segunda-feira, 10 de maio de 2010

E os "desaparecidos"? A transição ainda não acabou



Luciano Oliveira - professor de Sociologia Jurídica na Faculdade de Direito do Recife; autor do livro Do Nunca Mais ao Eterno Retorno: uma reflexão sobre a tortura, São Paulo, Brasiliense, 2009 (2ª edição).

A recente decisão do STF no sentido de não se mexer na Lei de Anistia, pela folgada maioria de 7 votos a 2, põe uma pedra definitiva na questão da responsabilidade penal dos torturadores do regime militar, mas não encerra o assunto! A ditadura continua vagando como uma alma penada; e, como acontece com as almas penadas, só quando os militares pedirem reza é que o regime de 64 estará definitivamente concluído. A reza, naturalmente, deveria vir sob a forma de um mea culpa formal pelas atrocidades cometidas. Infelizmente, acho que é sonhar muito. Mas talvez possamos esperar que, definitivamente tranqüilizados quando à possibilidade de uma “revanche”, eles tenham agora a grandeza de abrir os arquivos, de dizer tudo o que sabem, de cooperar sinceramente com os esforços de se conhecer, finalmente, o destino dos desaparecidos.

Que outra pudesse ter sido a decisão da nossa Corte Suprema, nunca acreditei nisso. De resto, pessoalmente nunca fui simpático à revisão da Lei mais de trinta anos depois dos eventos que ela indubitavelmente cobre. Juristas de primeira linha e comprometidos com a causa dos direitos humanos - junto a quem, aliás, me alinho nesse engajamento - têm elaborado uma interpretação segundo a qual as torturas praticadas nos porões do regime não podem estar cobertas pela Lei nº 6.683/79, que anistiou os crimes políticos praticados no Brasil naquele período. Discordo. Afirmar que os crimes dos torturadores não foram crimes políticos, é fazer do coração tripas para demonstrar o que só pode ser “demonstrado” mediante sérias torções no bom senso! Para nossa desolação, o § 1º do art. 1º da referida Lei diz textualmente: “Consideram-se conexos, para efeitos deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política” - itálicos meus. Diante de tal literalidade, não vejo como sustentar a tese do crime não político. A estrutura repressiva montada no Brasil a partir de 1968, com a edição do AI-5, notadamente os sinistros DOI-CODIs, praticou crimes horríveis e hediondos. Mas qual foi a motivação de todo aquele horror senão política?... Num exercício jurídico penoso até de ser formulado, eu diria que torturadores que extorquiram dinheiro de familiares de presos, torturadores que estupraram presas sob sua custódia - e há relatos de que esse plus de abominação aconteceu! -, esses, eu diria, não foram anistiados! A sua motivação não pode ter sido política. Os epítetos de “monstro, desnaturado e tarado”, proferidos pelo ministro Ayres Britto, um dos dois votos vencidos no julgamento, cai-lhes como uma luva. Infelizmente, porém, estão todos acobertados pelos mais de trinta anos que já transcorreram e a prescrição que os beneficia. E continuo com a minha tese.

Além da letra da lei, todos que viveram aqueles anos sabem - e os que tiveram a sorte de vir ao mundo depois podem saber consultando a história do período - que a Lei foi feita para os dois lados. Revê-la agora é desconsiderar o contexto histórico e os que, naquele momento, negociaram e aprovaram a lei. A impunidade dos torturadores, por mais que seja pouco glorioso dizê-lo, foi uma das condições para que pudéssemos ter retomado a história brasileira das mãos dos militares. A correlação de forças ainda pendia tão fortemente para o lado da ditadura, que a punição dos torturadores não era uma reivindicação realista. A grande discussão da época referia-se aos presos condenados por “crimes de sangue”, que o projeto do governo deixava de fora. Pressionado pela “linha dura”, o Planalto não cedeu, mas pactuou a revisão de sua situação. De fato, quase todos foram soltos nos meses seguintes. Ninguém sabe o que teria acontecido se não tivéssemos tido a anistia naquele momento e não se pode contar uma história que não aconteceu. O que é possível afirmar com segurança é que, sem a salvaguarda dos interesses dos “revolucionários sinceros, mas radicais” - como dizia eufemisticamente Geisel para se referir à “linha dura” e seus torturadores -, não teríamos tido a anistia de 1979. O que veio depois é tanto apesar dessa história quanto graças a essa história...

