segunda-feira, 30 de novembro de 2009

O que Zinedine Zidane e Gilberto Gil têm em comum (parte 1)



Tâmara de Oliveira

L’identité est une "sorte de foyer virtuel auquel il nous est indispensable de nous référer pour expliquer un certain nombre de choses, mais sans qu'il ait jamais d'existence réelle" (Lévi Strauss, L'Identité, PUF, 1977).

Neste texto, farei uma comparação exploratória entre a problemática identitária na França e no Brasil contemporâneos, a partir do que chamo de suas feridas universalistas particulares. E começo com a França. Meus anos de doutorado naquele país mostraram-me rapidamente que, para um olhar estrangeiro (principalmente se for treinado em ciências sociais), as representações sociais do sistema político da França possuem um caráter sagrado. O Estado-nação e o sistema republicano amagalmam-se como expressão sacralizada da identidade nacional, não só como qualidade essencial que o distingue do resto dos outros, mas também como a grande contribuição francesa para o mundo. Ora, o Estado-nação francês enfrentou tradicionalmente a tensão moderna entre o universal e o particular a partir de um ideal de assimilação universalista, onde a diversidade e as desigualdades entre as pessoas concretas sublimavam-se pelo voluntarismo das instituições republicanas – a escola republicana sendo aí um arquétipo –, nivelando-as como cidadãos iguais em direitos e deveres. Mas La République é sempre obrigada a descer à esfera profana do mundo da vida (Habermas, 1999), onde seu ideal de assimilação universalista sofre cada vez mais com debates e políticas governamentais manifestando as ressignificações contemporâneas da distância entre igualdade universal e diversidade/desigualdades reais. Por um lado, parte da sociedade civil se engaja em lutas por políticas de ação afirmativa para setores da população negativamente integrados à sociedade francesa – notadamente, filhos ou netos de imigrantes de ex-colônias francesas. Por outro lado, ditos “républicains” de diferentes posições ideológicas, fazendo apelo aos princípios ideais de integração cidadã universalista, temem ou opõem-se a essas políticas, alegando o risco de divisões comunitárias (Oliveira, 2009; Oliveira, 2008).

O atual governo francês aparece nessa dinâmica como ator incontornável. Saído de tradicional partido de direita, mas com orientação populista bem contemporânea, com perícia para embaralhar as fronteiras entre esquerda e direita francesas, por um lado concedeu cargos do ministério e de secretarias de Estado a vários franceses filhos/netos de imigrantes, bem como coloca na ordem do dia diferentes temas de ação afirmativa – como o recenseamento populacional usando critérios “étnicos” e religiosos para atuar positivamente sobre populações desfavorecidas e, a discussão sobre a pertinência de mudar de caráter sócio-econômico para “étnico”, antigas políticas públicas. Mas, por outro lado, construiu e sustenta uma das políticas de controle da imigração e dos imigrantes mais violentas da Europa atual, instalando oficialmente como objetivo a expulsão anual de mais de 20.000 estrangeiros e, sob um pano-de-fundo explícito de defesa de uma suposta identidade nacional. Tão explícito que criou um super-ministério da Imigração, da Integração, da Identidade Nacional e do Desenvolvimento Solidário, indicando que o governo francês entende a imigração como problema identitário (M. Agier, Le Monde, 11.11.2009). Legitimado em geral por eleitores da extrema-direita temerosos de que “imigrantes” destruam as tradições supostamente cristãs cidadãs e indo-européias da França, mas não só por eles, esse ministério é abominado por quem aí enxerga uma política de Estado com viés totalitário, através da repressão da diversidade francesa e da imigração, ou seja de populações desfavorecidas e, costurada pela estratégia de conquistar setores simpatizantes ou atraídos por uma extrema direita intolerante e racista. No início de novembro, o novo ministro dessa excrescência do governo francês (antigo político do Partido Socialista) lançou um Grande Debate Sobre a Identidade Nacional, desenrolando-se por enquanto através de um site recebendo contribuições de internautas, prometendo um primeiro balanço em fevereiro de 2010 e, apresentado como meio democrático para o futuro estabelecimento de políticas e normas de reforço da identidade nacional.

Segundo sondagens, esse debate é aprovado majoritariamente pela opinião pública francesa , mas ele é criticado diariamente por cientistas sociais, militantes associativos, etc., como o antropólogo Michel Agier ao escrever no Le Monde (11.11.2009) que a decisão governamental francesa de estabelecer normas identitárias, além de ser inaceitável para o saber dos antropólogos já que as identidades não são definíveis, é duplamente violenta: contra os que ela quer impor o controle de normas identitárias arbitrárias, reprimindo por exemplo experiências e memórias da parte africana, maghrebina e antilhesa da França; contra os que ela vai necessariamente excluir, já que toda norma tem por função essencial definir os a-normais e remetê-los à fronteira – neste caso, criando “o estrangeiro” nos espíritos franceses para legitimar mais políticas xenófobas de expulsão de imigrantes. Há denúncias de que o site do ministério opera um controle cerrado sobre as contribuições recebidas, excluindo também aquelas que são negativas sobre o governo e sua política de imigração ou de identidade. Além disso, o presidente Sarkozy, em discurso comemorativo sobre a resistência francesa durante a segunda guerra mundial, não perdeu a ocasião para defender essa iniciativa governamental, cujo conteúdo não deixa dúvidas de que o objetivo é o de um controle repressivo da identidade nacional, ao falar que é inadimissível que pessoas usem as políticas públicas francesas (seguridade social, escola pública) sem fazerem nada pelo país, sem fazerem tudo para encontrar emprego ou sem respeitarem professores e estabelecimentos escolares. Nem deixa dúvidas também de que o governo francês sustenta oficialmente uma rede discursiva em que as populações muçulmanas da França são apresentadas como perigosas ou incompatíveis com a identidade nacional: integra numa mesma fala a incompatibilidade entre a república francesa, a burka e a sujeição das mulheres – apesar do caráter insignificante do uso da burka no território francês e como se a sujeição feminina fosse marca exclusiva da identidade muçulmana. Ou seja, controlar policial e juridicamente, além de imputar um sentido étnico-religioso, senão racial, à identidade nacional, como denuncia o antropólogo Michel Agier, aparecem como sentido fundamental da política estatal identitária francesa.

