domingo, 10 de janeiro de 2010

Entre o Ser e a Linguagem: a verdade das variações de Goldberg (parte 2)


Vladimir Horowitz e sua elegância de mordomo inglês. (Ooops!)

Além do aspecto musical, o que me impressiona na interpretação de Gould é a forma como ele se entrega à atividade que desempenha. Uma de suas marcas registradas é o fato de que gostava de cantar à medida que tocava, sendo possível ouvir sua voz (às vezes bastante alta!) em suas gravações. Aliás, é como se todo o seu corpo falasse: seu rosto se contorce, seu torso balança em todas as direções, seus pés se movem como se dançassem. Gould é todo música. Algumas pessoas poderiam atribuir isso ao fato de que ele era portador da Síndrome de Asperger, uma forma branda de autismo que explicaria excentricidades como as descritas em um release da gravadora Columbia acerca da gravação das Variações em 1981:

“era um dia quente de junho, mas Gould chegou de sobretudo, boina, protetor de orelhas e luvas. Seu equipamento consistia no costumeiro portfólio de partituras e também numa quantidade de toalhas, duas garrafas grandes de água mineral, cinco frascos de comprimidos (todas de cores diferentes e com prescrições distintas) e sua cadeira de piano especial. As toalhas, ficou claro, eram necessárias em quantidade porque Gould mergulha as mãos e os braços até o cotovelo em água quente por 20 minutos antes de se sentar ao piano... A água mineral era necessária porque Glenn não tolera a água de torneira de Nova York. As pílulas eram por qualquer razão – para dores de cabeça, para aliviar a tensão, para manter a circulação...”

É possível que o que a agitação de Gould ao tocar, que já foi caracterizada como “falta de decoro no palco”, tenha algo que ver com a síndrome de Asperger. Basta ver o primeiro vídeo postado por aqui para ver como ele aparentemente consegue se remover da realidade à sua volta, entrando no que parece ser um universo privado. Completamente diferente, por exemplo, de um Horowitz, que toca com uma expressão impassível, a elegância corporal digna de um mordomo inglês e as mãos rígidas que caracterizam a escola russa. Mas eu prefiro pensar na expressividade de Gould como uma forma de jogo. Para roubar uma citação de Gadamer, tirada de Verdade e Método e que Jonatas já usou por aqui, “pode-se precisar um traço geral de como a natureza do jogo se reflete no comportamento lúdico: todo jogar é um ser-jogado. O atrativo do jogo, a fascinação que ele exerce, reside justamente no fato de que o jogo se assenhora do jogador” (p. 181).

E aqui chegamos onde eu queria: no modelo gadameriano de interpretação baseado nas artes performáticas e a forma como podemos interpretar sua famosa frase “ser que pode ser compreendido é linguagem”. A preocupação que me guia aqui é essencialmente a mesma que tem guiado minhas investigações acerca da relação sexo e gênero, ou seja, a relação entre Ser e linguagem ou, numa terminologia mais realista, entre o domínio ontológico e o epistemológico.

Amanhã tem mais. Eu acho. E para quem quiser se inteirar melhor sobre a questão do jogo em Gadamer, remeto aos artigos escritos por Jonatas aqui no Cazzo, listados ao lado, nos marcadores do blog.

Cynthia Hamlin

6 comentários:

Lucas disse...

Eu havia interpretado a performance espalhafatosa dele como mera afetação artística. Agora está explicado e perdoado.

Entretanto, diante do mordomo inglês tocando piano (ou do piano tocando o mordomo inglês, não tenho certeza), a afetação de Gould é quase rock 'n roll, não me restando outra opção senão aprová-la independente de quaisquer outros fatores.

Cynthia disse...

Devo confessar que foi maldade comparar Horowitz a um mordomo inglês. Mas foi mais forte do que eu: achei ele a cara do mordomo do desenho de Walt Disney, Os Aristogatos.

Lucas disse...

Ele não é um mordomo inglês??? :O

Cynthia disse...

Gente, confesso que está difícil arranjar tempo para terminar isso aqui. Acho que vou ter que dar um tempo até as coisas se acalmarem um pouco em termos de trabalho.

Fernando disse...

Cynthia:
como você própria admite acima, também achei uma maldade, para não dizer impropriedade, você comparar o estilo e a postura de Horowitz com um mordomo inglês. No mais, acho que você presta um grande serviço a muitos dos ouvintes de Glenn Gould quando esclarece algo da idiossincrasia com que ele se comportava enquanto intérprete.
Vovó Quininha

Cynthia disse...

Nando,

Não fique assim não: o mordomo dos Aristogatos era um senhor muito digno. E Horowitz é Horowitz, com ares de mordomo ou não.

Uma hora eu termino isso aqui. É só ter uma folguinha do relatório da Capes.

Beijo.