Comentando a votação no STF, Paulo Sérgio Pinheiro diz que ela “consagrou de vez o Brasil na rabeira dos países do continente quanto à responsabilização dos agentes do Estado responsáveis por graves violações de direitos humanos” (Folha de S. Paulo, 05/05/10). De fato, países como o Chile e a Argentina repudiaram as respectivas ditaduras com uma desenvoltura que nunca se viu por aqui, e perseguiram e perseguem ainda seus torturadores - enquanto nós reafirmamos a anistia que os beneficiou. Mas há diferenças significativas entre as ditaduras. Em primeiro lugar, naqueles dois países a vida política foi extinta. Os ditadores nunca tiveram de compor com partidos políticos ou negociar apoio. No Brasil, mesmo com a “espada de Dâmocles” (imagem particularmente cara ao finado Doutor Ulysses) sobre a cabeça, as instituições mantiveram-se em funcionamento a maior parte do tempo e houve ocasiões, como nas eleições de 1974, em que o governo sofreu derrotas humilhantes. A manutenção de um Congresso funcionando fez de boa parte dos políticos brasileiros não apenas partícipes do jogo, mas servidores do regime. Logo, cúmplices. Muitos ainda estão na ativa. Além disso, ponto a não ser negligenciado é a diferença enorme nos números de mortos e desaparecidos. O número estimado de 400 mortos pelo regime militar brasileiro - entre os quais estão cerca de 140 desaparecidos - é sem comum medida com a carnificina promovida pelos regimes de Pinochet e Videla. Na Argentina, números por baixo chegam à cifra impressionante de 20 mil mortos e desaparecidos. Para a mãe ainda viva de um desaparecido brasileiro, o raciocínio pode parecer cínico e cruel. Mas, sociologicamente falando, o pequeno número de vítimas fatais, no Brasil, explica sem dúvida o fato de que movimentos como os de familiares de desaparecidos nunca foram capazes de impactar e mobilizar a sociedade brasileira em torno de um projeto punitivo para seus algozes. Ou seja, no que diz respeito às atrocidades, o Brasil ficou também - felizmente! - na rabeira daqueles países.

O julgamento no STF foi mais um capítulo no embate que desde o fim dos anos de chumbo tem sido travado entre os militares e o que eles chamam de “revanchistas” - muitas vezes simples mães querendo saber onde prantear um filho desaparecido, repetindo com isso o gesto de Antígona há mais de dois mil anos, ao desafiar a ordem da Polis para dar uma sepultura a seu irmão. Foi mais um capítulo, mas não foi o último. Talvez tenha sido o penúltimo. O último precisa ser escrito. Refiro-me à exigência, inafastável, em relação ao destino dos desaparecidos – as circunstâncias de suas mortes e onde os restos mortais foram enterrados, se o foram. Aqui estamos num patamar de exigência moral de que não devemos abrir mão. É incompreensível, absurdo e inaceitável a postura das Forças Armadas que se recusam até hoje a encarar esse assunto com a seriedade e com o espírito de colaboração que ele exige. Até porque aqui já não se trata de proteger companheiros de farda - a maioria certamente já de pijama - que se dispuseram a fazer o trabalho sujo dos porões. Com o julgamento do STF, eles podem (se puderem...) dormir tranqüilos. Quanto às Forças Armadas como instituição, elas continuam em débito com o dever de tornar públicos os arquivos e informações que detenham sobre o destino desses adversários mortos. Isso, sim, as reconciliaria de vez com a Nação. Mais do que um dever ético, trata-se até do simples dever de compaixão para com as mães, irmãos e filhos dos que desaparecem na “noite e na névoa” sem deixar traço. Por isso a transição ainda não terminou. Ela não terminará enquanto uma mãe como a de Fernando Santa Cruz, desaparecido em 1974, se perguntar todos os dias de sua vida como faz até hoje: “Onde está o meu filho?”

10 comentários:

Le Cazzo disse...

Sempre leio os textos de Luciano com o respeito e admiração que sua inteligência e a qualidade de sua prosa me inspiram. Respeito também o fato de ele se colocar de forma clara sobre assuntos que exigem reflexão, como o objeto de seu artigo. Mas, nesse caso, fiquei com dúvidas em relação a alguns de seus argumentos para justificar a decisão do STF.