Muitos intelectuais articulam essa problemática identitária assustadora ao longo processo de descolonização do mundo francofônico, a partir do qual a diversidade da população francesa significa também que sua história de dominação colonial entrou em seu território: os “selvagens” tornaram-se franceses a partir de meados do século passado. Sinteticamente, podemos dizer que a França contemporânea vive o dilema de um ideal republicano universalista, numa sociedade resistente à integração de franceses com ascendência nas ex-colônias (R. Castel, 2007). O sociólogo R. Castel (2007) insiste ainda sobre o caráter estigmatizante pelo qual se define comumente na França jovens residentes das periferias francesas – aqueles que viraram notícia mundial em 2005, durante as semanas em que grandes cidades francesas viveram suas expressões violentas de revolta: imigrantes de terceira geração, mostrando que a emigração de seus avós está colada simbolicamente às suas peles, ad infinitum.

E o que o Brasil tem a ver com isso? Ora, a consolidação da república brasileira foi atravessada por um princípio de redenção do passado escravista colonial e monárquico, o do mestiço claro como identidade nacional que, articulado a uma miscigenação histórica concreta, consolidou um ideal de “democracia racial”. Genealogicamente, esse ideal possui dois componentes complementares: um racismo tácito fenotípico-cromático e um elitismo (desprezo) de classe, com uma identificação sociológica de pobres-mulatos-negros, classificando-os como brasileiros plenos, mas inferiores. Costumo dizer que esse ideal de democracia multicolorida brasileira pode ser bem compreendido como ideal de totalidade hierárquica do branco até o preto – no sentido de Louis Dumont (1983) –, significando que superiores, intermediários e inferiores compõem uma totalidade interdependente, aquela da identidade nacional (Oliveira, 2009; Oliveira, 2008). Sobre isso, podemos sempre lembrar de uma comparação que Caetano Veloso gosta de fazer entre ele e Gilberto Gil : «eu sou um mulato suficientemente claro para ser considerado branco em todo o Brasil ; Gil é um mulato suficientemente escuro pra ser considerado negro em todo o Brasil ». Embora ache que Caetano Veloso seja um aficionado de declarações complicadas (pra não dizer absurdas), admito que sua comparação exprime critérios cromáticos de classificação extremamente familiares em nosso contexto. Existem brasileiros que discordam da distinção por ele feita que parece negar uma lógica de classificação “racial”, mas é difícil encontrar um brasileiro incapaz de compreender imediatamente porque alguém classifica um indivíduo ao mesmo tempo como mulato e branco ou como mulato e negro (Oliveira 2009; Oliveira, 2008)

Na verdade o ideal de “democracia racial” à brasileira sempre foi debatido. Já a partir dos anos 50, seus críticos sublinhavam a realidade das desigualdades « raciais » no Brasil diante dessa igualdade fantasiosa sob abordagens culturalistas; entre esses críticos, realçamos o norte-americano Marvin Harris (1964) e o brasileiro Florestan Fernandes (1978). Mas em termos concretos, apenas a partir dos anos 80 assiste-se a um processo de desconstrução desse ideal de “democracia racial ». Com efeito, é nessa época que parte do movimento negro se reconfigura num sentido identitário, reivindicando as raízes africanas do Brasil e dos brasileiros. Sendo assim, não se trata mais somente de denunciar a « democracia racial » como mito dissimulador de relações de dominação, mas de abordar as desigualdades sociais partindo-se das discriminações “raciais”. Constrói-se então todo um processo social de identificação entre racismo, desigualdades sociais e demanda por identidade « étnico-racial », consolidando-se institucionalmente pela criação da SEPPIR em 2003 sob o governo Lula, órgão diretamente ligado à Presidência da República e encarregado das políticas públicas de igualdade “racial” (Oliveira, 2009; Oliveira, 2008).

