sábado, 30 de outubro de 2010

Viva Pedrinho, Narizinho, Emília e tia Nastácia


Sítio do Pica-Pau Amarelo, por Arthur Milan Parreira (aqui)

O Conselho Nacional de Educação considerou "racista" a obra Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, que poderá ser banida das escolas públicas brasileiras (veja post scriptum, abaixo). Talvez fosse uma boa ideia sugerir ao MEC que também banisse das universidades autores como Rousseau, Marx, Freud, Nietzsche, Durkheim, Gilberto Freyre (vai sobrar alguém?) - já que todos podem ser acusados de divulgar estereótipos do senso comum de sua época acerca de mulheres e minorias raciais e étnicas. Melhor: façamos como Rui Barbosa, que mandou queimar os documentos relativos à escravidão no Brasil. Aproveitemos o clima das eleições e façamos uma grande fogueira santa, no melhor estilo inquisitorial. Alternativamente, façamos como o Careca e apelemos para o Gilberto Gil.

Cynthia

Li na Folha e na coluna do Marcos Guterman no Estadão que o Conselho Nacional de Educação recomendou que o livro “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, não fosse distribuído a escolas públicas ou, se for, que venha acompanhado de um aviso de que se trata de obra “racista".

Pô, que sacanagem. Gilberto Gil, que foi Ministro da Cultura e não pode ser chamado de racista por nenhum burocrata idiota, bem que poderia vir a público passar um pito nos caras que fizeram essa recomendação. No mínimo porque cantou o Sítio do Picapau Amarelo para mim e toda a meninada dos anos setenta.


As bobagens do correção política começam a chegar nas prateleiras dos já escassos clássicos brasileiros com as já conhecidas excelentes intenções que levam ao exílio de títulos e depois à queima de livros em praças públicas. Nessa toada, "A Moreninha" terá de trocar de nome para "A levemente bronzeada" só para não ferir nenhuma suscetibilidade. A Escrava Isaura não poderá ser mais implacavelmente perseguida por aquele ator da Globo, o Rubens de Falco, e sumirá das prateleiras por evocar a imagem da Lucélia Santos, ao invés de alguma outra branquela menos estrábica. Desconfio que Guimarães Rosa também será gravemente atingido pela onda politicamente correta, afinal de contas o grande drama das veredas de Riobaldo é amar Diadorim sem saber que ela finge que é homem só para poder andar junto com a jagunçada, matar Hermógenes e vingar o pai. "Riobaldo pensa que é gay e não existe nenhum problema nisso", alguém ainda vai alegar, antes que o livro seja qualificado de homofóbico e de apologia ao chapéu de couro.


Mas é no campo da música que estaremos fritos. Marchinhas de Carnaval terão versos inteiros substituídos. Ninguém mais vai poder cantar que o cabelo da afrodescendente não nega que ela procede do outro continente. Estrofes dos axés bahianos dos anos 80 serão banidos das discotecas. Não será possível dizer olha a afrodescendente do cabelo "hard", que não gosta de pentear, quando passa na boca do tubo, o grande afro-brasileiro começa a gritar, pega ela aí, pega ela aí, pra quê, pra passar batom, de que cor, de violeta, na boca e na boca do céu...


E sobretudo, ficaremos sem escutar aquele clássico dos clássicos, do tempo da lambada, que começava assim: tem, tem, tem, tem dois neguinho, tem, tem, tem, tem dois neguinho, um morava na Jamaica, outro mora no Brasil, um chamava Bob Marley, outro é Gilberto Gil...




Post Scriptum, em 31/10/2010:

Como diz o Mia Couto, “meia culpa, meia máxima culpa”: contrariamente ao que ajudei a divulgar aqui, a estória não é bem assim. O documento redigido pelo Conselho Nacional de Educação emite parecer sobre denúncia efetuada por Antônio Gomes Costa Neto “no sentido de se abster a Secretaria de Estado da Educação do Distrito Federal de utilizar livros, material didático ou qualquer outra forma de expressão que, em tese, contenham expressões de prática de racismo cultural, institucional ou individual na Educação Básica e na Educação Superior do Distrito Federal”. O parecer, que aguarda homologação, considera que a denúncia está em consonância com os critérios de seleção do próprio MEC para as obras que deverão compor os acervos das escolas e que se baseiam na “qualidade textual, a adequação temática, a ausência de preconceitos, estereótipos ou doutrinações, a qualidade gráfica e o potencial de leitura considerando o público-alvo”. Com base nisso o CNE, propõe as seguintes ações:
a) a necessária indução de política pública pelo Governo do Distrito Federal junto às instituições do ensino superior – e aqui acrescenta-se, também, de Educação Básica – com vistas a formar professores que sejam capazes de lidar pedagogicamente e criticamente com o tipo de situação narrada pelo requerente, a saber, obras consideradas clássicas presentes na biblioteca das escolas que apresentem estereótipos raciais. Nesse caso, serão sujeitos dessas políticas não só os docentes da rede pública de ensino, mas, também, aqueles que atuam na rede particular. (…)
b) cabe à Coordenação-Geral de Material Didático do MEC cumprir com os critérios por ela mesma estabelecidos na avaliação dos livros indicados para o PNBE, de que os mesmos primem pela ausência de preconceitos, estereótipos, não selecionando obras clássicas ou contemporâneas com tal teor;
c) caso algumas das obras selecionadas pelos especialistas, e que componham o acervo do PNBE, ainda apresentem preconceitos e estereótipos, tais como aqueles que foram denunciados pelo Sr. Antônio Gomes Costa Neto e pela Ouvidoria da SEPPIR, a Coordenação-Geral de Material Didático e a Secretaria de Educação Básica do MEC deverão exigir da editora responsável pela publicação a inserção no texto de apresentação de uma nota explicativa e de esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos raciais na literatura. Esta providência deverá ser solicitada em relação ao livro Caçadas de Pedrinho e deverá ser extensiva a todas as obras literárias que se encontrem em situação semelhante. (…)

Justíssimo. E obrigada ao Joselito, por ter enviado o link para o site do Sérgio Leo, e ao próprio, por ter tido mais juízo do que eu e desconfiado da notícia.

Cynthia

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Sugata Mitra e o projeto buraco na parede



Em 1999, Sugatra Mitra e seus colegas fizeram um buraco no muro de uma favela em Nova Deli, instalaram um computador conectado à internet e o deixaram lá (com uma câmera oculta que filmava a área). O que ele observou foram crianças da favela brincando com o computador e, no processo, aprendendo a usá-lo, a entrar na internet e, depois, ensinando umas às outras.