O primeiro deles é o raciocínio utilizado para aceitar a decisão do Chile e da Argentina com relação à tortura e ao mesmo tempo compreender o que o STF achou por bem decidir aqui. A escala das atrocidades. 400 pessoas é bem menos que 20 mil, certamente, mas ainda é muita gente. O raciocínio poderia ser: no nosso caso é muito mais fácil responsabilizar os culpados, pois a máquina que se monta para matar 20 mil envolve sem dúvida mais criminosos que aquela responsável pela morte de 400. Politicamente, pareceria menos traumático. O que nos leva a decidir, então, pela não punição desses crimes? Depois, há a constatação de que o momento político do final dos 70 levou-nos a aceitar a Lei de Anistia que os militares acreditaram ser a mais adequada. Aceitamos porque é o que poderia ser aceito. As mesmas condições políticas ainda estão mantidas? Acho que não; quero crer que não. Aqui também a oportunidade de não aceitar a barbárie (tenho certeza ser também a posição de Luciano) seria importante para o país. Jonatas

Pedro Monteiro disse...

Gostei muito do texto.
Ponderado, claro e de certa forma até desafiador.
Parabéns.

A minha "dúvida" é a mesma de Jonatas: será que ainda temos que nos acontentar com essa lei?

Le Cazzo disse...

Meu caro Jônatas,

Como não sei responder no blog, vou escrever os pequenos esclarecimentos que se seguem como se fosse uma carta para você – que você poderá usar, ou não, como bem lhe convier.

Veja, seu raciocínio faz sentido: uma máquina montada para matar 400 brasileiros seria muito mais fácil de ser punida do que outra que matou (por baixo!...) 20 mil argentinos. Ocorre que o raciocínio inverso também se sustenta: matar 20 mil num espaço de tempo bem menor, e numa população bem menor, é uma coisa tão traumática para o conjunto da sociedade que o repúdio necessário para uma ação punitiva é mais fácil de ser obtido. Não esqueça, além disso, que lá o repúdio foi magnificado pela guerra desastrosa das Malvinas, uma saída que os generais-assassinos imaginaram para sair do atoleiro imundo em que se meteram com sua guerra suja que foi suja mesmo! Perderam e saíram praticamente enxotados da Casa Rosada. Deram-se, na saída apressada, uma anistia unilateral que os argentinos nunca aceitaram.

Aqui as coisas foram bem diversas. Além de tudo o que já disse no meu artigo generosamente publicado no Cazzo (além do que também já disse num outro, bem maior, que foi igualmente publicado por vocês), lembraria que a nossa “distensão” primeiro e depois a “abertura” foram, no essencial, iniciativas do próprio regime, que ainda tinha muito poder para gastar quando Golbery e Geisel tomaram a decisão de afastar as forças armadas do exercício direto do poder. (Ver o que Elio Gaspari escreveu sobre o assunto.) Geisel não era um bonzinho; era até a favor da tortura em determinadas circunstâncias. Mas era sobretudo um prussiano que não tolerava a bagunça que tinha se instalado na caserna, com coronel-torturador sentindo-se superior a general-burocrata. O episódio Herzog, quando Geisel resolveu peitar seus “revolucionários sinceros mas radicais”, foi decisivo. Dele poderia ter resultado a própria queda de Geisel. A subida de um duro, Sylvio Frota, à presidência, como poderia ter acontecido, prolongaria a ditadura e o reinado tenebroso dos DOI-CODIs sabe-se lá até quando. Tudo isso foi em 76, quando a horripilante ditadura argentina mal começava e Pinochet estava no auge de todo o seu poder monocrático no Chile...

Como diria o poeta, “meninos, eu vi!”

A Lei de Anistia, aqui, foi negociada, sim. Num contexto extremamente desfavorável, mas houve muito debate e embates gloriosos e inesquecíveis. Todo mundo sabia, e praticamente todo mundo (estou “arredondando”, lógico) esteve de acordo com o fato desolador de que, frente à correlação de forças extremamente desfavorável, o preço que pagaríamos para termos a “abertura” de Figueiredo seria a anistia dos torturadores. Alguns desses não se conformaram e tentaram sabotar o projeto do presidente. A bomba do Riocentro foi parte desse conluio. Como às vezes a providência divina existe, a bomba explodiu no colo de um sargento que a estava preparando... Foi esmigalhado. Bem feito! A “abertura” seguiu e chegamos a Tancredo, que, através de Leônidas da Silva, seu general, assegurou aos militares que a lei não seria revista. Francamente, não acho “legal” mexer nisso agora. Agora, todo mundo é bravo, Jônatas. Naqueles tempos terríveis, essa não era uma qualidade tão espalhada...