Pensemos por exemplo no constante debate sobre o projeto de lei para instituir o Estatuto da Igualdade Racial, alguns reivindicando-o como política de criação de uma verdadeira democaracia “racial”, outros apresentando-o como projeto de racialização jurídica, dicotômica e potencialmente conflituosa da sociedade brasileira. Em seguida pensemos no debate em torno da regulamentação legislativa da política de cotas raciais nas universidades. Finalmente, têm-se a dinâmica da regulamentação crescente da propriedade de terras para quilombolas. Polarizando o debate, pode-se distinguir dois partidos: o dos universalistas que, criticando uma identificação entre luta social por direitos e reivindicação identitária “étnico-racial”, condenam uma suposta escolha do modelo anglo-saxão de integração social – liberal-individualista e racializado (Fry, 2005 ; Souza, 1996); o dos multiculturalistas que, criticando o “mito da democracia racial brasileira”, denunciam a suposta resistência de seus adversários contra políticas públicas concretamente democráticas e respeitosas da diversidade sócio-cultural e “étnica” do país (Adesky, 2004). Essas discussões não parecem apaixonar realmente nossa opinião pública. Mas o debate mobiliza atores sociais importantes – movimentos sociais organizados, universitários, intelectuais, artistas – compondo grupos de pressão sobre a esfera política e em interação com mídias tradicionais ou novas, todos atravessados pelas condições de publicidade e de mercado de que fala Lívio Sansone (2004) sobre a « etnicização” nas sociedades globalizadas (Oliveira, 2009; Oliveira, 2008).

Considero que essa dinâmica pode ser pensada como um problema potencial no sentido construtivista de Berger e Luckmann (1996), já que a possível passagem do Brasil a um sistema de classificação “étnico-racial” dicotômica não é facilmente adequada à sobrevivência de seu ideal de miscigenação. Neste sentido, eu já afirmei que no projeto de lei para o Estatuto da Igualdade Racial, assim como em vários discursos de militantes/simpatizantes próximos das reivindicações identitárias, em instituições como o DIEESE e mesmo em manchetes e matérias de mídias não necessariamente engajadas nessas reivindicações, percebe-se facilmente uma tendência a classificar pretos e pardos numa mesma categoria (a dos afro-descedentes), racializando a sociedade em dois grupos fundamentais, os brancos e os negros, às vezes acompanhada explicitamente de uma compreensão da miscigenação da população brasileira como mero mito de dominação ( Oliveira, 2009; Oliveira 2008).

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Nossa Incivilidade


Fernando da Mota Lima

Sérgio Buarque de Holanda criou um conceito de larga circulação nas ciências sociais brasileiras. Como tudo que se rotiniza, o conceito logo foi incompreendido ou lido de modo divergente daquele proposto por seu autor. O conceito em questão é o da cordialidade. Meu propósito explícito é usá-lo, para os fins deste artigo, como correspondente de incivilidade. Ser incivil é, em suma, desprezar as normas básicas de convívio social; é não submeter nossas disposições livremente egoístas aos limites supostos na relação com o outro em todas as esferas sociais: na casa, na rua, no trânsito, na escola, no shopping... Assim, Sérgio Buarque afirma que somos cordiais. Nos meus termos: somos incivilizados.

O que isso tem a ver com a violência corrente na nossa sociedade? Acredito que tudo. Acredito que essa cultura da incivilidade está na raiz da violência social brasileira. O sociólogo Fernando Henrique Cardoso, ou FHC, observou que nossas instituições socializadoras (a família, a escola, a religião) não funcionam, isto é, são incapazes de regular nosso comportamento. É nelas e a partir delas que toda sociedade civilizada se organiza. É nelas que aprendemos a respeitar os direitos do outro, os limites sociais impostos como condição de respeito mútuo e constrangimento coletivo. Desatados de tais limites, nossa tendência espontânea é fazer o que queremos indiferentes aos danos e abusos que impomos ao outro. É mais ou menos nesse sentido que Freud alude à civilização como repressão.

É sintomático o fato de tanto resistirmos a essa forma de repressão socialmente necessária. No Brasil, qualquer norma é sempre encarada como valor puramente negativo, como expressão de abuso contra a liberdade individual. Avessos à normatização das nossas relações sociais, tendemos a encarar a norma como imposição abusiva. Não nos passa pela cabeça o reconhecimento de que as leis do trânsito, por exemplo, visam primariamente garantir a segurança e a vida dos que circulam nas ruas. Daí a inoperância do novo código imposto, segundo as autoridades, com o fim de atualizar o anterior, já defasado. Ora, o problema com o outro código, assim como com o atual, não residia nisso, mas no fato de não ser devidamente aplicado. Veio o novo código, seguido de muita polêmica e conflito nas ruas, iludindo alguns otimistas com a perspectiva de civilizarmos nosso trânsito, mas logo tudo se acomodou e logo regredimos à bagunça rotineira. Aliás, se minha percepção não me trai, mudamos para pior. Aqui em Recife, por exemplo, bem poucos respeitam normas elementares de circulação nas ruas. A polícia não policia, o motorista e o pedestre não são e nem querem ser policiados e assim, a sociedade, afeita ao desregramento, segue indiferente a este e a todos os demais códigos.

