira uma perspectiva mais global – logo, aptas a assumir essa espécie de hegemonia hibridizada. Na segunda, que defino como “modo potencialmente totalitário”, se confere a uma reivindicação particular a função de representação universal de uma cadeia de equivalências concretas entre identidades diferentes – neste caso, tal reivindicação particular terá função hegemônica, realizando sozinha o significante vazio. Um dos exemplos que o autor coloca dessa maneira de articulação entre universal e particular é a socialização dos meios de produção – posto que esta não se apresentava como reivindicação econômica restrita, mas como representação equalizadora de uma série de demandas diferentes, exprimindo-se como orientação hegemônica para o conjunto da sociedade.Mais contemporaneamente, Laclau (2000) chama a atenção para um cenário possível desse modo potencialmente totalitário de ocupação do lugar vazio: o de uma lei que respeite as comunidades (e não mais os indivíduos) na esfera privada, ao mesmo tempo em que as decisões públicas referentes ao futuro de todas elas seriam obra de uma tecnocracia onipotente.

Nos dois modos, não saímos então do poder político entre grupos/reivindicações diferentes, sendo que o universal é uma representação funcional, necessariamente em aberto se se quer preservar a democracia, mas, em suma, um lugar vazio ocupado estratégica, hegemônica e contingentemente. De tal sorte que Laclau não nos deixa com fome teórica de conflito social. Pelo contrário, este se espraia e impregna todo o tecido social, deixando como única possibilidade de acordo democrático a contingência de estranhos Leviatãs gramscianos a serem inevitavelmente subsitutídos por outros Leviatãs gramscianos. O poder então parece ser a única categoria verdadeiramente positiva das relações entre diferentes e desiguais. Não é à toa que ler Laclau é mergulhar num texto misteriosamente ocupado por negatividades, ausências, impossibilidades... Saíndo das relações de poder, tudo são contingências, significantes vazios, plenitudes inacessíveis. O que São Durkheim não pensaria desse moço...! Quanto a mim, lendo-o costumo me beliscar pra dissipar uma angustiante sensação de sonho – ou melhor, de pesadelo.

De volta ao começo, pra compreender porque Habermas e Laclau não se entendem lá muito bem, acho importante ter em vista essa distinção de fundo em suas opções teóricas – o consenso para o primeiro; o conflito para o segundo. Isso ajuda inclusive um leitor a não se sentir burro todas as vezes em que se defrontar com semelhanças visíveis na argumentação dos dois, embora ambos estejam reiterando as incompatibilidades entre o descontrucionismo e a teoria da ética da discussão. Não sei quem foi que disse, mas parece que foi alguém do M.A.U.S.S, que Bourdieu e Boudon nunca se entenderam porque no final das contas são pontos extremos de um mesmo horizonte epistemológico. Seria este também o caso de Habermas e Laclau? Não sei, mas a verdade é que a necessária abertura das identidades à hibridização do segundo parece-me muito parecida com as condições da ética da discussão do primeiro...

domingo, 6 de setembro de 2009

Expressões identitárias entre « a turma do bem » e os « radicais chics » : por que Habermas e Laclau não se entendem bem? (parte 1)



Tâmara de Oliveira

Com mais de um ano de atraso, li numa entrevista do Catzo de 09.06.2008 que Frédéric Vandenberghe explica sua vinda ao Brasil como resultado de coincidência ou acidente feliz. Pois bem, acho que eu deveria agradecê-lo pessoalmente por sua entrevista ter sido uma coincidência feliz para mim.

Explico : participei recentemente de uma discussão sobre expressões identitárias contemporâneas, num seminário ocorrido na Universidade Federal de Sergipe (agosto 2009). Para prepará-la andei lendo La guerre des identités – grammaire de l’émancipation (Laclau, 2000), onde o autor afirma que sua perspectiva sobre o momento universal não se ampara em nenhuma condição a priori  independente de uma sociedade particular, como seria, segundo ele, a « situação de ‘linguagem ideal’ de Habermas » (Laclau, 2000, p. 14). Li também um texto de Habermas (Taylor et al., 1994) sobre multiculturalismo, onde ele explicita concordar com quem considera o argumento descontrucionista (reivindicado por Laclau) lógica e praticamente auto-destrutivo. Fiquei matutando se as semelhanças e as divergências entre a ética da discussão habermasiana e o significante vazio laclauniano, ambos úteis para discutir certas tendências essencialistas do definir ou agir identitários, poderiam render um texto razoável, se abordadas a partir de uma diferença de fundo entre eles : a primeira inspira-se em modelos teóricos do consenso social enquanto o segundo em modelos do conflito social. E não é que Vandenberghe tinha proposto reescrever a história recente da sociologia em termos de velhas oposições, entre as quais a do consenso e conflito ? Pois é, se ainda fosse preciso provar, essa entrevista do Catzo o teria feito : andar pra trás pode adiantar.

