quarta-feira, 17 de março de 2010

O romantismo e as ciências sociais 2


Eugène Delacroix: La liberté guidant le peuple (1830)

Jonatas Ferreira

Entender o que significou o Romantismo nesse espaço mais restrito, ou seja, na França e na Alemanha, em todo caso, tampouco é uma tarefa simples. Basta que se considere o que pode ter representado essa reação ao classicismo em um e em outro contexto. A estética clássica, em sua busca pelo equilíbrio formal, pela ordem, pela contenção, por temas de bom gosto tem muito mais condições históricas de prosperar na França que na Alemanha. Com muito mais propriedade, ali se busca uma etiqueta da contenção, do gesto bem dosado, do gesto que em sua graça ateste a distância que separa a civilidade do cortesão da brutalidade na qual viviam as camadas pobres da população. A prosperidade e 'progresso' franceses, em contraste com a situação alemã (politicamente fragmentada, economicamente retardatária), requer formas sociais e culturais que falem em nome de uma razão abstrata, cosmopolita. A grande engrenagem absolutista naquele país demanda uma etiqueta e uma estética da contenção pois apenas elas manteriam harmonioso o corpo social.

E se ali se falava em um retorno à Antiguidade Clássica era precisamente porque o francês agora se percebia com reedição desse padrão máximo de civilidade. Em O Processo Civilizador, Elias nos ajuda a entender esse processo, dentro do qual poderíamos opor um cosmopolitanismo, humanismo, racionalismo francês a este outro processo cultural mais atento com a questão da identidade, do particular, do nacional. Em outras palavras, é possível opor a ideia francesa de civilização, e através dela um humanismo francês vindo da Renascença, ao conceito mais alemão de Kultur, onde a Reforma Protestante fala mais alto. Não é fortuito, portanto, que dois expoentes do classicismo alemão, como o são Goethe e Schiller, sejam também influências determinantes no romantismo daquele país (Bornheim, p. 84). O sentido da oposição romântico-clássico é melhor capturado através da análise do caso francês do que daquilo que ocorreu culturalmente na Alemanha, historicamente mais próxima próxima do romantismo.

A esse respeito, é ilustrativo a forma como Simmel (p. 49) contrasta o estilo germânico de Rembrant (esse holandês do século XVII) à arte clássica românica. (E eu estou com preguiça de traduzir isso:)

If Rembrandt’s art may be considered the highest embodiment of the Germanic side, the contrast between the two could be summed up as follows: where classicism seeks to present form in the appearance of life, Rembrandt sought to present life through the appearance of form. The artistic personality of the classical world always sees a particular form based on a lawful interrelationship of the parts of a surface, which more or less prescribes the outline of the subject matter, often schematically, but certainly in a wonderfully poised, harmonious and monumental manner; and this law predetermines the subject matter’s life to realize this form and to seek the meaning of its artistic becoming in this form.


É interessante citar e analisar esse olhar retrospectivo que Simmel produz acerca de uma certa força romântica que impede o estilo germânico de se render plenamente ao formalismo classicista. Entre outros motivos, o curioso é vê-lo produzir uma análise vitalista deste estilo, quando é o próprio estilo germânico, seu sentido histórico e cultural, que oferecem as condições de possibilidade de qualquer vitalismo. Entre o estilo românico, italiano, latino, se quiserem, e o estilo nórdico, germânico, há uma oposição entre duas alternativas opostas de produzir um equilíbrio entre energia vital e forma. Essa seria, para Simmel, a oposição mais fundamental que subjaz aos atributos que associamos mais acima às ideias de uma civilização francesa (abstração, racionalismo, pendor pela matemática) e uma cultura alemã (particularidade, nacionalidade, sentimento). Pensado a partir dessa chave, o vitalismo de Georg Simmel nada mais seria que uma manifestação tardia de um romantismo inerente à própria cultura germânica.