(continua)

Le Cazzo disse...

(continuação)

Tenho horror de torturador. Em 1976, num contexto em que os porões provocavam Geisel e Golbery, uma “equipe” de São Paulo fez uma incursão em Aracaju e prendeu uma porção de gente, alguns amigos meus. Todos reapareceram uma semana depois com marcas de tortura. Um deles, um líder sindical, ficou cego! Isso foi uma coisa tão traumática para mim, que disso fiz um dos meus objetos permanentes de pesquisa, e produzi uma tese de doutorado. Ainda hoje escrevo sobre o assunto. Mas escrevo atento ao que certa vez escreveu Graciliano – que conheceu o horror dos porões da ditadura anterior, de Vargas , alertando para não exagerarmos na condenação ao que ele na época chamou de “pequenino fascismo tupinambá: se o fizermos, perderemos qualquer vestígio de autoridade e, quando formos verazes, ninguém nos dará crédito.” Isso está no monumental Memórias do Cárcere, “um momento da consciência humana”, como Werneck Sodré o qualificou.

É isso, meu caro amigo. Continuo aberto a outras indagações.

Abraço afetuoso,

Luciano.

Le Cazzo disse...

Oi, Luciano.

Obrigado pela resposta. Minhas considerações, não obstante, ainda permanecem a me inquietar. Valente, eu?!! Sou o contrário da coragem e da bravura. Mas que essa questão ainda surja atrelada a uma discussão sobre anistia, parece-me importante. Meu ponto continua sendo: não considero tão inquestionável uma acordo que se chega sob censura, sob o medo de recrudescimento da ditadura, com militar dando chave-de-braço em jornalista (e esse, diz-se agora, foi um de nossos heróis no caso do Rio Centro; valha-me Deus...), e um acordo que poderíamos chegar sem esses temores. Minha pergunta permanece: o que tememos hoje? Temos ao menos direito de falar sobre isso abertamente. Pois creio que precisamos punir quem mata 10 para que não tenhamos que suportar a morte de 400, para que depois destes não precisemos silenciar diante de 1.000, 10.000. E talvez isso seja parte de uma discussão importante, posto que ainda se tortura no Brasil. Abraço, Jonatas

Cynthia disse...

Lulu,

apesar de seus argumentos bem fundamentados, minha impressão geral é a de que somos de uma covardia institucional incrível. Isso ocorre em todos os níveis (vide universidade!!!), mas na esfera política, parece que o temor é que nossa frágil democracia desmorone sob o menor impacto. Como disse Jonatas em algum lugar, acordo feito sob a ameaça do fuzil é fácil...

Eu acho que ainda gostaria de ouvir mais sobre esse assunto e estamos pensando em um "Cazzo promove" sobre o tema, com a presença de ilustres colegas que possam contribuir com o debate. Talvez Artur pudesse ser um dos ilustres colegas, já que ele publicou uma notinha sobre o tema no BDP. O que acha?

Tâmara disse...

