sábado, 24 de julho de 2010

Scarlett, Refutador, Gollum e Smeagol: notas sobre conversações interiores (parte 2)



Refutador, em momento de intensa atividade mental


Cynthia Hamlin

No post anterior, considerei a possibilidade de que, diferentemente de Gollum/Smeagol, Artur/Refutador possuíam uma identidade de self, ou identidade pessoal. Por enquanto, deixarei em suspenso a questão de saber se Artur/Refutador constituem um self único ou se são, de fato, dois selves distintos, como parece acreditar Artur. No primeiro caso, o problema se transformaria na questão de saber “quem fala com quem” nas conversações interiores - e que Frédéric Vandenberghe (2010), num arroubo de inspiração DaMattiana, coloca nos termos “você sabe com quem está falando quando fala consigo mesmo?”. Esta questão foi trabalhada teoricamente nos três posts sobre a audição como metáfora para se pensar a reflexividade na obra de Archer (aqui, aqui e aqui). No segundo caso, isto é, no de Artur e Refutador serem de fato dois selves distintos, o problema deixaria o âmbito da sociologia para entrar no domínio da psiquiatria e, neste caso, deixo a Refutador a tarefa de efetuar o diagnóstico de Artur. Por ora, suspendamos o julgamento e concentremo-nos na teoria do self que deve guiar nossa análise.

Archer (2000a; 2000b) efetua uma distinção entre o nosso sentido de self (selfhood) e a nossa identidade de self (ou identidade pessoal). O primeiro refere-se à continuidade da nossa consciência, à faculdade de nos considerarmos como um mesmo ser ao longo do tempo e do espaço. O sentido de self é não apenas universal, mas também algo que compartilhamos com os animais superiores, que têm noções de suas formas e limites corporais, conseguem diferenciar entre eles próprios e outros objetos e detêm intencionalidade - como o cão que sabe que precisa desviar da árvore ao perseguir sua presa, ou o baratossauro que habita uma das salas da UFPB onde Artur dá aulas (aqui). Embora Artur não saiba disso, o baratão gigante espera pacientemente a hora de suas aulas fim de efetuar seus rasantes mortais. Longe de consistirem num vôo histérico e descontrolado, tais rasantes implicam num complexo sistema de navegação que foi especialmente desenvolvido a partir as interações entre o ambiente e seu corpo pouco aerodinâmico - tudo com o objetivo específico de perturbar as aulas de teoria social.

Isso significa que o sentido de self é pré-social e pré-linguístico, dependendo, conforme argumenta Merleau-Ponty, dos encontros entre nossos corpos e o ambiente, pois é a partir deles que naturalmente aprendemos a distinguir entre objeto/objeto, sujeito/objeto e sujeito/sujeito. Há, portanto, uma primazia da prática em relação à linguagem na forma como aprendemos a nos diferenciar de outros objetos ou, nos termos de Piaget, em nosso “descolamento referencial” de outros objetos (Archer 2000a: 60). Foi por isso que, antes de aprender a falar, Artur aprendeu que a chupeta que ele havia perdido durante o sono não era uma parte de seu corpo que havia desaparecido para todo o sempre, mas um objeto que conservava uma identidade distinta da sua e que talvez pudesse ser encontrado embaixo de seu travesseiro. (Já a distinção perrusiana entre Artur e Refutador, essa só pôde ser efetuada anos mais tarde, depois que ele aprendeu uma linguagem e pôde ler Bachelard, Moscovici e Foucault - mas isso ainda está em suspenso).

Sem um sentido de self, Artur não poderia ter desenvolvido sua identidade pessoal, que pode ser definida a partir das coisas com as quais ele se importa e que o torna um ser humano único. Como o resto de nós, ele consiste em um tipo de ser que Charles Taylor caracterizou como “grande avaliador”, diferindo de outros animais por ter a capacidade de conferir significado às três ordens que, segundo Archer, compõem a realidade humana: a natural, a prática e a social. As diferentes situações colocadas pelas três ordens assumem distintos “aspectos de significância” para ele, fazendo emergir emoções relacionadas ao seu bem-estar físico, na ordem natural, à sua competência performativa, na ordem prática, e à sua autoestima, na ordem social (Archer, 2003). Dado que ele precisa estabelecer práticas consideradas satisfatórias em cada uma das três ordens, ele deve definir quais as suas “preocupações últimas” (ou seja, aquilo que realmente importa para ele) e como suas outras preocupações subordinam-se e acomodam-se às primeiras, isto é, às últimas.