Vejamos isso mais claramente recorrendo ao próprio texto "Estilo Germânico e Clássico Românico" (publicado em 1918) – e, mais uma vez, o caboclo Macunaíma me impede de traduzir a citação, que não é pequena (“Ai, que preguiça!”).

At work here is the classical Romanic impulse toward lucid panorama and rational unity in the exterior realm of appearances. By contrast, in Rembrandt’s art, as in all typical Germanic art, no such overarching schema abstracts away from individuality: each picture retains its own form, in which no other content can be inserted, and only by inhering in this particular content can any form exist; a general form would be meaningless. It follows that it is life that determines representation – the life always of the individual human being, which can proceed only through this one canal. Individual life here so naturally rejects generalization that it does not even need to exhibit its difference from others. Wherever Italian art stresses the aspect of the individualized – most notably in the quattrocento – it does so always by means of an intentional accentuation, a deliberate foregrounding of the figure from the crowd, or through something like a principle of comparison, a yardstick or a common denominator of some kind, which stretches across even greatly heterogeneous objects (Simmel, p. 49; meus grifos)


O classicismo na França signfica Corneille, Molière, Racine, isto é, uma arte cortesã, cuidadosa, formal, matemática, num certo sentido. Pensemos no recurso constante que Racine faz aos temas consagrados da antiguidade clássica: Fedra, Andrômaca, Alexandre o Grande. Desses, li e me lembro de Fedra – vi Fernanda Montenegro fazer a personagem umas dez vezes; eu fazia um bico como fiscal da SBAT e não cansava de ver a grande dama do teatro nacional sofrer de amor (com muita dignidade, sem se rasgar, nem armar barraco) pelo enteado, Hipólito. Como já falamos acima, levava-se muito a sério nos tempos de Boileu e Racine a Poética de Aristóteles, seu apelo à ordem, proporção, ao equilíbrio entre imaginação e forma, ao “bom-gosto” na escolha dos temas. Essa era uma arte feita para o prazer da corte dos Richelieu, Mazarin, de Luís XIV. Pensemos também no genial Molière, no Burguês Fidalgo, por exemplo. Não é esse um libelo contra a falta de gosto do burguês, de sua vã tentativa de tornar-se um gentil-homem, um homem de gosto? Pobre Monsieur Jourdain, a tomar aulas de etiqueta e dicção que transformarão sua fala em um grotesco ornejar... Sobre quais pressupostos essa arte se produz? Jacques Barzun nos ajuda a entender isso. E uma vez mais recorrerei a uma citação que é a forma mais rápida de ir ao ponto.

What lent support to the seventeenth-century view that reason and nature are one is that the classical scheme os society coincided with a great scientific epoch; an epoch, moreover, specializing upon the one branch of science most congenial to the classical temper. I mean mathematics. For mathematics also abstractsand generalizes and yields simplicty and certainty while appearing to find these ready-made in nature.


A ideia de que a sociedade deva funcionar como um relógio, com suas engrenagens harmonica e equilibradamente funcionando, é clássica e, enquanto tal, adequada a um mundo político presidido por um relojoeiro maior, por um reio absoluto. Racionalismo, matemática, equilíbrio formal são aqui ideias políticas que se completam. O problema é que uma revolução burguesa em curso, coloca em xeque o aparato ideológico que legitima o absolutismo – permitam-me aqui simplificar as coisas. Sobre essa tensão histórica que monta, o Romantismo rousseauiano prospera. Contra as etiquetas, contra a formalidade da vida cortesã, de seu ideal de civilidade, Rousseau propõe um mergulho na própria fonte de vitalidade humana, em uma nudez sem artifícios que constituiria a própria essência e força da natureza humana, sufocada pelo artificialismo da cultura absolutista. O Romantismo francês é marcado por essa postura anti-classicista que pode ser capturada no seguinte trecho do Discurso sobre as Ciências e sobre as Artes.