Nos anos seguintes, eles replicaram o experimento em outras partes da India, urbana e rural, com resultados muito semelhantes, desafiando algumas das noções centrais da educação formal. O "projeto buraco na parede" mostra que, mesmo na ausência de qualquer influência direta de um professor, um ambiente que estimula a curiosidade pode levar ao conhecimento por meio da autoaprendizagem e do compartilhamento entre colegas. Mitra, hoje um professor de tecnologia educacional na Universidade de Lancaster, Reino Unido, chama isso de "educação minimamente invasiva". (Informações traduzidas do site do TED).

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Veto



Artur Perrusi

No post anterior, fiz a crítica a uma entrevista de uma bióloga. Acusei-a de reducionismo e de naturalização. Foi uma crítica dura, embora não se compare com o arremesso de uma bolinha de papel. Agora, faço o contrário e critico a ojeriza que têm muitos sociólogos em relação à biologia, em particular a biologia evolutiva. Muitas vezes, há um veto, inscrito no âmago da ciência social, em discutir, por exemplo, as relações entre biologia e sociologia. Não há diálogo, e sim separação e distância. Defendo, como verão, durante a leitura, uma posição diferente.

No fundo, o biologismo tem sua contrapartida no sociologismo, isto é, a subsunção da biologia e da psicologia à sociologia. A psicologia, coitada, praticamente desaparece, virando no máximo uma "psicologia social". Cá entre nós, se a biologia é imperialista, a sociologia gosta de pirataria. Por isso, defendo o diálogo multidisciplinar; talvez, é a minha esperança, ocorra um controle das extrapolações de ambos os lados. Nas minhas aulas, por exemplo, faço como Norbert Elias e apareço com um crânio humano, mostrando aos futuros cientistas sociais que, afinal e por incrível que pareça, temos um corpo, um esqueleto e somos, sem carne, assustadores (brincadeirinha!).

E, se desejo o diálogo, defendo que o mesmo implique dois movimentos, aparentemente, contraditórios: 1) a delimitação de fronteiras disciplinares (cada macaco no seu galho) e 2) a demonstração de que as fronteiras são porosas e, algumas vezes, não existem (todo macaco gosta de banana). Sim, não nego o paradoxo, mas é assim que funcionam os primatas.

Enfim, na discussão abaixo, remeto os leitores a partes de um antigo artigo, em que abordo a questão. Quem quiser ler o artigo inteiro, cujo objeto é a concepção da técnica em Leroi-Gourhan, é só clicar aqui.


segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Exclusão social intrauterina... o quê?!


Mulher estressada? Cuidado com seus filhos.

Artur Perrusi

A exclusão social começa no útero da mãe. A afirmação é peremptória. E preocupante para os cientistas sociais que, já tão desvalorizados profissionalmente, terão a concorrência, agora, de biólogos, obstetras e ginecologistas. No futuro, ocuparão todos os GTs da Anpocs. Claro, há um porém, aqui, pois a experiência, para demonstrar a hipótese da exclusão social intrauteriana, foi realizada em ratos.

Murídeos? Sim, dos ratos aos humanos, e temos um pequeno salto da biologia à vulgarização científica. O reducionismo chega a ser hilário; mas, do ponto de vista da divulgação científica, é um desastre. Porém, não quero culpar o nascente jornalismo científico brasileiro pela vulgarização e pelo reducionismo; na verdade, o reducionismo, durante a entrevista, foi comandado pela bióloga, responsável pela pesquisa.

Antes, contudo, será interessante escutar a entrevista; depois, voltamos às observações. Escutem aqui:
Exclusão social intrauterina

Alguns fatores que prejudicam a inclusão dos indivíduos na sociedade podem ter início ainda no útero materno. Pesquisa brasileira mostrou em ratos que o estresse e a deficiência nutricional da mãe podem causar problemas físicos e psicológicos na vida futura dos fetos. Para falar sobre o estudo, o Estúdio CH recebe a bióloga Patrícia Aline Boer, da Unesp.

Segundo Boer, pesquisadora do Departamento de Morfologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Botucatu, passar por situações de estresse durante a gestação pode levar ao surgimento de alterações na formação de órgãos e sistemas do feto – entre eles, o sistema nervoso central, os rins e os vasos sanguíneos – que permanecem até a vida adulta.

Em entrevista a Fred Furtado, ela mostra como sua equipe reproduziu condições de estresse nutricional e psicológico nas ratas e explica os mecanismos bioquímicos capazes de provocar essas alterações no desenvolvimento do feto.

Boer diz que as consequências dessas alterações são a formação de indivíduos mais estressados e ansiosos, o aumento da pressão arterial na idade adulta, problemas cardíacos e até maior propensão ao uso de drogas e à depressão.

A pesquisadora fala ainda sobre outros estudos que mostram os efeitos do estresse durante a gestação e a amamentação e até do cuidado com a prole sobre o desenvolvimento físico, mental e psicológico e o perfil comportamental do adulto.
Sinceramente, não tenho muito saco, nesse momento, em fazer uma análise aprofundada das colonizações biológicas nas ciências sociais. Diria que os reducionismos, realizados pela bióloga, são um fenômeno bem conhecido pelas... ciências sociais. É um processo que podemos chamar de “naturalização”. Atualmente, um dos discursos legitimadores da sociedade é a ciência, e uma das ciências mais influentes, na formação de representações sociais sobre o mundo, é a biologia – a psicologia, também, tem essa importância. Na verdade, percebo duas manias modernas que enquadram os valores e o mundo; temos a tendência a des-moralizar os valores, via a biologia, e a des-socializar (no fundo, individualizar) os comportamentos, via a psicologia. Não causa surpresa que as ciências sociais sejam tão desvalorizadas -- aqui, não me refiro à sua desvalorização como profissão, e sim como saber científico. Acho tais temas fascinantes e espero, um dia, voltar a discuti-los com mais calma.

Ultimamente, inclusive, a maior vítima da naturalização é o campo polimorfo da sexualidade. Além de uma sempiterna confusão entre sexo e gênero, há uma naturalização da homossexualidade, por exemplo, quando da procura compulsiva pelo gene gay. A procura da determinação genética da homossexualidade serve como recurso discursivo, procurando uma normalização da questão. Assim, se é natural, logo, é normal, para determinados setores do movimento gay; se é natural, logo, é uma doença que pode ser tratada, para o fundamentalismo cristão. A naturalização é um recurso prático e discursivo que legitima e procura adesão no senso comum, mas não tem monopólio ideológico.

