sábado, 4 de dezembro de 2010

Triste partida de Fadela Amara ou: chiclete sociológico de uma trajetória nos movimentos sociais contemporâneos



Tâmara de Oliveira

O Cazzo é um blog reflexivo – ninguém pode negar. Comentando sobre a suposta solicitação de Jonatas Ferreira no sentido de que ele escrevesse drops ou até balas teóricas para o Cazzo (10.10.2010), Artur Perrusi, O Solicitado, chegou a comparar-se com Cynthia Hamlin e concluiu que esta fazia coisa mais fácil: chicletes teóricos. Pois desde esse dia eu tenho refletido sobre a pertinência de que essa produção de guloseimas seja democratizada e se estenda aos colaboradores do Cazzo. Sem entrar na discussão sobre o grau relativo de dificuldade da produção de balas, drops e chicletes (gosto de todos), resolvi realizar parcialmente a democratização, salpicando de teoria um fenômeno empírico e acreditando que o espírito democrático dos três editores torna supéflua uma mobilização reivindicativa. Digamos que será uma guloseima semi-sociológica. Porque é de uma trajetória nos movimentos sociais franceses que este texto pretende fazer um chiclete tutti frutti – já que de hortelã eu não gosto muito não.

a) Ingredientes ou momento descritivo: Fadela Amara é uma francesa de 46 anos que, como Zinedine Zidane, tem pais muçulmanos da Cabília (aquela região da Argélia que Bourdieu tornou sociologicamente famosa). Ela milita desde os anos 1980 no SOS Racisme – associação de luta contra o racismo, criada também nos anos 1980 a partir de uma marcha anti-racista organizada por dois padres católicos e por jovens com ascendência nas ex-colônias francesas, mas que desenvolveu-se, enquanto organização associativa, sob a influência do Partido Socialista francês. A partir do SOS Racisme e de um coletivo federado por essa associação (La Fédération Nationale des Maisons des Potes), Fadela Amara vai posteriormente concentrar-se sobre os problemas da condição das mulheres das periferias das cidades francesas – progressivamente sobrerrepresentadas por populações com ascendência nas ex-colônias e de confissão muçulmana.

10 comentários:

Cynthia disse...

Grande post, Tâmara! Um exemplo perfeito de como as identidades são forjadas a ferro e fogo nos interstícios das lutas de poder. Agora, na minha leiga opinião, complicado sacrificar de forma tão radical a questão étnica em favor da questão de gênero ao se aliar a um governo que anda beirando as raias do genocídio, não?

Artur disse...

Foi uma jujubona, seu post, Tâmara -- muito bom!

Mutatis mutandis, penso no exemplo de Soninha, antiga vereadora do PT, que foi parar no PPS e num serrismo desgraçado (foi prefeita de Kassab, do DEM, e coordenadora política de Serra). Há um descolamento entre uma política cultural (ecologia, reforma urbana, legalização da maconha, casamento gay, discriminalização do aborto, antigas políticas de Soninha, quase todas no campo dos valores) e uma política partidária -- pumba! apoia uma candidatura que incorporou e avivou o conservadorismo tupiniquim.

Ecologistas já fizeram isso: pontas de lança de movimentos culturais que, de repente, aliam-se, partidariamente, com o conservadorismo político.

Um feminismo que se alia a Sarkozy. Pois é, queria entender a lógica desse descolamento -- não é original; parece que tem algum padrão, sei lá.

Tâmara disse...

Cynthia e Artur,
Que bom que vocês gostaram.
E a verdade é que Fadela Amara e seu movimento são um novelo de du'vidas para minha pobre cabecinha.
Antes de tudo, Cytnhia: devo corrigir uma imppressão que deve ser resultante de minha alma de estrangeira sofrendo as poli'ticas de imigração sarkozistas: não, o governo Sarkozy não esta' à beira do genoci'dio. Ele é parte de uma tendência xeno'foba forte na Europa contemporânea, mas a Holanda e a Suiça vão muito mais longe nisso e, mesmo assim, não se poderia aproximar nenhum desses governos da idéia de genoci'dio. E talvez seja mais desesperante por isso: existe uma banalização da xenofobia, uma naturalização de discursos de extrema direita inclusive por partidos que nunca foram realmente xeno'fobos; tudo isso mais ou menos institucionalizado pelos governos desses pai'ses, logo, trata-se de um processo com muito mais chances de legitimidade social do que se fossem pra'ticas genocida'rias.
Agora, Artur: quem sabe a gente pudesse buscar esse padrão de deslocamento em dois componentes do horizonte socio-poli'tico francês: o universalismo à la francesa; o elitismo da composição social de seus dois partidos principais. Assim, por um lado ha' uma adequação de sentido entre o feminismo dos socialistas ("esquerda") e o dos republicanos ("direita") que poderia proporcionar coerência interna a esse deslocamento de Fadela Amara e de seu movimento para a direita. Por outro lado, existe sim uma descepção crônica de militantes socialistas com ascendência imigrante para com o partido socialista francês: eles sentem-se muitas vezes como "eternos pregadores de cartazes", sem acesso às posições importantes no partido. Ora, os republicanos aproveitaram estrategicamente esse espaço de decepção, outros deslocamentos houveram - piorando o quadro de confusão dos socialistas franceses atualmente. E a gente precisa lembrar, sociologicamente, que nem todos os filhos/netos de imigrantes pertecem às classes populares; muitos identificam-se com um horizonte de classe média, podendo posicionar-se à direita do espectro poli'tico sem que isso signifique um deslocamento. Não é o caso de Fadela Amara, mas esta entra no quadro dos decepcionados com a esquerda. Finalmente, apesar de minha simpatia sociolo'gica por sua triste partida, acho que ela virou um verdadeiro animal poli'tico: tende agora a buscar um outro espaço partida'rio que nunca se consolidou na França mas que paprece ter mais chances no presente: o de um centro-direita que assimila relativamente o multiculturalismo - ou pelo menos um interculturalismo.
Acho que deu pra notar o quanto isso tudo deixa-me confusa. Tanto mehor: isso estimula a continuidade de minha leituras. Abração

Cynthia disse...