“Como seria agradável viver entre nós, se a aparência fosse sempre a imagem das disposições do coração, se a decência fosse a virtude, se nossas máximas nos servissem de regras, se a verdadeira filosofia fosse inseparável do título de filósofo! Mas, tantas qualidades muito raramente vão refluídas, e a virtude não anda assim com tanta pompa. A riqueza do ornamento pode anunciar um homem opulento, e sua elegância um homem de gosto: o homem são e robusto é reconhecido por outros sinais; é sob a vestimenta rústica de um lavrador, e não sob os dourados do cortesão que se encontrarão a força e o vigor do corpo. O ornamento não é menos estranho à virtude, a qual é a força e o vigor da alma. O homem de bem é um atleta que tem prazer em combater nu; despreza todos esses vis ornamentos que dificultam o uso das suas forças e cuja maior parte só foi inventada para ocultar alguma deformidade” . http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000012.pdf).


Embora não devamos reduzir o Romantismo de Rousseau a algum tipo de irracionalismo, pois afinal esse é o escritor do Contrato Social, parece evidente que ao condenar o articialismo, o formalismo necrosado, ao arremeter sobre o Antigo Regime, ele se aproxima discursivamente desse tipo de postura. Mesmo aqui, no entanto, ao opor um “bom selvagem” ao “homem civilizado” ele é influente. Derrida, como já indicamos aqui no Cazzo, faz um estudo muito interessante dessa influência na obra de Claude Levi-Strauss. De qualquer modo, poderemos sempre afirmar acerca de J-JR o que constata Guinsburg (1978, p. 14):“Com Montesquieu e Rousseau, as instituições, costumes e normas sócio-jurídicas passam a ser entendidas como produto das condições, do comércio e contrato dos seres humanos”. E dessa perspectiva poderemos interpretar mais generosamente o techo abaixo.

“Com efeito, tanto ao folhear os anais do mundo como ao suprir crônicas incertas com pesquisas filosóficas, não se encontra uma origem dos conhecimentos humanos que corresponda à idéia que a respeito gostamos de formar. A astronomia nasceu da superstição; a eloqüência, da ambição, do ódio, da adulação, da mentira; a geometria, da avareza; a física, de uma vã curiosidade; todas, e a própria moral, do orgulho humano”. (Rousseau, http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000012.pdf)


Mas, se a separação entre um mundo clássico e absolutista e um mundo romântico e burguês é uma tarefa mais simples de ser realizada na França, o que dizer do Romantismo Alemão, cujas referências fundamentais estiveram de algum modo envolvidas em traduzir o mundo românico, latino, seu racionalismo, para uma cultura mais germânica? Ora essa questão é a questão que Kant se coloca na Crítica do Julgamento e a sua resposta é em certa medida esquizofrênica. Parte de sua terceira Crítica é dedicada a pensar as condições de possibilidade de uma estética fundada no sentimento de prazer diante do Belo, que descreveria a meu ver a trajetória do classicismo. Uma segunda parte dessa obra fundamental, entretanto, é dedicada a pensar o sentimento do Sublime, que constituirá não apenas o campo dentro do qual trafegará o Romantismo, mas em grande medida orientará o próprio modernismo como um todo. Se no sentimento do belo havia uma esperança de que o equilíbrio, a harmonia, a proporção e a ordem ainda pudessem falar acerca da relação do homem do século XVIII com o seu mundo, ao descrever o sentimento do sublime Kant percebe que a desproporção, a precariedade das formas, a finitude desamparada do ser humano irão sepultar as esperanças clássicas de um mundo equilibrado. E esse mundo em desequilíbrio é o mundo industrial.

Por sobre a contribuição kantiana, Schiller realiza a sua própria. Sobre essas duas, virão Novalis e os irmãos Schelegel que nos proporão uma arte reflexiva e vital.

(por editar)

5 comentários:

Tâmara disse...