Voltando à entrevista, a biólogoa produz uma série de reducionismos que, no fundo, não passam de subsunções. A psicologia é, por exemplo, subsumida à biologia. E as ciências sociais? Há uma cadeia de determinismos, inscrita numa hierarquia científica, tornando a ciência social tão sobredeterminada por outras ciências que, simplesmente, não aparece ou não existe, como tal. Diversas questões, que seriam passíveis de esclarecimento pelo conhecimento sociológico, tomam outro rumo explicativo, capturadas por uma extrapolação biológica que vai bem além de seu campo cognoscitivo. Pra que, afinal, empregar um conhecimento que é apenas um “episaber”, depois das óbvias e necessárias reduções, da biologia? Querem um conhecimento realmente científico? Procurem a sociobiologia!

A bióloga, além de patrocinar reducionismos, vai mais além: como acontece frequentemente na naturalização do mundo, há a defesa de uma biopolítica. Da biologia, passando pela medicina, a cadeia de reduções termina na postulação, para o bem ou para o mal, de uma política pública; em suma, a ciência torna-se a base de uma biopolítica – dos ratos à gestão do risco da gestação humana. Aliás, aqui, estamos diante de um problema sociológico, bem estudado no campo das ciências sociais. Muitas vezes, a naturalização tem como consequência um controle social – no caso, o controle absoluto da gestação pela medicina –, baseado na gestão do risco, justamente o risco, essa categoria de valor fundamental na vida social contemporânea, que ordena moralmente o mundo e é uma das bases da biopolítica.

De todo modo, há muita platitude na entrevista. Ainda acho que a bióloga deveria ler “A geografia da fome” de Josué de Castro e, depois, toda uma bibliografia, no campo da ciência social, a respeito do seu objeto – as consequências sociais da desnutrição e do estresse na esfera do trabalho, por exemplo. A bióloga evitaria os truísmos, sem dúvida. Pelo menos, prescindiria das sevícias em ratinhos para deduzir algo sobre o mundo social dos humanos.

Mas a bióloga está tão obnubilada pelo seu biologismo que não se importa em dizer exageros, do tipo “acreditou-se que o genoma determinasse todas as características de um ser”. O biologismo é uma biologia vulgar. Nunca foi consenso, mesmo na genética, esse fundamentalismo genético. A bióloga critica o fundamentalismo genético apenas como recurso retórico para poder passar melhor seu reducionismo, agora suavizado como “epigenética”. Vai ver que a epigenética é uma genética com face humana; porém, continua redutora e extremamente simplista nas extrapolações. Por meio da epigenética, pode-se jogar no lixo, por exemplo, noções como “estilo de vida”, pois a vida embrionária explicaria bem melhor diversos comportamento sociais – do útero à vida social, eis um belo pulo explicativo.

Assim, segundo a bióloga e estudos absolutamente comprobatórios, mulheres gestantes, que passaram estresse na derrubada das torres gêmeas, no 11 de setembro americano, tiveram crianças com problemas afetivos e com dificuldades no aprendizado; provavelmente, as crianças ficaram, também, extremamente chatas (essa extrapolação é minha, baseada em muita reflexão psicossocial). Inclusive, a partir de agora, encontrando uma criança ansiosa e chata, culpabilizarei a mãe da pequena criatura – quem manda não ter controlado o risco de estresse embrionário durante o período de gestação?

Afinal, como afirmou a bióloga, a falta de cuidado na gestação – mães que trabalham e se estressam no trabalho, por exemplo – está criando uma população de humanos que está sendo “programada” (sic) para ser estressada. Um possível estresse dos infantes não seria produto das suas condições de vida e sim resultado direto da gestação. Somente um controle biomédico da gestação evitaria o estresse da gestante. Claro, haveria a criação de políticas públicas, algumas bem interessantes, implicando alguns direitos reprodutivos; mas, duvido muito que o controle da gestação implique o controle da ansiedade infantil. Talvez, a vacinação embrionária antiestresse, por meio de injeções intrauterinas de ansiolíticos, possa ser uma ideia factível (pensei nisso, agora) ou, ainda, o controle do estresse infantil por meio de outras biotécnicas, como por exemplo: o uso de ansiolíticos na mamadeira ou no mingau. A felicidade química pode ser usada para acalmar os pequenos monstrinhos, tão ligados?!

Mas, é inegável, há momentos engraçados na entrevista. A biologia vulgar tem lá seus momentos cômicos. Descobri que quanto mais carinhosa a ratinha mãe com suas filhas, por exemplo, mais cheia de frescura será a ratinha, ops!, desculpem aí, mais seletiva e exigente será a dita-cuja, sexualmente falando.

Bem... er... se a bióloga permite-se a extrapolações, posso fazer o mesmo. Por que não?! Tudo é possível nesse mundo velho e enfadado. Posso perder a cabeça e produzir uma biologia sociológica.

Nesse sentido, no mundo social dos humanos, o problema do pudor feminino ou da frescura, como queiram, pode ser explicado pela educação carinhosa das mães. Quando mais carinho, mas seleção sexual. Aparentemente, a indução do carinho materno para o melindre sexual é de gênero, isto é, diz respeito às mulheres. Há estudos americanos com ratos mostrando mães carinhosas que deixaram os ratinhos incompatíveis com uma vida sexual roedora normal, ocorrendo uma assexualização de suas vidas sociais. Posso dizer que, entre os machos humanos, o efeito é o mesmo, o que explicaria o desejo masculino de celibato. Assim, mais um mistério sociológico é desvendado pela biologia sociológica: o carinho materno determinaria, por exemplo, a escolha dos padres por uma vida ascética e sem sexo -- o ascetismo religioso, logo, a assexualização do mundo intra-mundano, como efeito social e involuntário do desvelo materno.

(E a pedofilia católica? Bem, os ratos não explicam tudo. Talvez, experiências com porcos e chimpanzés desvendassem essa palpitante questão)

Há outras afirmações engraçadas na entrevista. Por exemplo: nós somos o que comemos? Pergunta a bióloga. Ora, somos o que comemos mais o que comeram nossas mães durante a gestação... Tenho calafrios só de pensar em perguntar à minha mãe o que comeu durante minha gestação. Pena que eu tenha medo, pois, com a resposta, entenderia meu habitus e faria uma socioanálise, tipo aquela preconizada por Bourdieu (aliás, o que comeu sua mãe?), de meu trabalho como sociólogo.