Sempre que ocorre algum crime pavoroso, desses que fazem o lucro e a festa da mídia sedenta de sangue e sensacionalismo, voltamos à confusa discussão do nosso estado de alarmante violência social. A maioria acuada, temendo a insegurança geral em que vivemos, confunde violência social com violência policial. Encara apenas como violência, noutras palavras, a que a mídia e a delegacia documentam como tal. Vemo-nos como vítimas de um estado social violento inconscientes de que todos os dias, nas nossas ações mais banais e correntes fermentamos a desordem, as práticas de desrespeito que em muitos casos resultam em crime policialmente caracterizado. Não somos sequer capazes de respeitar os direitos do vizinho e todavia procedemos apenas como vítimas da violência social. Respeito? É aquilo que você dá para poder receber. Quantos brasileiros têm honestamente crédito a cobrar quando a moeda é respeito?

domingo, 15 de novembro de 2009

Novas tecnologias reprodutivas: a negociação política dos limites entre cultura e natureza


Jonatas Ferreira
“Tudo é sagrado! Tudo é sagrado! Tudo é sagrado! Não há nada de natural na natureza, meu menino. Tenha isso sempre em mente. Quando a natureza te parecer natural, tudo terá terminado”. (Fala do Centauro em Medéia; Pasolini; 1969)

Gostaria de começar minha participação nessa mesa agradecendo à professora Cynthia Hamlin por ter me convidado a participar deste evento e aproveito para parabenizar a iniciativa do Grupo de Epistemologia e Teoria Feminista do PPGS da UFPE, das Católicas pelo Direito de Decidir e do SOS Corpo de promover uma discussão sobre sujeição das mulheres e sobre a necessidade de desnaturalizar a violência nessa semana em que todos comentam o caso da aluna paulista agredida por usar um minivestido. Ontem soube, através de um aluno, que a direção da Faculdade UNIBAN, de São Bernardo do Campo, havia decidido expulsar a aluna. Nossa indignação diante do fato tem de ser registrada e essa violência, creio, seja adequada para falar da necessidade e urgência da reflexão proposta por esses três grupos.


Tratarei nessa comunicação, entretanto, de uma violência que se coloca num nível teoricamente mais abstrato, e nem por isso menos violento. Trata-se das negociações políticas dos limites entre cultura e natureza ensejadas pelas novas tecnologias reprodutivas. Se tais negociações se traduzem em violências bastante concretas, a discussão teórica que em grande medida será o fio condutor desta contribuição pode dar a impressão de algo menos contundente. Começaria, pois, lembrando a vocês que, no final da década de 1980, as novas tecnologias reprodutivas, a biologia molecular, a engenharia genética, foram saudadas por algumas feministas por seu potencial emancipador. De fato, toda nova tecnologia, qualquer que seja ela, age de modo a interferir na relação entre cultura - entre nossas práticas morais, civilizadoras – e o substrato sobre o qual essa intervenção ocorre – ou seja, aquilo que percebemos como sendo o mundo natural. Desse modo, aprendemos nos livros sobre história da ciência e tecnologia, a modernização tecnológica significou uma postura menos passiva, menos contemplativa e a adoção de uma atitude potencializadora, ativa com relação ao mundo natural. Não se tratava mais de esperar pelos frutos da Fortuna, de colher o que a natureza proporciona, mas de extraí-los e multiplicá-los, mesmo que isso significasse torturar a natureza, como afirmou Bacon no Novum Organum. Potencializar a produtividade da natureza significou aqui inaugurar uma nova concepção de cultura, ou seja, uma nova concepção de tempo, uma nova concepção de espaço e do exercício político. De um tempo circular e práticas sociais territorializadas passamos a um mundo onde a desterritorialização é a regra e onde o tempo é concebido como uma linha reta, ou seja, um tempo não que não recorre sobre si, o tempo dos progressos técnicos infinitos.


Assim, feministas como Sadie Plant e Donna Haraway saudaram as novas biotecnologias pelo seu potencial de desestabilizar lugares de gênero historicamente constituídos e profundamente essencializados no mundo ocidental. Sadie Plant dava boas-vindas à lógica cibernética, àquilo que ela teria de intimamente próximo a práticas técnicas do universo feminino e afirmava não ser fortuito o fato de Ada Lovelace ter sido precursora da moderna tecnologia de informação e comunicação, ou seja, da lógica computacional. Entre a matriz matemática que suporta o mundo computacional e a matriz que organiza o tecer dos fios dos antigos teares, Plant sutentava, existe uma afinidade fundamental. Donna Haraway, por seu turno, utilizando-se da conhecida imagem do organismo cibernético, isto é, do ciborgue, dizia que a imbricação entre organismo e máquina, promovido pela cibernética poderia significar a criação de um mundo pós-gênero. Velhas oposições metafísicas, como aquelas que separam o ser humano do animal, o masculino do feminino, o vivo do mecânico, perdiam sentido diante dessa nova ontologia, diante de nossa condição protética no mundo. Tomo um trecho do famoso Manifesto Ciborgue ao acaso:

A política ciborgue é a luta pela linguagem e a luta contra a comunicação perfeita, contra o código que traduz todo sentido de modo perfeito, dogma central do falogocentrismo. É por isso que a política ciborgue insiste no ruído e advoga a poluição, regozijando-se nas fusões ilegítimas entre o animal e a máquina. Essas fusões são acasalamentos que fazem o Homem e a Mulher tão problemático, subvertendo a estrutura do desejo, a força imaginada para gerar linguagem e gênero, e assim subvertendo a estrutura e modos de reprodução da identidade “Ocidental”, da natureza e da cultura, do espelho e do olho, escravo e mestre, corpo e mente” (p. 176)


