quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

O Poder

Desde que Tâmara andou postando esses artigos sobre avaliação universitária venho fazendo um esforço hercúleo para não sucumbir ao desejo de mandar a burocracia universitária às favas e me dedicar a atividades mais produtivas. Como minhas férias, por exemplo. Mas... noblesse oblige. Só não consigo evitar conversações interiores impublicáveis e nada sociológicas acerca da natureza dos cargos burocráticos que, invariavelmente, desembocam no mais absoluto sentimento de auto-comiseração. O que fiz para merecer isso? Será que a Capes tem um sistema de indulgências semelhante à Igreja Católica medieval que me garante um crédito para ser utilizado na minha entrada no paraíso? Tenha fé, tenha fé, digo a mim mesma, e tento pensar que o poder deve ter lá seus encantos. E não é que tem mesmo? Descobri isso ao ler as reflexões de Artur sobre o tema lá no Blog dos Perrusi, que roubo desavergonhadamente para o Cazzo. Nessas horas, fico pensando por que diabos ele largou a psiquiatria para virar sociólogo: o danado é um terapeuta nato e me fez economizar uma fortuna para resolver meu trauma.

Cynthia



Artur Perrusi

Penso no poder. Não que queira, mas é necessário, quase um movimento atávico. Fui chefe de departamento e, agora, sou síndico – podem gargalhar à vontade. Síndico é de lascar. Como o poder me persegue, vivo a me questionar se gosto, de fato, do babado. Os defeitos existem dentro de nós, ativos e militantes, mas inconfessos. Retruco que eu sou eu e minhas circunstâncias, e sempre alheias à minha vontade. Afinal, fui vítima de um rodízio. Esqueci-me completamente de que, pelas leis imutáveis da matemática, seria o próximo síndico, logo depois do final da gestão de meu vizinho de apartamento. Olhando retrospectivamente, não posso me surpreender, pois o poder, na minha vida, caiu sempre como um raio em pleno céu azul. Por isso, percebo-o com conformismo.

Principalmente, quando chego em casa, cansado do trabalho, e o zelador me avisa de que o vaso de seu Abdias caiu lá de cima.

_Matou alguém?!
_Não, alguém, não, mas acabou com a cabeça do cachorrinho do 303.
_Mas pode ter cachorro aqui no prédio?

O zelador fica calado. Seus olhinhos miúdos tentam me avisar de que está na frente do síndico, logo, de quem sabe dessa preciosa informação. Borbulho um riso louco. Penso no morador do 303. Tem cara de mau, muito mau. Cara de narco. Por mim, ele pode criar cachorros no seu apartamento; aliás, pode criar a criatura que quiser: ariranhas, ornitorrincos (as melhores, pois não emitem sons). Já seu Abdias é um velhinho insuportável. Vive com uma moça 50 anos mais nova, mas não tenho nada a ver com o bolero. Além disso, prefiro esquecer a estória toda. Quando ela explodir, darei um jeito. O poder é isso: conviver com a diferença. Por isso, odeio qualquer filosofia da diferença. Derrida nunca foi síndico. Sou um apologético da identidade. Por mim, só tinha clone nesse mundo velho e enfadado.

Além do mais, não queria comentar um assunto tão delicado no blog. Só falo de experiências de poder que já passaram. O presente é dolorido demais. Queria falar de outra coisa – de minha experiência na chefia do departamento, por exemplo. Já é passado e não vai mover moinho algum. Certo, essa estória ainda precisa ser mais bem analisada pelos historiadores e, quiçá, pelas antropólogas; de fato, aqueles que tentaram acompanhá-la ficaram meio confusos, talvez devido ao fato prosaico de que coisas incrivelmente confusas aconteceram durante o meu reinado.

Um problema que mais me embananou foi o da velocidade dos ofícios, dos memos e das declarações, principalmente daqueles enviados à reitoria. Descobri, depois de muita observação, que um ofício ou um requerimento, por exemplo, caso quisesse ter uma resposta que evitasse a eternidade, necessitava ultrapassar a velocidade da luz. Fiquei angustiado, porque minhas secretárias eram incapazes de imprimir tal velocidade aos ofícios e quejandos. Não dá. Não era culpa delas. Era culpa da física. Nada viaja mais rápido do que a luz, com exceção talvez das más notícias, que obedecem a leis próprias e especiais. Tentei, assim, produzir ofícios movidos a más notícias e, com efeito, eram muito rápidos, embora o procedimento não tenha funcionado… Eram muito mal recebidos pelo pessoal da reitoria e voltavam ao departamento mais rápido ainda, e sem respostas. Tal fato criou um paradoxo temporal, pois os ofícios retornavam mais rápido do que iam, pois ultrapassavam a velocidade da luz negra (aquela que deixava nossos olhos violetas e que animava toda festinha de minha geração), causando um constrangimento entre minhas secretárias, que pensavam que não tinham ainda enviado as más notícias — dessa forma, acumulei más notícias pra dedéu.