O mesmo Vandenberghe, apresentando as linhas gerais de um livro que ainda estava escrevendo, expôs sua leitura de três constelações da sociologia contemporânea articulando oposição consenso/conflito à distinção humanistas/anti-humanistas/pós-humanistas. Assumindo usar categorias pouco analíticas, ele classifica herdeiros de Habermas e Appel como « a turma do bem » (consenso/humanismo) e Laclau como uma das estrelas dos « radicais chics » (conflito/anti-humanismo). Gostei tanto da expressividade das categorias nativas de que Vandenberghe faz uso que as entronizei no título. Mas é só tentativa de atrair leitores, não pretendo analisar sua adequação para comparar Habermas e Laclau. Meu objetivo aqui que, diga-se de passagem, aproveita partes do texto escrito para o tal seminário da Universidade Federal de Sergipe, limita-se a tentar isolar aquela divergência central entre eles – abordagem consensualista/abordagem conflitualista – partindo da descrição de como cada um vai problematizar certas expressões identitárias contemporâneas.

E ambos as problematizam sob uma mesma motivação de fundo, a de salvar teoricamente o Universal, nos embates em torno das ressignificações da tensão Universal/Particular que marcam a dinâmica das identidades contemporâneas. Um observador desavisado poderia acreditar que Habermas e Laclau têm motivo pra se entenderem muito bem.

Comecemos então pelo que poderia uni-los. A tensão acima colocada é um núcleo das discussões sobre as “identidades” não só de hoje como de ontem. Em termos banais, ela se refere à clivagem entre a pretensão universalista moderna de integração social e as realidades concretas – movendo-se sob o signo das diferenças e desigualdades de poder, de condições materiais, de conhecimentos, de interesses, de valores, de crenças e de aspirações (Oliveira/Lima, 2007). Embora o princípio universalista de integração idealize uma homogeneidade cultural pelo menos no interior de um Estado-nação, este sempre foi heterogêneo e sujeito a diferentes dinâmicas migratórias. Além disso, é um princípio que se orienta a um cidadão abstrato – sujeito e objeto dos direitos e deveres universais –, enquanto que a realidade da vida é irremediavelmente construída por indivíduos e grupos diferentes e desiguais, tanto em termos simbólicos quanto materiais.

No que diz respeito às expressões identitárias contemporâneas, sabe-se o quanto a tensão universal/particular tem sido profundamente ressignificada pelo que se pode chamar de nebulosa multiculturalista – genealogicamente articulável aos movimentos sociais dos anos 60, estabelecendo afinidades eletivas com correntes intelectuais pós-modernas e efetivamente mediada pelas transformações de sociedades cada vez mais globalizadas. Apesar da diversidade de suas expressões teóricas e políticas (daí o termo “nebulosa”), suas diferentes formas têm em comum a crítica dos princípios modernos universalistas. Estes são refutados como dissimulação da diversidade, visando à reprodução da discriminação e da dominação de grupos e indivíduos minoritários ou marginalizados, pelas elites. Coerentemente, o multiculturalismo militante tem a tendência a fazer da diversidade sócio-cultural o princípio ideal de integração contemporânea e vincula-se às demandas por políticas afirmativas enquanto luta contra a discriminação negativa de minorias e/ou grupos oprimidos.

Mas acontece que a diversidade, outro nome para a categoria Particular, também levanta problemas teóricos e práticos, podendo ser sintetizados também em termos banais: como viver juntos sendo diferentes e desiguais? Como estabelecer os princípios normativos das relações entre os diferentes e, principalmente, quem vai estabelecê-los, impô-los, assegurá-los? Qual seria o fundamento desses princípios? De negociação dinâmica entre as identidades diferentes? De subsunção das diferenças em princípios a elas transcendentes – quer sejam princípios contextualizados ou a priori? De segregação ou exclusão das diferenças consideradas incompatíveis – neste caso, quem vai e como vai definir quais as diferenças incompatíveis?