Não são poucas as promessas do manifesto futurista, feminista e marxista de Haraway. E creio que não lhe devemos imputar seriedade às promessas desse manifesto contra a qual o caráter irônico do texto já nos alertava. Em outras palavras, se as mulheres continuam oprimidas em seus envolvimentos com a cultura tecnológica que vivemos, não podemos esquecer que o diagnóstico de Haraway é preciso ao identificar um novo campo político, um campo em que as posições de gênero são em princípios postas em questão. Mas a inovação tecnológica é algo bastante mais complexo do que pode parecer para aqueles demasiado entusiasmados com novos aparatos. Assim, se é comum dizer que a pílula anticoncepcional representou uma oportunidade importantíssima para que as mulheres pudessem, a partir de uma separação técnica entre prazer e reprodução, reivindicar o direito aos seus próprios corpos, o direito a se realizarem profissionalmente, eroticamente, antes que a concepção de uma criança pudesse ser cogitada, a verdade é que a pílula não é um deus ex-machina que age sobre a vida das mulheres, outorgando-lhes direitos, mas uma oportunidade apropriada politicamente na história da luta feminista. Não devemos esquecer que as lutas pela emancipação das mulheres é bem anterior à década de 1960, quando a pílula se populariza nos EUA.


Toda inovação tecnológica é um forte vetor político entre outros fortes vetores políticos. Poderíamos comparar o uso da Internet no Brasil, Inglaterra e China e confirmaríamos essa proposição. Diferentes níveis de autoritarismo político, de desigualdade social etc. fazem com que a apropriação cultural desse aparato técnico ocorra de modo bastante distinto nessas realidades. Do mesmo modo, apesar de hoje a indústria farmacêutica estar investindo pesadamente na elaboração de um gel nanoestruturado de função espermicida que aposentaria as camisinhas – eles comparam o dispositivo a um “velcro molecular” - imagem que sempre me proporciona uma aflição pélvica - , as trabalhadoras do sexo na Nigéria utilizam visco como forma de se prevenir contra a AIDs, por não disporem de políticas públicas que lhes distribuam preservativos gratuitamente. E é precisamente em países pobres, como vários na África, Ásia e América Latina, onde essas novas tecnologias são testadas. Permintam uma citação longa de um relatório produzido pela ETC em 2006:

VivaGel is being developed as a topical microbicide that has the potential to prevent the transmission of HIV and other sexually transmitted diseases (STDs) when applied to the vagina prior to sexual intercourse. In animal studies, the main ingredient in VivaGel has also acted as an effective contraceptive. If Vivagel can protect against STDs and pregnancy, market analysts see it competing with the condom market. Vivagel is the first dendrimer to go through the FDA process and is now being tested around the world in various populations.

In 2005 the US National Institutes of Health (NIH) awarded Starpharma (based in Melbourne, Australia) US$20.3 million to support the development of VivaGel for the prevention of HIV. In April 2006 the US NIH announced it would fund a clinical trial to test the use of VivaGel in the prevention of genital herpes. Ultimately, will vaginal microbicides be safe, affordable and accessible to those who need them most? (Sex workers in Nigeria are now applying lime juice to their vaginas in an attempt to protect themselves from contracting HIV – will they have access to high tech protection in the near future? Some women’s health advocates point out that a simple, low-cost technology already exists (condoms) that is easier to distribute and store – but condoms remain in short supply. For example, in 2003, donor contributions paid for the equivalent of one condom a year for each man of reproductive age living in the developing world”.


Toda nova tecnologia desestabiliza as relações entre cultura e natureza, mas os ganhos políticos que parcelas oprimidas da população podem auferir dessa mudança dependem de dinâmicas muito menos inovadoras. Podemos falar, assim, da existência de inovações técnicas conservadoras. Embora a ginecologia moderna tenha representado historicamente uma diminuição na taxa de mortalidade infantil, a sua prática também significou um processo de controle biológico e moral do corpo feminino. Tradicionalmente um trabalho de mulheres, o parto a partir do século XVII, paulatinamente, foi se tornando um trabalho masculino que visava a disciplinar a natureza imprevisível, temperamental, intempestiva do corpo feminino. Cito a esse respeito um importante trabalho de Fabíola Rohden (p. 52): “Ornella Moscucci [...], que estudou o surgimento da ginecologia na Inglaterra, sustenta que a constituição deste ramo da medicina está atrelada à crença de que o sexo e a reprodução são mais fundamentais para a natureza da mulher do que para a do homem” Todos sabemos que a naturalização da mulher como veículo reprodutor, de Aristóteles aos manuais de obstetrícia do século XIX e XX, foi um discurso extremamente difundido na cultura ocidental. Mesmo hoje, parcelas consideráveis do movimento psicanalítico ainda crê que a realização feminina está intimamente associada à concepção, como afirmou Freud no começo do século vinte.


