terça-feira, 22 de dezembro de 2009

domingo, 20 de dezembro de 2009

Começando por Vidas Marginalizadas: uma conversa com Sandra Harding



Por Elizabeth Hirsh e Gary A. Olson

Originalmente publicado em JAC Vol. 15 No. 2, 1995. Disponível em: http://www.jacweb.org/Archived_volumes/Text_articles/V15_I2_Hirsh_Olson_Harding.htm
Gentilmente cedido ao Cazzo por Lynn Worsham, editora do JAC
Tradução de Cynthia Hamlin, num arroubo de generosidade.

Para a filósofa da ciência Sandra Harding, as tradições dominantes da ciência ocidental sofrem de pouca de objetividade. Como uma das maiores expoentes do que tem sido chamado “teoria da perspectiva feminista” (feminist standpoint theory), Harding argumenta que a objetividade é maximizada, não ao se excluir fatores sociais da produção de conhecimento – como o método científico ocidental tem se proposto a fazer – mas, precisamente, ao se “iniciar” o processo de pesquisa de uma localização explicitamente social: a experiência vivida daquelas pessoas que foram tradicionalmente excluídas da produção de conhecimento (por exemplo, mulheres). Essa inovação metodológica volta os padrões tradicionais de ciência e de filosofia contra si mesmos por meio daquilo que Harding descreve como uma estratégia “desconstrutiva”. Ao tomar como ponto de partida – e não como um “fundamento” no sentido tradicional – a experiência de “pessoas de cor e gays, e lésbicas, e pessoas das classes trabalhadoras, e pessoas de várias etnicidades”, a epistemologia da perspectiva feminista busca produzir uma objetividade mais forte, um corpo de conhecimento mais amplamente útil e uma saída para o impasse entre o fundacionalismo, por um lado, e o relativismo, ou o experiencialismo ingênuo, por outro.

Como corolário, a teoria da perspectiva feminista implica uma obrigação epistemológica e ética por parte dos grupos dominantes de teorizar, de forma tão rigorosa quanto possível, sobre suas posições enquanto sujeitos de conhecimento socialmente situados. Transformada desta maneira em um processo que Harding chama de “reflexividade forte”, a posição dominante pode, ela própria, tornar-se um recurso positivo na produção de um conhecimento “mais amplamente útil”. Como essas formulações sugerem, a teoria da perspectiva feminista compartilha o distanciamento pós-moderno em relação às epistemologias fundacionais sem, no entanto, abandonar a busca por aquilo que Harding chama de “uma concepção mais compreensiva acerca de como as coisas funcionam”. Para Harding, o feminismo “é um pós-modernismo”, portanto, no sentido de que o pós-modernismo é “uma parte da modernidade ... uma espécie de desenvolvimento tardio da mesma”. De forma semelhante, Harding reconhece que sua própria insistência na linguagem da “objetividade forte” representa uma tentativa “calculada” de se apropriar da “retórica” dominante da ciência com o propósito de “modificar a forma como a ciência é feita”, mas também enfatiza que a noção de objetividade “apresenta possibilidades progressivas” em relação àquilo que ela chama de um sentido substantivo.

Para Harding, a análise retórica joga um papel vital nos novos estudos sobre a ciência porque estes estão tão preocupados com os “significados da ciência” para não-cientistas quanto com questões de método científico e outros tópicos mais tradicionais de análise. Ao mesmo tempo, os estudos sobre a ciência foram enriquecidos com o contato com disciplinas como a psicanálise, a retórica e a crítica literária, nas quais, por meio de contrastes com a tradição da filosofia analítica, um texto é concebido como “algo cujo significado é criado em um contexto histórico de interações com diferentes leitores e diferentes períodos históricos”. A afinidade da teoria da perspectiva feminista com essas disciplinas é talvez mais aparente na idéia de reflexividade forte, onde um sentido do papel constitutivo da audiência e da recepção é central. Harding prefere falar de “apropriação transdisciplinar” do que de “dissolução de fronteiras disciplinares”, e enfatiza que tal apropriação é “um elemento crucial na forma como o conhecimento avança”. O quadro de referência da teoria da perspectiva feminista gera insights em uma ampla gama de questões discutidas na entrevista abaixo. Por exemplo, da mesma forma que a teoria da perspectiva feminista nega que o grupo dominante detém um monopólio sobre a objetividade, Harding sugere que nenhum grupo particular detém monopólio sobre a competência (literacy) – científica ou outra. A tão propalada “crise” das competências deve ser colocada no contexto das “competências múltiplas em competição” que compreendem a cultura americana contemporânea. Além disso, Harding “inverte a metáfora” da (in)competência científica, afirmando que “as pessoas de ciência mais educadas do ocidente são incompetentes acerca da própria natureza de nossos projetos científicos” – implicitamente porque suas posições, social e historicamente situadas, permanecem inadequadamente teorizadas. A teoria da perspectiva feminista pode ser percebida como parte da luta contra a incompetência da elite. As observações de Harding sobre a experiência de ensino no ambiente das universidades públicas também são informadas pela noção de objetividade e por um sentido retórico de audiência. O professor, em tal ambiente, freqüentemente encontra um corpo de estudantes étnica e economicamente diversificado para quem suas explicações devem, para propósitos práticos, parecer não apenas compreensíveis, mas “razoáveis”. Esta pressão pedagógica e retórica a leva a dar um passo para trás e refletir sobre o quadro de referência que ela compartilha com seu próprio grupo, mais uma vez, efetivamente “invertendo” a metáfora da competência ou da responsabilidade a partir da perspectiva daqueles marginalizados por ela.