Pessoal,
Eu estou feliz porque o segundo texto de Luciano foi comentado. O primeiro passou no Cazzo quase em brancas nuvens. Ainda bem que a votação do STF põe a questão em dia.
Vou dizendo logo, estou com Luciano e não abro. Em seu primeiro texto eu fiquei meio cabreira quando ele fala que os milicos perderam. Em minha opinião,a votação do STF de agora é a demonstração de que eles não perderam. Mas também não ganharam. E acho que é preciso ao mesmo tempo distinguir e relacionar as dimensões do processo: julgamento da barba'rie, ana'lise da correlação de forças, avaliação do que podemos fazer agora em relação ao futuro (evitar barb'aries) Considero que Luciano faz isso com experiência, razão e sentimento - tudo o que buscamos nas ciências sociais, né?
Aquela barba'rie aconteceu;não ha' nada mais que possamos fazer para impedi-la. A solução foi feita a partir de uma certa correlação de forças. Ela implicou num compromisso institucional e, com 400 ou milhões de mortos, foi um compromisso institucional que nos resgatou. E' covarde? Acho que no's brasileiros temos realmente uma covardia de base (inclusive nas relações i'ntimas)mas, como Luciano disse mais ou menos no primeiro texto postado no Cazzo, às vezes é necessa'rio parar a coragem para salvar o mundo. Condenar velhos monstros não me parece que vai aumentar nossa democracia. Vai apenas nutrir o desejo do ressentimento - essse demônio das relações de poder. Por outro lado, continuo concordando com Luciano: precisamos resgatar a dignidade dos desaparecidos. Devemos fazer com que eles reapareçam. Mas isso não se fara' colocando esclerosados torturadores na prisão (aqui, penso em Israel e no pai's triste em que isso se transformou, vivendo em função de castigar o nazismo e justificar seu empreendimento colonizador para com os palestinos). E é isso. Abraço.

Artur Perrusi disse...

Parabéns a Luciano. Dois artigos bem argumentados sobre essa questão.

Minha posição é a seguinte: do ponto de vista ético, sou completamente a favor da revisão da Lei da Anistia.

Do ponto de vista político, são outros quinhentos (desculpe meu realismo político, logo eu, que detesto tanto isso).

Os militares, por motivos, inclusive, assinalados por Luciano, não saíram desmoralizados como os argentinos, nem mesmo sob uma correlação de forças desvantajosa como os chilenos. Nossa transição à democracia deu-se de forma diferente: depois da derrota do movimento Diretas-Já, o fim da ditadura foi negociado como uma "saída por cima", isto é, sem eleições diretas e com os militares e o partido civil da ditadura preservados politicamente (os grupos de poder da ditadura saíram inteiros do seu final, embora sem hegemonia política).

A transição foi baseada na conciliação tancredista, via Sarney. Sinceramente, até hoje sofremos as suas consequências – a constituição de 88 não conseguiu romper com todas as amarras dessa conciliação; vide o papel de “segurança nacional” das forças armadas, uma aberração inscrita no coração da constituição.

A força desses grupos civis e militares é grande, por isso não causou surpresa a reação histérica contra o PNDH3. Inclusive, a partir do governo Lula, a direita brasileira teve uma pequena reciclada e alguma articulação política, principalmente midiática, embora não tenha força partidária -- mesmo assim, acredito que a direita paute diversos pontos do programa tucano; aparentemente, por exemplo, há um silêncio sobre os direitos humanos.

Concordo totalmente com Luciano: a decisão do STF era óbvia. Pior: a decisão do STF isolou a luta por uma comissão da verdade que não implicava, necessariamente, a revisão da Lei da Anistia. A decisão foi uma derrota para a luta por uma comissão da verdade. Na minha opinião, houve um erro tático: a luta era pela formação da comissão da verdade e não pela revisão. Com a abertura dos arquivos, com os fatos históricos sendo revelados, seria muito mais fácil, posteriormente, lutar pela revisão da Lei da Anistia.

Digo isso tudo, baseando-me numa avaliação da correlação de força existente. Era muito improvável, até mesmo impossível, julgar os torturadores na atual conjuntura. Não falo somente do STF, mas também da pouca mobilização que gerou esse movimento de revisão. Ao contrário, gerou uma mobilização contrária, justamente dos grupos que se beneficiaram da Anistia: militares e civis, e suas organizações, da direita brasileira. A pressão foi tão grande que, até Dilma, “terrorista” e presa política da ditadura, foi contra a revisão.

Agora, é juntar os cacos e encontrar novas perspectivas para se formar uma comissão da verdade, se é que isso ainda é possível. A revisão da Lei da Anistia precisa de uma conjuntura favorável, isto é, de uma mudança na correlação de forças, logo, de um isolamento acentuado da direita brasileira (não vejo isso nesse momento). Desse ponto de vista, discordo de algumas posições da esquerda de que a Lei da Anistia já é um fato dado e incontornável; mas também discordo de que ela pode ser revisada imediatamente. Enfim, defendia que a revisão era o objetivo estratégico e a comissão da verdade, o passo tático necessário.

Anônimo disse...