De forma geral, uma de nossas principais preocupações é com a nossa autoestima, que é garantida por meio de certos projetos relativos a carreira, família, atuação política, relações de amizade e de erotismo, etc. É justamente aí que entram Scarlett e Refutador. De um ponto de vista de suas preocupações relativas à ordem social, está claro que os dois não podem ser evocados sem que surja algum tipo de conflito, e talvez isso explique o fato de sua alma não ter suportado tamanha pressão durante a defesa de minha orientanda.

Mas aquele foi um caso extremo, pois a debandada de sua alma impossibilitou qualquer resquício de auto-monitoramento. Na maioria das vezes, a priorização e acomodação de suas preocupações é efetuada por meio de deliberações reflexivas nas quais ele alterna diferentes “fases” de seu Ego, estabelecendo uma relação dialógica entre um objeto (um “mim”, passado), um signo (um “Eu” presente) e um intérprete (um “Você” futuro). Como já afirmei em outro post, esta distinção é meramente analítica, caso contrário, teríamos uma reificação dessas fases, como parece ocorrer com Gollum/Smeagol (embora eles sejam interessantes do ponto de vista contra-factual porque não representam uma mera reificação de fases do self, mas operam uma verdadeira síntese do mim/eu/você em um “nós” - uma espécie de síndrome de personalidade múltipla na qual uma personalidade tem consciência da outra). Mas o ponto importante de ser retido é que a auto-reflexão envolve o tornar-se objeto para si mesmo, e isto não pode ser feito mediante uma cisão da consciência, conforme pressuposto no modelo introspectivo do sujeito cartesiano. Ao contrário, o auto-monitoramento de nossa vida mental e privada consiste num continuum que, como afirmei anteriormente (aqui), envolve desde premonições relativamente incoerentes, em seu nível mais baixo, até a articulação de sentenças inteiras, em seu nível mais alto.

E foi justamente isso que Artur fez quando externou sua conversação interior com Refutador, que representa nada menos que seu “mim” - um conjunto de hábitos e disposições (no caso, teóricas) ou, em termos peirceanos, o ponto final de ciclos semióticos anteriores aos seus questionamentos. Obviamente que um diálogo como aquele dificilmente pode ocorrer da forma como foi descrito, afinal de contas, nem mesmo Refutador conseguiria manter um grau de intencionalidade (no sentido fenomenológico) tão alto quanto o que está implicado ali. De fato, do ponto de vista privado, uma série de experiências distintas (premonições, intenções, desejos, sensações, imaginação etc.) interferem no processo, desviando nossa atenção e fazendo com que o nosso fluxo de consciência frequentemente deixe de ter uma direção clara ou um propósito definido. Mas é justamente por isso que o processo de escrita é especialmente útil para esclarecer nossos próprios pensamentos, sendo, talvez, a forma mais precisa de auto-monitoramento ou de auto-reflexão: ele possibilita um redirecionamento constante da atenção. Por esta razão, por mais que Artur repudie Refutador e tente expurgá-lo de sua mente tratando-o como um alterego demoníaco, só lhe resta recorrer a uma estratégia de defesa flaubertiana e anunciar ao mundo: Refutador c’est moi!



Referências

Archer, Margaret (2000 a). “Realismo e o Problema da Agência”. Estudos de Sociologia 6 (2), p 51-75. Recife, Ed. Universitária da UFPE.
________ (2000). Being Human: the problem of agency. Cambridge, Cambridge University Press.
________ (2003). Structure, Agency and the Internal Conversation. Cambridge, Cambridge University Press.
Vandenberghe, Frédéric (2010). Teoria Social Realista: um diálogo franco-britânico. Belo Horizonte e Rio de Janeiro, Ed. UFMG e Iuperj.

10 comentários:

Antônio Lino Jr disse...

O que lamento é não poder ter assitido a essa banca. Mas, em muito me confundo com o próprio Artur e seus selfs e refutações. Eu, colega de sala, sei o quão você nos desnuda com o exercício do pensar propriamente dito; dou por visto, você, hoje, inquestionavelmente ferramentada.Fosse possível começaria tudo de novo, isso é o que chamo de aula de teoria social, não os livrinhos de bolso de Platão e Aristóteles que comprava na antiga livro sete.

Anônimo disse...

Onde posso arrumar um porta-copos da Scarlett, aqui em Recife? Andei tendo conversações interiores sobre esse santo-graal desde a postagem anterior, mas sem êxito. Acabei discustindo comigo mesmo e ainda estou com o olho esquerdo inchado.