Mas, paro por aqui, pois faria extrapolações sociológicas incompatíveis com o decoro desse blog acadêmico. Já estou ruborizado só de pensar nisso...

sábado, 23 de outubro de 2010

Entre a Inclusão e a Democracia Digital: a atuação do Estado e do terceiro setor em comunidades pobres da Região Metropolitana do Recife



Jonatas Ferreira e Maria Eduarda da Mota Rocha

Introdução


Na análise da desigualdade, as ciências sociais têm operado ao longo dos anos vários recortes, tais como renda, etnia, acesso ao trabalho, participação política. A partir da segunda metade do século XX, com o surgimento das novas tecnologias de informação e comunicação, especificamente computadores pessoais, Internet, mecanismos portáteis de armazenamento de dados, como pendrives, ipods, CDs regraváveis, entre tantas outras possibilidades postas pela tecnologia digital, uma nova forma de desigualdade surgiu. A acumulação histórica de capitais econômicos, culturais e sociais dos diversos atores sociais, como era de se esperar, vem determinando padrões qualitativamente diferenciados de acesso a estes recursos. Não parece casual, portanto, que em 2007 apenas 24% dos domicílios brasileiros tivessem computador – desse total, apenas 3% representavam domicílios com renda até R$ 380, valor que alcança os 72% quando consideramos domicílios com renda igual ou superior R$ 3.801. O acesso à Internet traz à tona uma realidade ainda mais constrangedora: apenas 1% das famílias que sobrevivem com até um salário mínimo tinham acesso à grande rede. Em geral, esse problema tem sido tratado pelas políticas públicas a partir de uma série de conceitos que convergem para as idéias polares de ‘exclusão’ e ‘inclusão digital’. O ponto de partida desse tipo de abordagem é a idéia de digital divide, tal como formulada pela National Telecomunications and Information Administration, ainda na década de 90. A partir dessa perspectiva, a solução para o problema da desigualdade se apresenta como um percurso que os atores precisam fazer de um lugar vazio, de uma tabula rasa, para outro de prosperidade, numa clara reatualização da visão dos atores em posição subalterna como seres faltantes.


Ora, esse tipo de visão tem uma penetração significativa nas ciências sociais, bastando considerar a maneira como a tradição marxista, mas não apenas ela, percebeu ao longo dos anos o papel de forças sociais não diretamente ligadas ao processo produtivo. Visão semelhante dos mais pobres como “despossuídos” aparece na idéia bourdiana de “arbitrário cultural”, em que as práticas de consumo dos dominados são avaliadas sempre em função de uma hierarquia unificada cujo cume e eixo moral são necessariamente os gostos das classes dominantes. Em função deles as práticas culturais subalternas aparecem como imitações mal-sucedidas. É certo que tal perspectiva pode ser contrastada com propostas mais matizadas, como a de Alba Zaluar, ou a de Vera Telles e sua conceituação da pobreza como “experiência da liminaridade”, em que o esforço para superar uma definição puramente negativa da pobreza como falta não flerta com uma visão populista muitas vezes subjacente à celebração das competências das classes dominadas. Críticos das implicações políticas trazidas pela idéia de exclusão digital, tais como Mark Warshauer, Henry Jenkins ou Jeffrey Young1 acreditam que a “retórica da exclusão digital mantém aberta a divisão entre usuários de ferramenta civilizados e não usuários incivilizados. Bem intencionada como iniciativa política, ela pode propiciar a marginalização e ser fonte de privilégios em seus próprios termos”. Ainda assim, no tratamento conceitual e político da desigualdade digital, a idéia de “exclusão” continua presente.

[Esse texto foi publicado na íntegra na revista eletrônica Liinc em Revista. Click aqui para baixar todo o texto em PDF]

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Vargas Llosa e o Nobel



Fernando da Mota Lima

Vargas foi enfim agraciado com o Nobel de Literatura, o que é de justiça, ainda que tardia. Sabemos que o Nobel com frequência sobrepõe critérios políticos aos estéticos, que no meu entender deveriam ser prevalecentes. Isso fica evidente quando acaso corremos os olhos pela lista dos premiados, não poucos desconhecidos por grande parte do público universal da literatura. Além de conhecidos e apreciados numa esfera restrita, logo mergulham no esquecimento mal a repercussão momentânea decorrente do prêmio se dissolve na mídia e no mercado editorial. Bastaria a propósito observar os nomes destes premiados a partir de 2000: Gao Xingjian, Imre Kertész, Elfriede Jelinek, Orhan Pamuk, Herta Müller. Quem de fato os conhece no Brasil e em grande parte do mundo ocidental, incluídas suas extensões periféricas?

O leitor pode discutir os méritos estéticos da obra de Vargas Llosa, assim como os discutem alguns críticos que lhe depreciam a obra no que encerra de filiação ao realismo típico do romance novecentista. Ressaltando o quanto os condicionantes políticos e ideológicos perturbam apreciações dessa natureza, acrescentaria que Vargas Llosa é combatido antes de tudo devido à natureza ideológica do discurso com que desde a juventude intervém no debate público.

Até recentemente o intelectual procedente da América Latina se distinguia como intelectual público. Até mesmo Borges, o mais atípico e livresco rebento dessa tradição, teve sua obra e biografia momentaneamente subordinadas à força imperativa dessa circunstância político-cultural. Já que seu nome veio à baila, importa lembrar que morreu sem ganhar o Nobel, erro que o atual presidente da Academia Sueca é o primeiro a reconhecer. Vargas Llosa constitui um dos exemplos mais vivos e constantes do intelectual militante, tão constante, aliás, que teimosamente se destaca como um dos últimos sobreviventes dessa espécie em vias de extinção. Autor de obra e notoriedade precoces, literatura e apaixonada participação política se entrelaçam no desdobramento de sua biografia.


quarta-feira, 20 de outubro de 2010

The return of the native



Tempos atrás, comecei a organizar minhas notas de aula sobre Durkheim em uma série de posts sobre esse autor (aqui, aqui e aqui). Por uma razão ou por outra, não concluí este trabalho. Agora que estamos estudando o positivismo de Durkheim no curso de metodologia científica da graduação, achei que seria uma boa ideia concluí-lo. Como estou sem tempo, vai uma solução de improviso: a republicação de um artigo que escrevi com Bob Brym e que consiste em uma crítica do Suicídio com base em uma comparação entre seus aspectos teóricos, metodológicos e dados empíricos relativos aos Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul. Embora o artigo não tenha sido escrito com o ensino de graduação em mente, pode ser que lance alguma luz sobre as questões que temos trabalhado no curso. Deixo para concluir a organização de minhas notas de aula em outra ocasião - e com uma linguagem mais adequada à graduação.