Harding sugere que a perspectiva dominante dos professores pode ser transformada na relação com uma população de estudantes heterogênea e, de forma semelhante, que a perspectiva masculina dominante pode ser transformada em um recurso positivo para a mudança e a produção de novos conhecimentos por meio de um processo de cuidadosa auto-reflexão que parte do feminismo. Mas dado que “os grupos dominantes sempre pensam que sabem melhor”, o papel dos feministas (e futuros feministas) do sexo masculino é “difícil e problemático”, assim como “crucial e ... excitante”. Ao explicitar as dimensões ética e epistemológica da teoria da perspectiva feminista, Harding afirma que “os homens terão que se decidir acerca de seus próprios feminismos, da mesma forma que as pessoas brancas terão que se decidir acerca de seu próprio antirracismo”.

Relacionado ao papel problemático dos homens no feminismo está o status problemático do próprio gênero. Assim como o conceito de “raça” para os afro-americanos, o conceito de gênero para as mulheres tem sido tanto uma fonte de opressão quanto de força. Em lugar de teorizarmos o gênero especialmente com base no modelo marxiano de classe – como algo a ser abolido – nossas discussões sobre gênero devem ser informadas por uma consciência desta história dupla, afirma Harding. Ao passo que a literatura feminista tem apresentado a noção de masculinidade “primeiramente como um problema”, seria melhor ter-se em mente a dupla natureza de todas as noções de gênero, incluindo-se “até aquelas convencionais e problemáticas”, tais como a maternidade. Além disso, como a teoria da perspectiva feminista enfatiza, a posição social a partir da qual tais articulações são efetuadas permanece sempre decisiva: uma pessoa branca dizer a uma pessoa negra que raça deve ser abolida porque é “um sistema hierárquico socialmente construído” não contesta, mas efetivamente reforça, aquela hierarquia. Harding explicitamente reconhece que a teoria da perspectiva feminista é, ela própria, “historicamente situada” e derivada de uma “tradição cientificamente embasada” e “particular” do pensamento ocidental- nomeadamente do Iluminismo, por meio do marxismo. O que a teoria da perspectiva feminista pode fazer conceitualmente, e a audiência para quem ela pode falar efetivamente, é portanto necessariamente limitado: “tentar justificar um trabalho feminista com base na teoria da perspectiva feminista ... para pesquisadores empíricos na biologia ... não é necessariamente uma boa estratégia”, ela afirma. Apesar disso, a teoria da perspectiva feminista pode contribuir para criar um sujeito novo e coletivo de conhecimento, “não o tipo de sujeito individualista que se torna gênio sozinho e nem o tipo que se junta a uma comunidade e nunca tem um pensamento fora dela”, mas um sujeito que pode “fazer história e conhecimento” de forma diferenciada.

P: A senhora escreveu muitos artigos, capítulos e livros direcionados a acadêmicos de diversas disciplinas. A senhora pensa acerca de si mesma como escritora?

R: Sim, penso. Minha professora de redação da sétima série escreveu no livrinho de memórias que seus colegas escrevem coisas quando você está para se formar, “Sandra, você será uma grande escritora”. Eu achei aquilo tão misterioso: como essa pessoa poderia saber disso? E por três décadas aquilo não significou nada para mim. Eu acho que justamente porque escrevo para pessoas em diferentes disciplinas presto muita atenção ao escrever, não apenas em dizer o que estou pensando, mas em tentar direcionar minha escrita para uma audiência ou outra e em pensar sobre o lugar de onde meus leitores vêm. Eu tento basear meus escritos nas literaturas que são familiares às pessoas para quem estou escrevendo. Assim, eu penso acerca de mim mesma como uma escritora; é um processo muito consciente. Mas eu acho que vir da filosofia analítica é um obstáculo grande, para qualquer pessoa que não os filósofos analíticos, para se tornar um bom escritor. Por um lado, sou criticada pela minha escrita: não-filósofos a acham chata e pesada. Eu lembro de uma resenha no The Nation que dizia, “infelizmente, um grande problema com este livro é seu estilo pesado”. O chefe do meu departamento disse “esse cara não lê filosofia”. Por outro lado, os filósofos não percebem minha escrita como suficientemente filosófica: ela faz uso de metáforas e faz coisas que os filósofos analíticos não devem fazer.