Com as desculpas pela falta de originalidade, reproduzo, aqui o que foi escrito em outro Blog, mantido pelo jornalista e colunista do Correio Braziliense, Alon Feuerwerker. Faço-o apenas para deixar claro como é fácil transformar o tão desejado (e nunca alcançado) estado de direito democrático em mera figura de retórica:

"Qual o modo mais eficaz de evitar que a tortura volte a ser usada como arma de combate político no Brasil? Uns dirão “a punição exemplar dos torturadores”. Outros —como este colunista—, “a preservação rigorosa do estado de direito democrático”.

Quem torturou na ditadura merece ser punido? De um ângulo moral, não resta a menor dúvida. Assim como, de um ângulo estritamente moral, talvez o sujeito que violenta sexualmente e mata uma criança “mereça” o linchamento.

A sentença do Supremo Tribunal Federal esta semana, validando completamente a Lei de Anistia proposta pelo governo militar de João Figueiredo em 1979, lei negociada com a oposição e a sociedade civil da época e aprovada naquele mesmo ano pelo Congresso Nacional, tem este mérito: reafirma o estado de direito na plenitude.

Quando aqueles fatos aconteceram, a tortura não era catalogada na legislação como crime hediondo. Nem o sequestro. Aliás crime nenhum era. Nem havia a categoria. E o Brasil não era signatário dos textos internacionais que servem também de fundamento a quem pede agora punir os torturadores de 30 anos atrás. E tem o aspecto da prescrição. Todos pontos bem abordados nos votos dos juízes.

Assim, o tribunal estava diante de uma escolha: fazer apenas o juízo moral da tortura ou também aplicar a lei. Escolheu, e bem, o segundo caminho. A tortura foi condenada, mas a lei não foi desrespeitada. É doloroso ver torturadores impunes? Sim, mas é o preço a pagar. Seguir a lei quando ela nos beneficia é fácil. Assim como é confortável pedir ao STF que ignore a lei e passe a fazer juízos exclusivamente morais quando dela discordamos.

Outro vetor importante da sentença foi a reafirmação política da transição democrática, produto de muita luta e negociação naqueles anos. É algo bizarro que o STF tenha precisado tomar a si a tarefa. Um sintoma do caráter divisivo da política brasileira nestes tempos. Infelizmente, partícipes e herdeiros das correntes então contrárias ao caminho que a transição percorreu de 1978 a 1985 tentam hoje desqualificar aquele processo, para buscar dividendos políticos e eleitorais.

Políticos importantes hoje na ativa foram beneficiados pela Anistia. Se a política fosse um instituto construído a partir de juízos morais e da ética, deveriam prestar homenagem aos homens e mulheres que arrancaram da ditadura aquela conquista. Mas política é política. Desde então, parece convir mais a eles atacar os arquitetos e operários da transição democrática como gente que supostamente “conciliou” com o regime.

O que é apenas bobagem. Mas uma bobagem que manteve certo fôlego, até ser enterrada pelo STF na quarta-feira. Com a participação decisiva da maioria de ministros indicados pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva.

A sessão do STF talvez tenha marcado o final definitivo daquela transição, tecnicamente falando. Num país conhecido pela progressividade dos processos, este deve ter batido o recorde.

Verdade

Outro aspecto positivo da decisão do STF é ter ajudado a desobstruir a busca da verdade histórica. Arquivada a polêmica sobre a Anistia, as energias podem agora voltar-se para a procura de informações sobre os desaparecidos no combate contra a ditadura."

Cynthia disse...

Car@a anônim@,

adorei sua forma direta de colocar a questão. Sob o risco de ser mal interpretada, tenho minhas dúvidas de que uma linguagem exclusivamente baseada em "direitos" dê conta da questão da justiça, seja do prisma da distribuição, seja do reconhecimento. Vide o debate sobre o aborto que, sempre que se baseia no suposto "direito das mulheres", esbarra nos direitos do nascituro e chega a lugar nenhum. Um deslocamento para questões éticas (do tipo "ética do cuidado") é mais justo? Possivelmente, mas também não está isento de problemas e não pode ser colocado como substituto absoluto das questões de direito. Só não sei se a ideia de "punição exemplar" que você coloca em sua questão endereça a questão ética de forma adequada. Suspeito que não (vide os debates sobre a pena de morte).

Em resumo, continuo na mesma...

Abraço