(continua)

terça-feira, 1 de setembro de 2009

A digitalização e edição da vida e suas conseqüências culturais (parte 2): A Cibernética como Paradigma das Ciências da Vida

Jonatas Ferreira

Depois deste breve panorama gostaria de me deter num aspecto da experiência genômica que me parece de fundamental importância. Não precisaríamos realizar um grande esforço analítico para perceber a importância da tecnologia de informação nos desenvolvimentos recentes da biologia molecular. As grandes proezas até agora realizadas foram claramente no campo da bioinformática, na provisão de tecnologia para que o mais elementar da nascente genômica fosse realizado: o seqüenciamento de genomas como os da cobaia, da mosca da fruta, do ser humano, da cana-de-açúcar etc. Medicina personalizada, terapia genética etc. são inovações que ainda se colocam no terreno da possibilidade. De todo modo, o que quer que a ciência possa realizar nessa área, e evidentemente muito se fará, estará intimamente relacionado com a qualidade de avanços que a bioinformática realizará. A imbricação entre genômica e informática é algo que julgo particularmente relevante, e que, de um modo mais amplo, diz respeito à convergência de paradigmas científicos entre as ciências da vida e a cibernética. Não é à toa que um bom número de tropos mediante os quais a biologia molecular se popularizou indicarem uma proximidade entre esses dois campos do conhecimento. Software da vida, chips genéticos, fala-se. Os organismos deixam de ser entendidos como conjunto ajustado de engrenagens, como o foram nos séculos XIX e XX, e passam a ser a “expressão” de instruções moleculares.

A suposição de que, em seu nível mais elementar, a vida é apenas informação (passível de leitura, edição) nos coloca no terreno de interseção entre estas duas áreas de conhecimento. Ora, desde o seu surgimento, a cibernética procurou se constituir em lingua franca dos projetos tecnológicos de controle do mundo natural. Para realizar tal intuito, a própria idéia de comunicação, de linguagem, de informação são especificamente definidas no contexto de uma ciência que viabiliza a perfomance, que garante a realização de tarefas, e, para tal, promove a desmaterialização, a descorporificação do real.

Tudo o que interessa no campo das diferenças entre o humano, o técnico e o natural é a possibilidade de encontrar um denominador comum que permita a comunicação perfeita entre esses universos. Linguagem, então, é aquilo que permite uma instrução ser proferida claramente, de modo a garantir a execução de uma tarefa qualquer, comunicação é o fluxo mediante o qual se garante que essa tarefa será realizada ao longo de um tempo determinado. E informação é um padrão que se repete ao longo do tempo. Ilustremos este argumento com dois exemplos. A biotecnologia com o auxílio da nanotecnologia investe hoje, com sucesso, na produção de medicamentos ditos inteligentes; drogas capazes de se direcionar para e reconhecer alvos específicos, tais como, tecidos cancerosos e ali realizar sua tarefa química de modo controlado, segundo as necessidades do paciente. Ora, o princípio aqui é o mesmo que faz operar os mísseis inteligentes, um dos primeiros projetos da cibernética. É por ter investido nessa nova percepção da biologia e da vida que a abordagem Venter para o mapeamento genético parece ter conseguido destaque. O shotgun approach consistiu basicamente em deixar a tarefa de dar sentido a um enorme quebra-cabeças, ou ao menos montá-lo na ordem correta, para as máquinas. A automação do seqüenciamento foi o pulo do gato. Venter ademais nunca escondeu sua admiração por Bill Gates e o desejo de transformar a Celera numa nova Microsoft. O que interessa aqui é a nova concepção de vida que começa a ser produzida pela biologia molecular.

A inteireza biológica do humano passa a ser um conceito questionável. A conclusão do mapeamento do genoma humano permitiu constatar que, ao longo de milênios, incorporamos em nosso patrimônio genético seqüências inteiras de bactérias. Mais recentemente, o primeiro genoma sintético foi produzido; espera-se produzir em breve seres unicelulares. A base teórica para este feito é simples: comparando o genoma de vários seres vivos verificou-se que um número reduzido de genes era comum a todos eles – em torno de 170. Especulou-se a partir daí que a biologia molecular teria deparado com a estrutura elementar capaz de expressar a vida. O próximo passo foi desligar um a um todos os genes considerados não-fundamentais à manutenção da vida; o resultado foi o primeiro genoma artificial. A biotecnologia já não se dedica à reprodução da vida, mas à sua produção. A reconstituição genética promovida pela biologia molecular, se não contradiz politicamente a noção de inteireza plástica dos corpos (como já temos a partir de Darwin), já não depende desse artifício para transformar o mundo orgânico. A biologia molecular não respeita os limites entre as espécies ou entre os corpos, mas os percebem como atualizações virtuais de uma matriz informacional – e esta matriz informacional é a própria vida no planeta.