Cynthia


The Return of the Native: A Cultural and Social-Psychological Critique of Durkheim’s Suicide Based on the Guarani-Kaiowá of Southwestern Brazil

Cynthia Lins Hamlin
(Universidade Federal de Pernambuco) e Robert J. Brym (University of Toronto). Artigo originalmente publicado em Sociological Theory 24:1, March 2006.

More than a 100 years after its publication, Durkheim’s Suicide continues to inspire debate over its theoretical, methodological, and empirical claims. Yet few authors have ventured a critique that shows the impact of each of those claims on one another. The importance of such a critique lies in the fact that it is not possible to resolve some of the contradictions in Durkheim’s work unless one examines both the underlying meta-theoretical assumptions and the data that account for its explanatory limitations.

An especially interesting case for illustrating the explanatory limitations of Durkheim’s theory of suicide is the Guarani-Kaiowá people of Brazil. The Guarani are an ethnic group characterized by a unique religious system and language (Guarani). They reside in Argentina, Paraguay, Uruguay, and Brazil (in the states of Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná , São Paulo, Rio de Janeiro, and Mato Grosso do Sul). In 2003, 34,000 Guarani lived in Brazil, subdivided into three groups: the Kaiowá (between 18,000 and 20,000 individuals), the Ñandeva (8,000–10,000), and the Mbya (5,000–6,000) (Almeida and Mura 2003). The Guarani have become known worldwide for their extremely high suicide rate, particularly among the Kaiowá in Mato Grosso do Sul and Paraguay (where they are known as pai-tavyterã) and, to a lesser degree, the Ñandeva. The phenomenon is not known among the Mbya. The Kaiowá of Mato Grosso do Sul are the most prone to suicide,with estimated suicide rates varying between 43 per 100,000 population (between the 1940s and the 1980s) and 305 per 100,000 population (in 1995) (Levcovitz 1998). In 1995, the suicide rate among all indigenous peoples in Mato Grosso do Sul was nearly 21 times higher than the Brazilian annual rate of 3.6 per 100,000 people, and, in 2003, it reached 128 per 100,000 people (Table 1). At that time, 59 percent of the indigenous people were Guarani-Kaiowá, 38 percent were Terena, and 3 percent were of other ethnicities.

The high rate of suicide among the Kaiowá is puzzling. Many explanations have been proposed, but none covers the variety of situations in which suicide has been observed. Some explanations are anthropological, others historical, still others psychiatric-psychological, but most rely on the Durkheimian approach, either by classifying the form of suicide as altruistic (Meihy 1991) or anomic (Brand 1995) or by reformulating the anomic explanation so that suicide is seen as a result of maintaining certain cultural patterns in a greatly changed environment (Levcovitz 1998;Almeida 1998, 1995). In the latter view, the cause of the extremely high suicide rate among the Kaiowá is not a process of acculturation or social disintegration, a thesis that runs against the grain of most contemporary interpretations of suicide among aboriginal peoples. Instead, the decision to take one’s own life is explained with reference to Guarani "supernatural and cosmological themes" (Almeida 1998:21).

The partial character of the explanations listed above results from problems in Durkheim’s work. For one thing, Durkheim regarded "primitive" societies as harmonious and static. He did not consider that social norms, values, and beliefs are constantly reinterpreted by social actors without this leading to social disintegration. Moreover, although Durkheim always stressed that the moral rules governing society are grounded in the belief systems from which they emerge, it was not until The Elementary Forms of Religious Life that he started paying more attention to belief systems under the general category of collective representations. In this sense, Suicide largely overlooked cultural aspects of social life, with particularly damaging consequences for Durkheim’s own definition of suicide as a form of action. Here, we call for the integration of culture into any consideration of the causes of suicide: the return of the native, as it were.

Para baixar o artigo completo, clique aqui.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Da Vida ao Tempo: Simmel e a construção da subjetividade no mundo moderno



Jonatas Ferreira


Introdução

O fato de Simmel ter se mantido em evidência durante a primeira metade do século XX deve-se em grande medida ao interesse que sua obra despertou na sociologia americana, numa época em que os padrões consagrados de produção científica se opunham ao seu brilhante ‘ensaismo’. O seguinte comentário parece representar o tipo de acolhida que sua obra recebeu durante este período: “Simmel tem a mais refinada inteligência entre todos os seus contemporâneos. Mas, fora disso, é totalmente vazio e sem objetivos, desejando tudo exceto a verdade. Ele é um compilador de pontos de vista com os quais rodeia a verdade, sem pretender ou estar apto a possuí-la.” Não obstante esta aparente idiossincrasia de sua personalidade intelectual ou, como o texto sugere, apesar de sua impotência em “possuir” a verdade, a obra Simmel se firmou como referência sociológica das mais importantes. Sua popularização deve sem dúvida ao interesse que a Escola de Chicago demonstrou em alguns de seus traços distintivos, entre os quais eu destacaria uma certa sensibilidade cosmopolita, um enfoque predominantemente microsociológico e uma interpretação da cultura que privilegia o jogo dinâmico entre estruturas simbólicas identitárias e forças de alteridade. Por este motivo, não parece fortuito que ensaios como ‘O estrangeiro’, ‘O aventureiro’ e ‘Conflito’ sejam até hoje presenças obrigatórias nas coletâneas da obra de Simmel publicadas nos Estados Unidos, como pode atestar o Selected Writings editado em 1971 por Donald Levine.

Embora influente e de importância evidente, tal recepção da obra de Simmel deu-se às custas de uma apreciação mais ampla de aspectos fundamentais de seu universo temático. É curioso que um livro tão importante quanto Lebensanschauung. Vier Metaphysische Kapitel, de 1918, reunindo os últimos ensaios produzidos por Simmel, ainda não tenha sido traduzido para o inglês, francês ou português – à exceção do ensaio ‘Caráter Transcendental da vida’, traduzido na década de 70 para o inglês. A importância teórica destes quatro ensaios, todavia, pode ser estimada se tivermos em mente o meio acadêmico no qual eles emergiram e do qual contrastam de forma tão categórica. Pois se é bem verdade que a tradição neo-kantiana, com a qual Simmel convive intimamente, sonha com um projeto sociológico capaz de se estruturar a partir de uma concepção atemporal de subjetividade, o Lebensanschauung aponta para o reconhecimento do tempo como fator estruturante do ser no mundo e da possibilidade do saber. Se o conhecimento científico não for um “esquecimento” desta verdade ontológica fundamental, de forma alguma ele deverá buscar a “posse” de verdades universais e atemporais como critério e base de validade. Anos mais tarde, Heidegger afirmaria que todo saber autêntico deve abrir-se à indeterminação ontológica do ser-no-mundo – e essa indeterminação surge como conseqüência inevitável do reconhecimento de nossa temporalidade, ou seja, como constatação de nossa finitude, ou como diria Heidegger, de nosso ser-para-a-morte. Se aceitamos, todavia, o tempo como estrutura ontológica fundamental, e consequentemente como determinante da possibilidade do saber, todo o projeto neo-kantiano da escola de Baden (leia-se Windelband, Rickert e o Weber dos ensaios metodológicos), com o qual Simmel tem um contato tão íntimo, entra em colapso. Esta perspectiva induziu Rickert a afirmar de forma infatigável durante sua carreira que aquilo que capacita a verdade científica a ser um valor acima de todos os outros valores é precisamente que a ciência se nega a ser “parte da vida em geral”. Procedendo deste modo, a ciência escaparia à sina dos seres orgânicos que germinam, desenvolvem-se e morrem. O conhecimento para Rickert deve se proclamar transcendental em relação à vida e ao tempo – e nesta afirmação mesma nós constatamos a importância de se pensar a pauta fenomenológica (mais especificamente, seus pressupostos existenciais e temporais) que põe tal projeto sociológico de pé.