Jonatas,
Em primeiro lugar queria registrar meu protesto contra a imagem dessa velha e ratada tentativa de destronar o romantismo do Rei. O Junior é até bonitinho, mas muitos Juniors (não todos) têm esse mesmo defeito: falta-lhes justamente o vitalismo dos originais.
Mas devo admitir que ja' experimentei a justeza de sua descrição do classicismo francês: assisti no teatro à Bérénice de Racine que, mesmo sendo interpretada por uma pequena mademoiselle do cinema francês (Carole Bouquet), foi um deleite de dignidade, de sofrimento contido - por um amor tra'gico, mas até o fim racionalizado por todos os personagens.
Finalmente, quando você fala que a oposição romântico-cla'ssico é melhor capturada pelo caso francês e, ao mesmo tempo, traz Rousseau e Montesquieu como expressões dessa oposição, fico com pressa para ver os laços que você quer desenvolver entre o romantismo alemão e uma ciência social cri'tica. Explico porque: se Derrida estuda a influência de JJR sobre Lévi-Strauss, lembre que Durkheim (pouco inclinado a irracionalismos, mas...) tem uma tese sobre Rousseau e Montesquieu como precursores da sociologia. Nunca a li, mas essa parte 2 de seu texto produz caraminholas interrogativas em minha cabeça: sera' que a oposição romântico-cla'ssico na França, apesar ou justamente por ser melhor capturada, não terminou por incidir como si'ntese sobre a nascente sociologia francesa?
Ia esquecendo! Que o caboclo Macunai'ma continue acompanhando você: sua preguiça é de um vitalismo inconteste. Abraço.

Cynthia disse...

Parece que o caboclo se apossou de Jonatas de vez.

Você ainda incentiva, Tâmara!

Le Cazzo disse...

Tâmara,

Primeiro vamos ao mais importante: "O que que tá... se passando por essa cabeça?..." Como? O romantismo francês não foi feito só de Géricault ou de Hugo. O Rei é inquestionável e insuperável, mas há também espaço para o Fabito! "Me ensina esse jogo da vida, onde a vida só paga pra ver..ê-ê-ê". E perceba o sorriso "vou te comer, fofinha!" Não há dúvida: é um romântico legítimo.

E eu havia esquecido do ensaio de Durkheim - que li, mas não consigo lembrar o argumento. Como eu emporcalho meus livros com anotações, vai ser fácil recuperar e quem sabe usar aqui. Obrigado, mesmo.

E estar na França é outra coisa. Aqui eu tenho de me contentar com William Bonner e Fátima Bernardes no quesito "amor contido".

Cynthia: é melhor não fazer troça dessas coisas religiosas.

Jonatas

Tâmara disse...

Jonatas,
Acho que você me convenceu. Torno pu'blico meu pedido de perdão a Junior e a todos os seus fãs. A u'nica du'vida é quanto ao "vou te comer fofinha". E' verdade que a frase não parece inspirada no classicismo, mas isso lhe parece romântico? E' que ela lembra uma frase de um amigo meu cujo romantismo é pouco aparente e cujo conteu'do prefiro não expor num blog bacana como o Cazzo. Mas como seu objetivo é ultrapassar os chavões sobre o romantismo, quem sabe no fim eu descubra o romantismo de meu amigo e de sua frase.
E você anda com algum complexo de provincianismo? Primeiro desculpou-se de expressões em li'ngua estrangeira, agora esta' reduzindo sua experiência do "amor contido" ao casal Fa'tima/William! Mas concordo que estar na França é coisa outra: tenho quase certeza de que se você estivesse aqui agora, escreveria uma tese impeca'vel sobre o romantismo de Nicolas Sarkozy - homem de um vitalismo tão radical que ainda mata a França disso!
E acho que Macunai'ma anda mesmo agitado: seu comenta'rio apareceu em dose tripla! Como a Santi'ssima Trindade.Vamos fazer um despacho de exconjuro?

Le Cazzo disse...

Tâmara,

Consertei o quesito comentário tripo. Deixo a descrição do olhar de Fábio como está porque acho que corresponde - embora, talvez, isso torne o blog menos bacana. Mas como estou preparando uma aula sobre Sade, talvez devêssemos entender a frase de modo literal. E assim o leitor já fica preparado para os posts que ainda vem por aí na série "modernismos". Jonatas