O pensamento ocidental, no entanto, já há algum tempo, problematiza a oposição natureza-cultura como fundamento irrefletido da metafísica. Uma linha importante de pensadores que iriam de Heidegger, Canguilhem, Foucault, Agamben a Derrida tomaram para si esse problema essencial. A partir desses autores, poderíamos perguntar algo bastante simples: sempre que falamos natureza já não estamos falando em nome da cultura? E aqui permitam-me esboçar aquilo que se coloca como grande dificuldade epistemológica e ontológica associado à dicotomia sobre a qual estamos falando: precisamente, onde aquele que teoriza acerca da articulação de uma oposiçaõ entre cultura e natureza deveria estar postado para percebê-la de modo objetivo, legítimo? Certamente não poderia ser um lugar natural, em cujo caso suas conclusões se estruturariam de modo intoleravelmente restrito – os modernos diriam: a partir de uma necessidade que contraria toda a liberdade do teorizar. Mas também não poderia ser esse um lugar de cultura, caso em que, o próprio funcionamento da cultura só nos daria a ver aquela articulação segundo as premissas constituitivas de seu espaço. Estar num lugar de cultura, nesse caso, significaria despotencializar a idéia de natureza e estar no lugar de natureza acarretaria a impossibilidade da cultura. O teórico precisaria estar num lugar fora da cultura, da história e fora da natureza. Mas que lugar transcendente é esse, que lugar divino é esse? Assim, para Heidegger, para Derrida, a idéia de natureza é a noção obscura e fundamental sobre o qual a metafísica estrutura sua lógica e poder. Esse é o terreno político onde outras perguntas como “o que é cultura?” “qual a essência do ser humano?” são negociadas.


Por tudo isso, acreditamos serem questões de maior importância aquelas trazidas à tona por Donna Haraway, no que pese nossa discordância com respeito às conclusões a que ela chegou. Entendemos que a idéia de um embate político sobre o que é natural é mais interessante que a idéia do fim da natureza. E, por isso, perguntaríamos muito simplesmente: como o espaço de natureza tem sido desestabilizado e reestabilizado pelas práticas relacionadas às novas tecnologias reprodutivas? Falemos primeiro um pouco dessa desestabilização.


Falemos um pouco do que vem sendo desestabilizado. Em 1998, Charis Cussins publicou um artigo bastante interessante sobre alguns casos de fertilização in vitro (in Davis-Floyd e Dumit, 1998). A técnica em si produz uma separação técnica de algo que historicamente era visto como um só e mesmo processo. De fato, o que essa nova técnica de nos mostra é que fertilização e gestação não são parte de um percurso único e inseparável, ou seja, essa nova técnica abre a possibilidade de separarmos, diferenciarmos a mãe genética e a mãe gestacional. Essa distinção simples, como sabemos, é portadora de uma série de controvérsias culturais. Cussins analisa algumas delas. Citarei apenas dois casos. O primeiro deles diz respeito a um casal, cuja mulher produz óvulos férteis, mas não é capaz de gestá-los. A solução encontrada pelos médicos e pelo casal foi solicitar a ajuda da irmã do homem em questão, que aceitou ser mãe gestacional do embrião produzido pelo casal. O segundo caso, é de uma senhora em período de menopausa cujo marido mais jovem deseja ter um filho. A senhora decide pedir ajuda à sua filha e gesta o óvulo de sua filha fecundada pela intervenção médica a partir dos espermatozóides de seu marido. Nos dois casos, violências simbólicas importantes associadas ao fantasma do incesto, da idade adequada para a maternidade, à naturalidade do corpo nos são colocadas. E o que é natural aqui é o que é socialmente aceito como tal e é esse o espaço de negociação cultural que a intervenção tecnológica impõe. Ora, Lévi-Strauss já nos alertavam ser o tabu do incesto aquilo que separaria cultura e natureza, que permitiria a circulação de mulheres e, em última instância, possibilitaria a própria civilização. Porém, mais especificamente, o que aqui percebemos é que a cultura necessita de alguns tabus sobre os quais a própria idéia do natural é construída.


Outro tipo de exemplo igualmente controvertido. Quem é a mãe nos casos em que a geração de uma criança envolve o que pejorativamente convencionou-se chamar de “barriga de aluguel”, a mãe genética ou a mãe gestacional? No artigo “Maternidade desnaturada: uma análise da barriga de aluguel e da doação de óvulos”, Naara Luna observa algo culturalmente controverso nesses processos. A posição natural da mulher sempre foi associada à recepção, à nutrição e ao cuidado do óvulo. Entre a mulher e a casa existe mais esse vínculo cultural, qual seja, o de ela participar do processo de reprodução com quem dá residência a, como quem guarda, abriga e nutre. “as práticas como a gestação substituta [barriga de aluguel], ao identificar a mãe com a fornecedora de óvulos, aproximam a representação de maternidade da de paternidade, isto é, contribuição de gametas sem gestação. Assim com a paternidade depende do reconhecimento de uma relação social para ser estabelecida – pai é o marido da mulher qeu pariu – no contexto das novas práticas propiciadas pela reprodução assistida, a maternidade também dependeria do reconhecimento da relação entre a mãe social, idealizadora da gestação e a mãe substituta que gestou em favor da primeira” (p.241).


O processo político de negociação dessas situações, como chama a atenção Cussins, passa por um jogo de produção de transparências e opacidades, em que alguns elementos cultural ou politicamente sensíveis são negligenciados (ou tornado invisíveis) para que a ação técnica seja culturalmente aceita, ou seja, aceita dentro dos parâmetros de naturalidade. Assim, nos dois casos de gestação envolvendo parentes a participação do parente de sangue é simbolizado de modo a não permitir a associação da gestação com o incesto. No segundo caso, privilegia-se o laço biológico entre a mãe biológica e o feto de modo a afastar a “mulher idealizadora da reprodução” do papel cultural e historicamente associado ao masculino – cujo desempenho é percebido como anti-natural.