[Continuando a publicação de artigos velhos aqui no Cazzo, aí vai mais este. Clique aqui para obter o artigo em PDF tal como foi publicado na RBCS]

sábado, 16 de outubro de 2010

Bobeatum sunt...

O Cazzo é uma coisa santa! Ficam dizendo poraí que a gente não segue os preceitos da Santa Madre Igreja, que não comunga, come carne de porco na sexta-feira santa, não respeita os sábados, mas isso é calúnia. Dizem que a gente gosta de frevo, de salsa, de maracatu, de samba, mas isso é intriga. Eu confesso que já fui disso, mas mudei porque vi a luz. Glória! E se estão acendendo fogueiras da virtude nesse Brasil de caboclo de mãe preta e pai João, nós não seremos churrasqueados, mas os churrasqueadores. Preparemo-nos, irmãos e irmãs, o fim está próximo! - Dia 31 acaba. E se estavam pedindo foto nossa no blog, aí está: Cynthia Hamlin num momento de inspiração antes de escrever mais um post. Ô, glória!

Jonatas

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

A Nova Retórica do Capital (mudou a data)

A Edusp, a Livraria Cultura de Recife e o Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE convidam para o lançamento do livro

A Nova Retórica do Capital: a publicidade brasileira em tempos neoliberais

de Maria Eduarda da Mota Rocha

17 de outubro de 2010
Domingo, a partir das 19 horas

Livraria Cultura:Paço Alfândega. Rua Madre de Deus, s/n – Paço Alfândega.
Recife – PE

OPORTUNIDADE IMPERDÍVEL! Atenção, o livro custa R$ 40,00. Mas se você disser que é leitor do Cazzo (e provar!) é possível que consiga comprá-lo por R$ 39,99.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Descriminalização


Sessão habitual no júri da Comarca de São Lourenço da Mata


Post publicado originalmente aqui.

Artur Perrusi.

A discussão do aborto é complexa e, sendo utilizada para fins eleitorais, torna-se rasa e redutora. Além do mais, foi capturada pelo que tem de mais atrasado no cristianismo. As posições da Igreja Católica não se reduzem, por exemplo, às posições oficiais do Vaticano. Existem outras posições menos dogmáticas, sem a mania fundamentalista de ler a Bíblia de forma literal.

Não vejo problema de que, numa eleição, discuta-se sobre o aborto. O eleitor precisa conhecer as posições dos candidatos. O que lamento, na verdade, é a instrumentalização da discussão e sua captura pelo fundamentalismo cristão, somando-se à pusilanimidade dos candidatos, apavorados com a possível perda de votos, caso externassem sua verdadeira posição. Assim, todos rezam, todos beijam o crucifixo — hipocrisia.

Pesquisando no meu baú, procurava documentos contra a hipocrisia. De tanto procurar, achei uma velha entrevista da mãe de todas as mães, dos idos de 1987, concedida a um jornal do Ministério Público de Pernambuco. Uma entrevista bombástica, avançadíssima para a época, ainda mais num meio tão conservador como o Ministério Público. Transcrevi a parte relativa à querela do aborto — uma dia, transcrevo toda, porque é bastante atual, principalmente para os jovens carolas e reacionários dos dias de hoje.

Era o aniversário de 40 anos do jornal “Publicandum”. Tiveram a ideia de publicar, entre outras matérias, uma entrevista com um colega do ministério. Foi feito uma votação entre os pares e escolheram, logo quem, meu Deus, a Saint-Just da Comarca de São Lourenço da Mata, onde as sessões de júri eram mais populares do que a missa de domingo e um jogo do Santinha.

No baú, encontrei histórias explosivas dessa época, quando a região queimava seus criminosos nas labaredas da Salvação Pública. Um dia, conto mais.

O espantoso da discussão abaixo é que, desde aquela época, a situação mudou muito pouco, quase nada.

Lá vai:

PUBLICANDUM, ANO II, Nº3 – ASSOCIAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE PERNAMBUCO, JULHO/DEZEMBRO 1987, EDIÇÃO 40 ANOS

CONHECENDO A COLEGA MAUD

(Entrevista com Maud Fragoso de Albuquerque Perrusi, titular da 1ª Promotoria de Justiça da, Pernambuco, com exercício na Assessoria Técnica da Procuradoria Geral da Justiça).

1)………………………………………..

14) O aborto deve ser ou não descriminalizado?

A questão é muito complexa, pois, para melhor respondê-la, teríamos que buscar as razões da criminalização do aborto, sejam elas religiosas, econômicas, demográficas ou políticas.

Não podemos ignorar, por exemplo, a forte influência entre nós da Igreja Católica atual que, conservando a tradição cristã-judaica, condena o aborto sob o argumento de que o feto representa o testemunho de Deus, sendo, portanto, sua eliminação, um atentado à vida e a Deus, seu criador.

Por outro lado, a nossa política governamental, que se reflete na legislação penal, sempre foi repressiva a propósito do direito ao aborto. Em outros termos, a ideologia pequeno-burguesa, fortemente influenciada pela Igreja e cujos efeitos se fazem sentir na massa popular, envolve o aborto de toda a sorte de preconceitos da moral tradicional, a começar pelo sentimento de culpa e de pecado incutido pela Igreja na consciência feminina, se a mulher parte para a solução dramática do aborto.

O anteprojeto da parte especial do Código Penal traz algumas modificações a respeito do aborto. Ao invés de exclusão de punição, o “aborto necessário”, o “sentimental” e, agora o “piedoso” que, na verdade, é o aborto “eugênico”, passam a não constituírem crime.