Frustrado, passei um tempo desanimado. Aí deu um clique: construí um Acionador de Improbabilidade Burocrática (AIB), uma espécie de máquina do tempo multidisciplinar. Como a multidisciplinaridade é coisa chique na universidade, ninguém reclamou, e nem mesmo notou o trambolho de 20 toneladas que ocupava todo o departamento. Agora, enviava os ofícios movidos a más notícias, só que ao passado. Além de me antecipar, imaginei que os funcionários teriam mais tempo para responder, podendo esperar, inclusive, até o meu presente para enviarem a resposta. Na verdade, deu uma confusão dos diabos, pois algum burocrata burro (desculpe a redundância) passou a enviar as respostas, também, ao meu passado – claro, eles tinham já construído um AIB. E, no passado, passei a receber respostas de ofícios movidos a más notícias do futuro. Tentei, inicialmente, utilizar isso ao meu favor, antecipando-me na resposta às respostas e enviando ainda mais más notícias. Mas deu um nó no tempo pior do que o nó górdio, já que as más notícias do futuro tinham-se tornado presentes e, por algum paradoxo temporal muito complexo, começaram a chegar más notícias do passado, do presente, do futuro e de todas as infinitas dimensões burocráticas da reitoria… E tive, assim, o maior acúmulo de más notícias da história do departamento!

Numa reunião, tentei explicar o problema aos meus pares. Expliquei que o pessimista é aquele para o qual tudo está perdido, enquanto que o otimista tem fé de que as coisas ainda podem piorar. Parei e fiz uma pausa dramática, porque não estava entendendo o que tinha dito — todos me olharam, começou uma balbúrdia e mudei de assunto… Perguntei, então, qual seria exatamente a posição da primeira mulher como ajudante do homem: era ela uma igual ou uma subordinada, antes que os dois desobedecessem a Deus? Despertei assim certa curiosidade de algumas estudiosas do gênero, mas nada que ultrapassasse um olhar apenas fugaz. Decidi provocar e recitei um poemazinho:

Nas mulheres não sei mais crer,
Nenhuma mais me seduz.
Se ela não quer me conhecer.
As desconheço em minha cruz.
Nenhuma delas me convém.
E o que elas fazem não tem nexo,
De nenhuma quero saber,
Desprezo a todas do seu sexo.

Notei um bocejo de um cientista político que olhava intensamente a água dentro de seu copo. Aí, não aguentei, apelei brabo e perguntei:

Por que Eva foi tirada exatamente da costela de Adão, já que Deus podia usar um pedaço de madeira, uma pedra ou qualquer outra matéria? Aquela costela estava sobrando? Se não estava, então Adão estaria sendo privado, por Deus, de parte essencial de seu corpo, dado não ser concebível que, desde o início, estivesse presente no corpo humano algo supérfluo. Ou Adão tinha treze costelas de um lado e doze do outro? Era uma espécie de monstro, como os homens que têm três mãos e três pés?

Nenhuma reação.

Diante da indiferença cavalar, resolvi desmontar o AIB e voltar aos trâmites burocráticos normais. Tudo continuou na mesma, como sempre, pois a burocracia é a terra de Parmênides, onde nada muda e nada acontece. Em suma, recolhi-me à minha insignificância, postura sábia e estratégica. Ser chefe de departamento é esperar o tempo passar, a gestão acabar e acumular uma gigantesca barriga para poder empurrar os troços para frente, deixando tudo como sempre esteve e sempre estará para a próxima gestão.

Ah, o poder…

9 comentários:

Artur disse...

Hehe... não me lembrava desse texto. Acho que é literal demais. É a verdade verdadeira.

Não monte um AIB. É tentador, mas é perigoso e só causa confusão. Bjs

Cynthia disse...

Arture, amore, você ainda frequenta isso aqui? Fala a verdade, deu saudade de postar alguma coisinha, não foi?

Agora me tira uma dúvida: como é que eu faço para me livrar do barrigão gigantesco e retornar à minha barriga de tanquinho do tempo em que eu era bela e jovem depois que a minha gestão terminar?

Artur disse...

Frequento, sim, viu?! E, nas férias, que começam no mês de fevereiro, voltarei enfim à tona.

Vc é bela mesmo com barrigão... Mas feche a boca e corra três vezes na semana no parque Lindu!

Cynthia disse...

Era uma metáfora, Arture, o barrigão era uma metáfora! Aliás, a barriga de tanquinho também. Só não sei direito para quê. E nem me fale em correr: acabo de voltar de uma caminhada de 9km. Tô morta!

Essa Escola da Paraíba anda meio esquisita, não? Além do problema com as metáforas, férias começando em fevereiro? Ainda não acertaram o calendário?

Beijos

Artur disse...

Ah, era uma metáfora... Vivo no reino da pseudoconcreticidade -- tudo é literal!

Mas vc é bela, mesmo com um barrigão metafórico!

Vamos, enfim, depois de fevereiro, acertar o calendário. É dose...

Cynthia disse...

São seus olhos ametafóricos.

(Eu devia ter desconfiado que você ia aproveitar a deixa para me deixar encabulada em público. Para com isso, Arture!)

Falando de coisas mais sérias, preciso de sua ajuda para convencer Gadiel a escrever um texto sobre o método dialético para a gente postar por aqui. Foram as melhores aulas que já tive sobre o assunto. Seria legal se a gente pudesse compartilhar com nossos alunos, né? Está lançada a campanha.

Lucas disse...

Por um momento pensei que Cynthia estivesse grávida.

Cynthia disse...

Não, Lucas, foi apenas uma metáfora infeliz para dar conta do meu desejo de empurrar a burocracia com a barriga.

Uma coisa eu aprendi nesses anos de ensino: tem coisa que quanto mais a gente tenta explicar, pior fica. A melhor coisa é dar uma de Rorty, varrer determinadas questões para debaixo do tapete e propor: "que tal a gente falar de outra coisa?".

;)

Ana Paula Portella disse...

Com barriga ou sem barriga, matafórica ou ametaforica, o que seja, nada melhor do que um texto como esse para iniciar a semana... Acabei de chegar de um samba e as risadas que me provocou caíram como luva de pelica para me adormecer esquecida de qualquer poder. Muito bom.