É verdade, Tâmara, genocídio é um termo muito forte, mas que a política do Sarkozy em relação aos Roma tem um cheiro forte de faxina étnica, isso tem. Neste caso, é de se perguntar se a posição universalista que a Amara defende não fica comprometida. O que me parece mais estranho em relação a ela é sua origem nos movimentos antirracistas: isso, no meu entender, colocaria um limite claro em sua associação com um governo como o do Sarkozy.

Tâmara disse...

Menina!
No que diz respeito aos Roms, a coisa foi horri'vel mesmo, ainda mais porque é impossi'vel para qualquer um não lembrar do nazismo: os Roms são ciganos...Mas são da comunidade européia, logo, o governo não pode não recebê-los em seu territo'rio, logo, estabeleceram um discurso que so' pode lembrar o de uma limpeza étnica.
Quanto a Amara: o limite é tão claro que outro filho/neto de a'rabe (que nunca esteve na esquerda) abandonou o sarkozismo rapidinho. Mas penso realmente que Sarkozy não é um verdadeiro racista; seu governo instrumentaliza a xenofobia quando acha que precisa, em nome também dos "bons a'rabes, bons negros", etc., todos "franceses universalistas do bem". Até onde eu sei, por exemplo, o de Sarkozy foi o primeiro governo da Quinta Repu'blica que incluiu filhos/netos de imigrantes no ministério...E' verdade que nessa u'ltima recomposição todos eles foram defenestrados, mas por conta de pressões dos adversa'rios internos de Sarkozy, de sua fragilidade que fez as velhas raposas do partido reassumirem o poder.

Cynthia disse...

Mas Tâmara, será que existe racismo que não seja fruto da instrumentalização de alguma questão política?

Tâmara disse...

Cynthia,
Acho que tem sim. Ou melhor, acho que existem dimensões diferentes do racismo. Estou aqui pensando em representações sociais, em sistemas de classificação social. As questões poli'ticas tem o potencial de transformar algumas ou todas essas dimensões em orientação social visi'vel ou dominante, mas não acho que sejam elas que o criam ou não, isso depende do contexto das relações de alteridade numa dada sociedade.
Melhor dizendo, num sentido amplo, racismo é um relação de dominação, logo, imediatamente poli'tica. E a racialização dos sistemas de classificação social é genealogicamente articulada aos empreendimentos poli'tico-cienti'ficos da colonização (filme forte e recente sobre isso: Vénus Noire, do francês Abdelatif Kechiche). Mas como os grupos e atores sociais interiorizam e agem para com as classificações racistas, isso é uma coisa que não depende so' de questões poli'ticas (no sentido de sistemas poli'ticos ou de governo - que é do que eu falava).
Sendo mais clara e precisa: Sarkozy e seus aliados tem como horizonte simbo'lico o dinheiro, o vil metal, concordo aqui com o casal de socio'logos bourdieusianos que define esse governo como marcadamente classista. O discurso de seu governo se acomoda muito bem, acho, com um modelo liberal de democracia "racial": o da formação de elites de cada grupo racialmente classificado, da inserção dessas sub-elites no quardo amplo das elites do pai's. Dai' sua "abertura" à diversidade governamental, desde que as portas fechem-se para novas levas de imigrantes. Por exemplo, foi no governo Sarkozy que se falou mais seriamente em quotas étnicas...Da' para entender agora porque uma filha de muçulmano pôde entrar num governo assim? Alias', ela assumiu um posto voltado às populações periféricas, não à questão feminina especificamente. Isso não elimina o paradoxo de continuar num governo que, apesar da abertura, institucionaliza discursos e poli'ticas racistas. Apenas esclarece como Fadela Amara pôde ali entrar. Como também torna possi'vel a hipo'tese de que agora que ela foi defenestrada, vai provavelmente buscar um espaço poli'tico entre a direita e a esquerda francesas; não da' mais para voltar ao seu mundo socialista de antes.
Acho que é isso.

Cynthia disse...

Ah, estou louca para ver este filme, que já foi sugerido por aqui por uma de nossas leitoras (se não me engano, o diretor ou diretora é de origem tunisiana). O próximo número da Revista de Estudos Feministas publicará um artigo meu e de Jonatas sobre a construção da identidade/alteridade de mulheres e negros, cujo estudo de caso é justamente a Sara Baartman (a Vênus Hotentote). Quando sair a gente posta por aqui (embora o próprio artigo tenha sido gestado aqui no Cazzo).

E gostei da sua análise da situação francesa, com todos os seus paradoxos e ambiguidades. Mas não saberia comentar sobre as especificidades do governo de Sarkozy, embora minha antipatia (mezzo informada) continue.

Tâmara disse...

Falando em cinema: Abdelatif Kechiche é menino, nasceu na Tuni'sia mas chegou na França aos seis anos. Acho até que tem uns ares de Jessé Souza. E' um diretor que me agrada cada vez mais. Vénus Noire é daqueles filmes que deixam a gente com todo o mal-estar possi'vel sobre o estado do mundo. Um bom -mal-estar, diria eu.
Aguardo o artigo de vocês por aqui. Abraço, Tâmara

Cynthia disse...

Claro, Abdelatif! Nome de menino!

Eu vi o trailer no iútube e parece bem interessante.

Bjs