Tendo em vista essas propostas de modificações a respeito da legislação do aborto, vemos que a tendência é no sentido de sua descriminalização. E não podemos ser contrários a esse fato, que reflete a nossa própria realidade.

Entretanto, isso não significa passar de repente a uma total descriminalização do aborto. Passaríamos, primeiramente, por uma política de conscientização da natalidade para que o aborto não seja visto como um meio contraceptivo. Em seguida, teríamos que cercar esse “direito ao aborto” de medidas prévias, como as que existem em países desenvolvidos, a exemplo da França, onde o “aborto precoce”, possível até a décima semana de gestação e somente praticado por médico, é precedido de estudos médico-psicológico e social que, se favoráveis, possibilitam a sua realização em hospital público ou privado, este, com autorização de funcionamento segundo o Código de Saúde Pública.

Essas modificações legislativas, no nosso país, visando a descriminalização do aborto, não implicarão no aumento do número de abortos realizados atualmente. Vale salientar que as práticas abortivas feitas, clandestinamente, somente favorecem a classe que tem meios econômicos para enfrentar o problema, em boas condições sanitárias.

A lei não pode, pois, ignorar esse fato e insistir nessa injustiça de classe. Ao contrário, a lei, para não se distanciar cada vez mais da realidade, deve tentar desmascarar essa hipocrisia.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

« E eu que não creio…»



Tâmara de Oliveira

Uma misteriosa mas significativa sintonia entre acontecimentos tristes da semana passada remeteu-me a um filme do egpício Youssef Chahine, o que foi premiado em Cannes em 1997 – pelo grande prêmio comemorativo dos cinquenta anos desse festival. O filme que se chama em francês Le Destin e em árabe Al-Massir, faz uma leitura mais cinematográfica do que histórica das desventuras do filósofo aristotélico Averróis que, começando o filme como primeiro conselheiro de um califa meio « déspota esclarecido » de uma sociedade muçulmana tolerante, dialógica e festiva, termina tendo seus livros queimados em praça pública e sendo exilado no Marrocos. O califa ali aparece como um governante progressivamente acuado e submetido por emirs movidos pela convicção de que a única verdade legítima (epistemológica e ética) é a que eles acreditavam sobre o Corão. Como Averróis era daqueles que pensava e ensinava que a verdade teológica e a verdade filosófica não são necessariamente coincidentes, foi classificado e sancionado como inimigo da religião e nunca mais voltou à sua Córdoba natal.

Mas nesse olhar cinematográfico de Chahine sobre a trajetória de um homem que realmente viveu numa sociedade muçulmana do século XII, foi exilado por pressão de religiosos que incorporavam a instituição política daquela sociedade, mas nem por isso deixou de influenciar posteriormente o pensamento moderno, o alvo político contemporâneo é central. A evolução progressiva de uma Córdoba plural, pacífica e colorida para uma Córdoba unidimensional, violenta e cinzenta não deixa dúvidas ao espectador : Chahine estava filmando também suas desventuras diante do chamado fundamentalismo islâmico contemporâneo, este que teve relação direta com a proibição de seu filme anterior em seu país natal ; Chahine estava filmando também sua adesão à democracia. E, as cores e ritmos pelos quais o filme vai desvelando a passagem de uma Córdoba aberta para uma Córdoba enrigecida por uma política da intolerância religiosa, fez-me especular esta semana se esse cineasta, morto em 2008, foi leitor do filósofo Claude Lefort – que morreu em 03 de outubro de 2010, dia do primeiro turno de nossas eleições (pois é…). Mesmo se não for o caso, o homem do cinema fez uma obra-prima do que Luciano Oliveira (2010) apresenta como ensinamento fundamental do homem da filosofia sobre a democracia: o de sua fragilidade substancial.

Quando vi esse filme, em 1998, tive medo. Mas era um medo relativamente distanciado, talvez fosse melhor dizer agora que senti compaixão por sociedades que estavam sofrendo a ameaça ou a manifestação concreta de uma forma de totalitarismo – aquela onde chefes religiosos incorporam a identidade de um povo e a instituição política. Por outro lado, possivelmente porque Al-Massir é um filme esteticamente ancorado no ocidente (sua Córdoba aberta parece o final-feliz de uma comédia musical; sua Córdoba enrijecida lembra os momentos violentamente dramáticos de um western), mesmo naquela época aquele medo parecia mais próximo de mim do que minhas boas razões pretendiam. Boas razões como aquela que diz que o problema do mundo muçulmano é que ele perdeu o bonde da modernidade, ou seja, não viveu o processo histórico de desincorporação do político – que é o advento da democracia (Chauí, apud Oliveira : 2010).

Pois bem, acredito agora que a boa razão acima é dessas que não dissimulam muito bem a força de representações sociais (Moscovici, 2004) evolucionistas que um cientista social moderno pode interiorizar. Porque o problema do mundo muçulmano é também um problema de sociedades que ninguém pode afirmar que perderam aquele bonde – quer viajando em primeira, segunda ou terceira classe. Trata-se de problema substancial da democracia que pensadores como Claude Leffort (apud Oliveira : 2010) ou Ernesto Laclau (2000), para falar em utilizadores da noção de lugar vazio para a análise do poder e do político, conseguem enxergar melhor do que abordagens que, voluntária ou involuntariamente, encantam-se com a modernidade como se ela fosse O destino, o ponto de chegada inexorável do caminho humano para a liberdade e boa sociedade.

Ainda bem que destinos como o do mundo de luzes virado trevas de Averróis podem nos abrir os olhos. Porque a fragilidade substancial da democracia quer dizer também que, se vontades de abertura podem utilizar muito bem as novas tecnologias de informação e comunicação nos embates hegemônicos (como vimos durante a campanha eleitoral de Barack Obama), vontades totalitárias podem se sair melhor ainda com elas. Dizendo sinteticamente, a diferença fundamental entre essas vontades de hegemonia num regime democrático vivo, é que as primeiras (de abertura) aceitam a discussão sobre o legítimo/o ilegítimo enquanto que as segundas (totalitárias) participam dessa discussão com o objetivo de incorporar o poder para suprimir essa discussão.