Grato!

Cynthia disse...

Obrigada, Lino. Mas os livrinhos de Platão e Aristóteles eram tão legais! Parece que não rolam mais nas aulas de teoria da graduação...

Cynthia disse...

Caro anônimo,

Essa tal de Scarlett é um atraso de vida. Saia dessa. Desde que ela apareceu na vida de Artur que o pobrezinho vive sofrendo pelos cantos, incapaz de desempenhar seus poderes reflexivos. Sem falar na sinusite crônica que ele desenvolveu por causa das secreções nasais constantes. Um horror.

Tâmara disse...

Cynthia,
Eu estou simpatizando com Archer - melhor dizendo, pois que não a conheco, da clareza e capacidade de convencimento que você tem para explicá-la. Mas se eu fosse ela escolheria um outro termo para uma das ordens da realidade humana, a prática, pois que esta parece-me ser o movimento de todas.
Será que seus companheiros Jonatas e Arthur vão tomar posicão diante da continuidade de sua argumentacão? Gostaria de lê-los. Coragem, meninos!
Quanto à saída do gorilão e a entrada do gorilinha, confesso que gostava um pouquinho mais do primeiro - que pelo menos manifestava ternura. Essa galegona aí parece mais perigosa do que Scarlett. Pobre gorilinha...
Meu próximo comentário ou colaboracão já virão da terra de Flaubert. Já estou com saudades do Brasil. Beijão

Cynthia disse...

Tâmara,

Para você ver como estamos bem acompanhadas: um, obsecado por Scarlett; o outro, por um gorila.

Quanto à sua sugestão de outro nome para a ordem prática, eu acho que o difícil seria pensar em um termo que pudesse lidar com a nossa relação com objetos materiais e ainda servir de mediação entre as potencialidades corpóreas dos seres humanos, na ordem natural, e as relações discursivas, na ordem social. Ela envolve, ainda, aquilo que Giddens chama de "consciência prática" (conhecimento prático, nos termos de Archer).

Boa viagem, Tâmara!

Tâmara disse...

Cynthia,
Pois é esse mesmo o meu problema com o nome: relação e mediação parecem-me diferentes de uma ordem. Isso talvez seja até cartesianismo/durkheimianismo e kantismo meus, mas, definir a prática (incluindo o conhecimento ou senso prático) como uma ordem da realidade humana, dá-me a impressão de que se está falando numa dimensão a priori independente do sujeito, mesmo se este e aquela interferem-se mutuamente. Melhor dizendo: se percebo o natural e o social como dimensões com as quais nos defrontamos/interagimos, só consigo perceber a prática e o conhecimento como a priori intrínsecos aos sujeitos, mesmo se sem conteúdos independentes do natural e social.
Estou dizendo besteira demais? Perdoe-me: acabei de perder o avião por pura debilidade minha e só viajo amanhã; imagine meu grau de desorientação!Beijão.

Cynthia disse...

Oi, Tâmara,

Eu creio que Archer usa o termo "ordem" no sentido de dimensão. É, numa aproximação grosseira, o mundo do trabalho material ou, em termos mais bourdieusianos, aquilo que diz respeito à hexis corporal. O conhecimento prático é adquirido por meio das nossas relações com a cultura material. Sendo assim, não é associal, como pode parecer à primeira vista, mas performativo, procedural (em vez de declarativo), implícito (dado que é codificado no corpo como habilidade), tácito e extensivo (no sentido promover extensões do corpo).

Acho que compreender a ordem prática como parte da realidade (que é uma totalidade, ainda que aberta) implica em fazer uma distinção entre a natureza, os objetos materiais feitos por nós (não-discursivos, para horror dos pós-estruturalistas, que concebem práticas como discursos) e o mundo das ideias, ou dos significados. Acho que essa distinção potencialmente evita dois problemas fundamentais: o antropocentrismo e o idealismo. Mas confesso que às vezes ela me soa excessivamente próxima à distinção de Habermas entre trabalho e linguagem.

Ah, eu sou especialista em perder vôos. Sei bem como é isso.

Beijos

Pedro disse...

O layout do blog ficou otimo!

Comecei a perguntar a algumas pessoas se conversam consigo mesmas e até agora todas dizem que sim.

Cynthia disse...

Pois é, Pedro. Só Artur é que é meio esquisito. Tão esquisito que votou 5 vezes na enquete...

Que bom que você gostou do novo layout. Agora só falta tirar o gorila.

Abç