Podemos, sem dúvida, multiplicar o úmero de exemplos em que a politização da natureza tem acompanhado processos de inovação tecnológica. Citemos apenas mais dois. O primeiro deles, refere-se ao status ontológico dos embriões nos bancos de fertilização. O que fazer com os embriões congelados nas clínicas de fertilização e que já não serão utilizados por por seus “pais” biológicos? Devem ser doados para casais não-férteis, postos a disposição dos cientistas que investem em pesquisas com células-tronco embrionárias ou simplesmente descartados? Descartá-los significaria “extermínio em massa”, advogam alguns, como a Igreja Católica, por exemplo. Utilizá-los para pesquisa com células-tronco seria igualmente tratar um ser humano em potência como se fosse uma coisa – em 2006, em parceria com Aécio Amaral, produzi um ensaio sobre a a discussão do status ontológico dos embriões no contexto da votação da Lei de Biossegurança brasileira. A doação desses embriões para casais inférteis sem expressa autorização de seus “pais” biológicos significaria, argumenta-se, a violação de seu direito sobre o destino de seus “filhos” biológicos. O segundo caso, diz respeito à proeza realizada por cientistas israelenses, em 200x, de transformar células somáticas do corpo de uma cobaia em células embrionárias, o que signifa dizer: a possibilidade técnica de concepção não sexuada em seres sexuados. Como passaríamos a encarar uma série de naturalizações do papel masculino no que toca à concepção caso essa possibilidade venha a ser encarada como uma opção legítima de reprodução?


Como era de se esperar, possibilidades como essas, ou como a manipulação genética de embriões humanos tem escandalizado alguns teóricos. Entre eles, estão Jürgen Habermas e Francis Fukuyama para quem a idéia de melhoramente genético, de “desnaturalização” do ser humano significaria também sua desumanização. Contra esse perigo, Habermas defende uma ética da espécie. Não teríamos o direito de definir traços biológicos de um ser humano que vão definir os espaços de cultura que ele ou ela irá ocupar. Abandonando a idéia de uma ética comunicativa, isto é, de uma ética fundada na capacidade dos indivíduos se auto-determinarem, Habermas (2004, p. 126) fala agora em definir critérios que venham a limitar intervenções biológicas de modo a impedir uma violência ainda maior que o abandono desses princípios do liberanismo, isto é, a comodificação ou “customização” da vida dos seres humanos por vir. Um mesmo vento enfuna o discurso de Fukuyama.


Há uns dois anos uma amiga socióloga me inquiria acerca das falácias do pós-estruturalismo e de sua ênfase no discurso, sua estratégia negativa, desnaturalizadora e desessencializadora. Queixava-se de que não podemos abandonar todas as âncoras e violências teóricas e afirmava que se de algum modo não garantíssemos um limite para a discursividade, caso não concedêssemos que algo como uma natureza concreta, objetiva precisaria existir, a própria crítica linguística pós-estruturalista implodiria. Lembrou-me aquele personagem de Dostoievski e ela de fato quase o parafraseou ao afirmar: “se a natureza não existe então tudo é permitido”. Acho que essa é uma observação adequada para concluir nossa comunicação. De fato, a própria idéia de uma cultura, ou de uma crítica cultural, não pode deixar de pressupor de algum modo uma esfera de natureza, não pode furtar-se de assumir a violência política de tomar partido. A metafísica é ainda o nosso destino cultural e quando julgamos estar fora dela, na verdade, situamo-nos inteiramente em seu domínio, desatentos às violências que nós próprios produzimos. Creio que um discurso crítico aqui signifique não pretender superar a dicotomia natureza-cultura, mas estarmos sempre atentos para os compromissos políticos que são assumidos sempre que tal polarização é posta em movimento.


Referências

DAVIS-FLOYD, Robbie; Joseph DUMIT. 1998. Cyborg Babies. From Techno-Sex to Techno-Tots. Nova York e Londres, Routledge.

ECT. 2006. Nanotech Rx. Medical applications of nano-escale technologies: what impact on marginalized communities? Disponível em www.etcgroup.com.

FUKUYAMA, Francis. 2003. Nosso Futuro Pós-humano. São Paulo, Rocco.

HABERMAS, Jürgen. 2004. O Futuro da Natureza Humana. São Paulo, Martins Fontes.

HARAWAY, Donna. 1998. Simians, Cyborgs, and Women: The Reinvention of Nature. Nova York e Londres, Routledge.

LUNA, Naara. 2002 “Maternidade desnaturada: uma análise da barriga de aluguel e da doação de óvulos”. Cadernos Pagu: n.19: pp. 233-278.

ROHDEN, Fabíola. 20001. Uma Ciência da Diferença. Rio de Janeiro, Fiocruz.


segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Geisy Arruda e a Servidão Voluntária



Por Fernando da Mota Lima - Professor de Sociologia do Departamento de Ciências Sociais da UFPE

Virginia Woolf escreveu que o caráter humano mudou em dezembro de 1910, ou perto disso. Para D. H. Lawrence o fato ocorreu em 1915. Passando dos romancistas para um historiador, já que afinal periodizar é parte substancial do ofício deste, lembraria que para Eric Hobsbawm a data decisiva é 1914, quando a eclosão da Primeira Grande Guerra fechou o longo século xix para inaugurar o curto século xx. Como periodizar é matéria de permanente controvérsia, fico mais à vontade para enfiar minha colher de pau nessa salada. Afirmo, portanto, que o caráter humano mudou novamente. Querem uma data precisa? Escolho 1984, que com certeza importa enquanto símbolo supremo do pensamento distópico. Além disso, seu símbolo totalitário, o Big Brother, tornou-se paradigma moral do nosso tempo. Veremos abaixo o que isso tem a ver com a mudança do caráter humano.