De fato, se o medo distanciado que senti ao ver o filme de Chahine transforma-se hoje em dia em medo íntimo, é porque a campanha eleitoral de segundo turno no Brasil comporta violentamente o fardo da discussão entre o legítimo e o ilegítimo quanto à problemática do aborto. Como tantos no Brasil, fui violentada sem sair de casa, via e-mail. Recebi e li horrorizada um documento de campanha eleitoral em que o apoio à descriminalização do aborto é apresentado como parte de um « imperialismo demográfico » da « moderna estratégia do capitalismo internacional ». Li em jornais brasileiros que a candidata Dilma Roussef anda sendo caluniada até como assassina de criancinhas. Vi num blog que há um texto apócrifo e fictício circulando, sobre um suposto processo contra Dilma Roussef da parte de uma ex-empregada doméstica; no tal texto, define-se o processo como « por lesbianismo » !!! A homossexualidade é apresentada como transgressão, delito, crime ?!!!! As mulheres, os homossexuais : historicamente, quando esses são atacados, alguma força totalitária oraganizada está por trás. Li também que tanto Dilma Roussef como o candidato José Serra (beneficiário voluntário ou involuntário do fardo dessa campanha), parecem sentir-se na obrigação em falar na sua devoção a Deus a cada começo ou final de discurso. E comuniquei-me com amigos que estão entre a perplexidade e a angústia, corroborando a pertinência de meu medo.

Não se trata do medo de que fundamentalistas cristãos possam incorporar o poder no Brasil – pelo menos por enquanto. Eu acredito no potencial da sociedade brasileira para não confundir religiosidade com mera submissão a tradições religiosas. Sustentando-me agora em Habermas (1999) que, embora ao meu ver seja bem mais vulnerável a representações evolucionistas do que Lefort e Laclau, é também um grande pensador da democracia, acredito na potencialidade da crítica da tradição em sociedades abertas.

Só que tal potencialidade depende da sustentação da discussão democrática. A discussão sobre o aborto, por exemplo, é assunto muito sério e incompatível com uma campanha eleitoral presidencial : não são presidentes da República que decidem sobre essa legislação, mas sim o Congresso Nacional ; o amadurecimento dessa discussão exige tempo, informação, conhecimento e comparação de legislações e políticas públicas de países diferentes. Nos países onde algum tipo de descriminalização é adotada, por exemplo, o número de abortos não é maior do que onde ele é simplesmente proibido. Pelo contrário, com a descriminalização ele tende a diminuir, porque ela costuma acompanhar-se de políticas sociais e educacionais em torno de métodos anticoncepcionais. Ora, quando as mulheres defrontam-se com o problema de não poderem ter filhos em circunstâncias de vida difíceis, dificilmente vão escolher o aborto se elas conhecem e têm acesso a métodos anticoncepcionais acessíveis. Finalmente, para quem pensa que o aborto e métodos anticioncepcionais são pecados mortais (posição que a Igreja Católica adota oficialmente), é preciso lembrar que não é o Estado quem pode salvar os seres homens do pecado – são eles próprios com seu livre arbítrio, na intimidade de suas vidas.

Sendo assim, a importância que uma das vontades fundamentalistas cristãs tem assumido nessa campanha eleitoral já é suficientemente assustador : a de que uma certa concepção religiosa da vida (concepção que nem é a única no próprio universo das religiões) imponha-se como única concepção legítima na ordem social brasileira. E a legitimação que se tem dado a tal vontade, por razões exclusivamente eleitoreiras, ferindo de morte o princípio da ética da responsabilidade, remete-me direto ao bordão de Riobaldo : viver é perigoso.

E eu que não creio peço a Deus pelas meninas e meninos do Brasil, para que eles não cresçam num mundo onde, para serem respeitadas, as mulheres devam submeter-se às diversas formas de violência que a tradição judaico-cristã (da qual a muçulmana é herdeira) oferece à filha de Eva. Formas de violência às quais os homens também devem obedecer. E não esqueçamos que o ataque à homossexualidade faz parte dessa concepção totalitária da vida. Que mundo triste, seria… Pensemos no Afeganistão ; rezemos pelo Afeganistão.

Bibliografia

HABERMAS, J. Droit et démocratie. Paris : Gallimard, 1999.
LACLAU, E. La guerre des identités – grammaire de l’émancipation. Paris : La Découverte/Mauss, 2000.
MOSCOVICI, S. Representações sociais. Investigações em psicologia social. Petrópolis : Vozes, 2004.
OLIVEIRA, L. O enigma da democracia. O pensamento de Claude Lefort. Piracicaba: Jacinta Editores, 2010.

domingo, 10 de outubro de 2010

Dropes e representação social



Artur Perrusi

Jonatas olhou-me, com um olhar meio doido, e vaticinou:

_Artur, por que você não escreve dropes teóricos para o Cazzo?

Fiquei olhando meio assim clinicamente para Jonatas. Aprendi, com o tempo, que devemos encarar o alienado, manter o olho no olho, do contrário seu olhar nos submerge numa grande confusão. Posso dizer que me perdi, baixei a vista, já que fiquei confuso.

_Dropes?!
_Sim, dropes teóricos.

Por coincidência, tinha algumas balas no bolso. Mostrei-as e perguntei:

_Tipo assim?!
_Não, Artur, essas são jujubas. Mas jujubas teóricas são também interessantes.
_Jujubas ou dropes, afinal de contas?!
_Pode ser qualquer uma das duas, contanto que você volte a escrever no Cazzo, porra!

Notei que Jonatas estava se irritando com meu estado confusional. Contudo, insisti:

_Mas o que é mesmo jujuba teórica?
_Falei de dropes.
_Certo, certo – o que são “dropes teóricos”?
_Textos rápidos, Artur, reflexões pontuais, inquietações e intuições teóricas. Eu só quero que você escreva...
_É Cynthia, né?!
_Que é que tem Cynthia?
_Ela está fazendo pressão.
_Todo mundo quer que você escreva, Artur.
_E Cynthia adora chicletes. Vive com chicletes na boca. Fazer chiclete teórico é muito mais fácil, convenhamos.

Pensei em perguntar sobre chicletes teóricos; se não seriam melhores do que dropes; mas, desisti, diante do olhar enfurecido de meu amigo. Jonatas meneava a cabeça e deu um longo suspiro, embora tenha ficado mais calmo quando prometi que escreveria os “dropes teóricos”.

Contudo e todavia, não farei agora um drops teórico, apesar de todo esse preâmbulo. Cynthia pediu-me um texto sobre representação social. E ordens são ordens!

(aceitar uma ordem implica obediência. Se obedeço de bom grado, provavelmente, estou julgando que a ordem é legítima. No fundo, adapto-me a uma relação de dominação. No tamborete do socioanalista, pergunto um tanto cabisbaixo: a adaptação revela uma adesão à dominação?)

Eu me encho, jogo o tamborete na cabeça do socioanalista e começo a escrever.