A biotecnologia se torna uma questão de segurança de Estado. Lembremos que a decisão de publicar ou não numa revista científica o genoma da pólio foi uma decisão que envolveu não apenas cientistas envolvidos na façanha, mas o Departamento de Defesa americano. Temia-se fornecer informações que municiasse o bioterrorismo. Duas foram as razões que fizeram o Departamento de Defesa finalmente conceder na publicação. Primeiro, o argumento de que apenas os EUA e a Rússia teriam tecnologia suficiente para usar esse tipo de informação no desenvolvimento eventual de uma arma biológica e a constatação de que os russos iam publicar o genoma, de qualquer modo.

Os horizontes sociais e políticos que se constituem com a este novo paradigma para as ciências da vida demandam a atenção dos cientistas sociais. Essa nova forma de ver a vida biológica significa, por exemplo, uma nova percepção do que seja saúde. A vida, o corpo e a saúde pensados como expressão de um software sempre passível de um upgrade, um corpo 2.0, uma saúde 3.5. Esta é ao menos a visão a partir da qual já trabalha a nanobiotecnologia: se podemos melhorar, o meramente funcional passa a ser pensado como patológico. Acredito que a idéia de biopoder que Michel Foucault propõe na década de 70 ainda pode ser de grande utilidade para interpretar esse cenário social e tecnológico, no que pese a idéia de biologia que Foucault tem em mente ainda ser basicamente as ciências da vida do século XIX. Diferentemente do cenário descrito por ele, já não se trata prioritariamente de tornar os corpos mais potentes, ágeis, eficientes, disciplinados, mas de construir novos seres a partir de informações moleculares. Diante das possibilidades que se abrem (a fabricação de órgãos, tecidos a partir de células-tronco), poucos teriam a ilusão de que a produção de ‘corpos dóceis’ seja a essência da biologia molecular. A recombinação genética indica não apenas a fragmentação e a instrumentalização do mundo natural, mas também a indiferenciação de fronteiras que antes eram consideradas sagradas, tais como aquelas que delimitam o campo do humano, do corpo animal ou vegetal.

Perdido isto que o pensamento ocidental convencionou entender como a originariedade e a inteireza do mundo natural, a própria estrutura orgânica do real passa a ser elaborada como virtualidade. Voltemos ao ponto central. As novas tecnologias de recombinação genética nos ensinam que o grão de cereal, a bactéria, o primata são apenas um resultado orgânico eventual de uma seqüência precisa de instruções moleculares - instruções sobre a matéria inerte, passíveis de leitura, interpretação, recombinação. A partir da década de 50, a seguinte certeza vem se impondo na cultura ocidental: ao conhecer os “arquivos” e a “linguagem” que estruturam o software da vida, a biologia molecular se tornaria capaz de reprogramar o mundo orgânico, instruindo a bactéria a produzir insulina, um grão qualquer a manifestar características genéticas de um animal, bactéria etc., um primata a manifestar a fluorescência de certas algas. Neste contexto, a originariedade natural da Escherichia coli, do cereal ou do macaco Rhesus subsistiria apenas como uma possibilidade a mais, uma virtualidade, a que se adicionam outras tantas combinações tecnicamente viáveis.

Nesta comunicação procurei expor alguns pressupostos que norteiam o diálogo que hoje as ciências duras travam. Por mais técnico que sejam os termos em que essa conversa se trava, parece não haver dúvida que as transformações que ela parece por em movimento significam uma transformação profunda naquilo que podemos entender como vida, natureza, humano e tecnologia. Acredito que as humanidades devem estabelecer um diálogo precisamente neste espaço que parece ser conquistado pela vontade de operar, pela performance. Esse conjunto de transformações demanda que indaguemos: afinal, de que se trata quando falamos do humano, da natureza, do vivo e do inanimado? O derretimento das calotas polares, por exemplo, falam da urgência de nos determos neste tipo de indagação.

Festa do CAZZO: algumas personalidades já confirmaram presença