O intróito acima valerá como moldura para mais um momentoso evento tratado a clarinadas por boa parte da mídia sensacionalista: a turba da Uniban que agrediu com ferocidade inusitada a estudante Geisy Arruda. Não perderei tempo detalhando o episódio, já que se tornou matéria de domínio e controvérsia pública. Sempre mal-informado, tomei conhecimento do caso ao ler artigo de Contardo Calligaris publicado na Folha de S. Paulo de 5 de novembro. O relato do fato chocou-me tanto quanto parece haver chocado o próprio articulista. No primeiro momento endossei na íntegra o ponto de vista de Calligaris, que ressalta, como psicanalista, a ameaça que o desejo feminino representa para nossa tradição machista enganosamente enterrada por algumas décadas de autêntica revolução dos nossos costumes, sobretudo os atinentes à sexualidade. Até aí parecia-me fácil determinar a linha entre o certo e o errado. Variando os termos com a ênfase definidora da linguagem clichê, entre o algoz e a vítima, o bandido e a mocinha.

Sucede que li ontem, novamente chocado, a decisão tomada pela Uniban depois de apurar o caso: Geisy Arruda foi sumariamente expulsa. Mais uma vez a culpada é a vítima. Tudo indica que, para as autoridades acadêmicas, a turba da Uniban foi vítima das provocações diabólicas da estudante insultada. Foi aí que decidi informar-me melhor acerca do processo. Depois de ver dois vídeos dentre os muitos agora disponíveis na internet, afundei num estado de perplexidade moral. Foi então que mais uma vez, diante da nossa barbárie rotinizada, convenci-me de que o caráter humano mudou. Vi afinal Geisy Arruda no centro de um programa de auditório da Record. O apresentador, Geraldo Brasil, simulava um tom de denúncia moral típico das coberturas sensacionalistas correntes na mídia brasileira. Já vi esse filme, pensei comigo, mas interessava-me observar o comportamento de Geisy. Vi-a desfilando diante da platéia com o vestido que supostamente provocou o tumulto na Uniban. A câmera voraz devassou-lhe o corpo lambendo-o com closes semelhantes aos olhos da turba que a agrediu. E ela a tudo assistia, de tudo participava com a insanidade dos inocentes, para lembrar a frase indelével de Graham Greene.

Em seguida, entrevistada por Geraldo Brasil, Geisy Arruda relatou com docilidade e pura inconsciência moral os assobios e galanteios, também o assédio moral que correntemente recebia na escola. Relatou ainda sua complacência narcisista diante dos rapazes que a cortejavam. Mais que isso, deixou evidente sua docilidade diante de muitos dos galanteadores. Se não me engano, ela agora se deleita com os quinze minutos de fama, para valer-me da metáfora célebre de Andy Warhol, que a resgatam da miséria suprema imposta pela sociedade do espetáculo: a miséria do anonimato. Noutros termos, a vítima é vítima, mas não inocente.

De repente, senti que já não podia encarar e medir Geisy Arruda como uma simples vítima da barbárie, mas sim como uma evidência unitária e empírica dessa massa anônima escolada pelo Big Brother e outros termômetros da mudança radical que se processou no nosso caráter humano. Na distopia de George Orwell, o Big Brother encarna o poder totalitário ao qual se opõe nossa última reserva de liberdade individual: a defesa da nossa privacidade, antes de tudo do amor, da intimidade erótica antagônica à devassa imposta pelo poder. Hoje a mídia e todos os poderes que anulam nossa privacidade já não precisam de teletelas, já não precisam arrombar portas, pois a privacidade nos oprime como um castigo, não como expressão última da nossa liberdade. Negociamos tudo, contanto que nos reconheçam. Em suma, tornamo-nos não apenas mercadorias livre e consentidamente cambiáveis, mas sobretudo mercadorias baratas.

A docilidade inconsciente de Geisy Arruda parece-me tão chocante quanto o espetáculo da barbárie manifesto na turba da Uniban. Ela simboliza um gesto de rendição da vítima à barbárie. O que resta em nós de civilizado quando renunciamos à civilização? O Big Brother já não precisa policiar nossa consciência, pois esta se tornou o espelho da barbárie que sempre nos ameaçou. Big Brother c´est moi.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Adeus a Lévi-Strauss


Auto-retrato de Lévi-Strauss (1938), às margens do Rio Madeira, com Lucinda agarrada a seus pés.

Faleceu hoje, em Paris, aos 101 anos, Claude Lévi-Strauss. Belga de nascimento, Lévi-Strauss foi um dos principais intelectuais do século XX e um dos fundadores do estruturalismo. Seus trabalhos em etnologia e o método estrutural desenvolvido por ele tiveram uma influência marcante nas ciências sociais e nas humanidades, como um todo.

Jonatas, que acaba de oferecer um curso sobre Estruturalismo e Pós-Estruturalismo, prometeu um obituário à altura do grande mestre aqui no Cazzo. Aguardamos ansiosos. Enquanto isso, divulgamos o dossiê sobre o autor disponibilizado pela revista francesa Sciences Humaines.com (aqui)

Cynthia