domingo, 23 de janeiro de 2011

A beleza em jogo


por José Eisenberg*

Há uma aversão disseminada nas sociedades contemporâneas à ideia de atribuir valor estético a manifestações da cultura de massa, produzidas em escala industrial para quem toma refrigerante e come batata frita. Onde estaria, por exemplo, o belo e o bom gosto de um videogame? Qual a beleza em fazer o Mario ultrapassar o Donkey Kong numa simulação de corrida de kart no televisor diante de nós? Shigeru Miyamoto, principal desenvolvedor de jogos da Nintendo e criador do personagem Mario, o Mickey Mouse dos videogames, declarou em março de 2010 que, para ele, “videogame não é arte”. Miyamoto ironizava a beleza de uma arte que ajudara a inventar. Como Magritte, Miyamoto escrevia ao seu modo no enquadramento da câmera de televisão: “Isto não é um cachimbo”.

Para os vovôs do videogame, o cachimbo era o telejogo da Philco. Nos primeiros shopping centers e seus centros de diversão eletrônica, Space Invaders para os meninos e Pacman para as meninas. Tudo invenção de japonês: Atari, Sega, Nintendo e Sony. O videogame é um jogo com raízes na cultura japonesa. Sua imaginação é narrativa: há heróis e vilões, todos com gosto pelas artes marciais; há um objetivo a ser perseguido e seus príncipes galgam cavalos alados em direção a algum lugar. Seus aplicativos são de repetição, plenos de momentos de game over/restart e são rápidos o suficiente para que uma partida termine antes da próxima estação: tudo é nipônico no universo da maior parte dos videogames, e se há neles arte, não se pode ignorar estas raízes.

Flâneur viciado em um museu

No início, a limitação técnica dos computadores tinha como contrapartida a ousadia criativa dos artistas-designers dos jogos eletrônicos. Hoje, os recursos quase ilimitados da técnica empurraram a arte de jogar games para o mundo da simulação onde, de tão parecida com a vida, uma corrida de F1 ou um vôo simulado de caça conferem uma plasticidade hiperrealista à experiência de jogar. Na produção destes videogames, trabalham centenas de artistas, comparáveis ao exército que produz um filme. Os créditos no final podem ser igualmente longos e chatos. Na cinemática que resulta, videogames criam experiências de som e imagem-movimento, em que a estética do cinema, em particular da ficção científica e do desenho animado infantil oferecem as maiores inspirações. Deste ponto de vista, portanto, não há como negar que videogame é uma forma de arte.

A cinemática do videogame, entretanto, está vinculada a uma concepção de jogo que o torna distinto do cinema. Assistimos filmes e desenhos animados; videogames são jogados. Este aspecto lúdico do “jogo de vídeo” retira o cinéfilo de sua condição passiva de audiência e o coloca diante de um desafio interativo que é na maior parte das vezes competitivo, exigindo da estética do videogame, além de recursos técnicos de interatividade que consoles e computadores oferecem, recursos de “jogabilidade”. Como argumenta Daniel Real, desenvolvedor de games, o desafio artístico do mutirão de artistas que trabalha na criação de um videogame é torná-lo um jogo bonito mas, acima de tudo, é preciso torná-lo um jogo bom de jogar; bom de jogar e por muito tempo. “Jogabilidade”, portanto, é sinônimo de aprendizado lento, por mais rápido que seja o ritmo da ação do videogame; é sinônimo de inventar razões para jogar que vão além de simplesmente vencer ou conquistar os objetivos determinados. Curioso como um videogame não pode ser ensinado (no máximo há dicas). Ele precisa ser praticado. E muitas vezes.

Jogo “bom de jogar”, lembra Daniel Real, é aquele que, a cada momento em que o jogador desiste de uma partida e reinicia o jogo — game over/restart — algo diferente, inesperado e, acima de tudo, “bacana”, se revela. O jogador de videogame é como um flâneur viciado em um determinado museu, que lá retorna todos os dias e fita, por algum tempo, os mesmos objetos de arte, sempre em busca de algo novo, algo que antes havia passado desapercebido.

É desta possibilidade de reiteração da experiência que o jogador de videogames extrai um juízo estético. O museu, para trazer de volta este aficionado, oferece arquitetura, decoração, bons assentos, silêncio, um café, uma lojinha, e uma miríade de outras condições que permitem que, a cada novo encontro com os objetos de arte, o flâneur possa enxergar o que antes era invisível e, ao mesmo tempo, encontrar razões para retornar amanhã. No caso do videogame, este reencontro não precisa esperar até amanhã, quando reabre o museu. Basta “dar um game over e um restart”.

A repetição, a compulsão, uma interação até a exaustão com todos os componentes da cinemática do videogame; os cenários, os personagens e a trilha sonora; um conhecimento detalhado de cada atributo do ser-monstro-avatar-avião que você controla. Este é o horizonte da experiência estética do videogame e, para sua realização, a função game over/restart é essencial.

No processo, como em qualquer jogo, constrói-se o horizonte de uma vitória que é cada vez mais passível de ser conquistada, na medida em que a narrativa ou atividade do jogo fica cada vez mais familiar ao jogador. Dominar o horizonte estético do videogame é, portanto, essencial para extrair o prazer lúdico de jogar. E é a possibilidade concreta de ganhar, e não a intensidade do desejo de vitória, que se configura como condição necessária à construção daquilo que conhecemos como o “vício” de jogar videogames.

O que o desenvolvedor de videogames almeja, portanto, é encontrar maneiras de converter o gamer em um jogador infiel; alguém que não hesita em começar uma nova partida, desde que sempre no mesmo jogo (afinal, o objetivo é a fidelidade do consumidor). Para tanto, ainda que o videogame possa ser completamente alheio à lógica do ganhar ou perder, é preciso que haja algo como “jogar bonito” para descrevermos a experiência estética que ele possibilita; algo similar ao que testemunhamos no futebol, por exemplo. Há inclusive videogames em que sequer a lógica do competir tem importância; em que a lógica é essencialmente cooperativa ou contemplativa. Em todos, entretanto, a gramática do game over/restart é insuperável. Imerso em sua atividade lúdica, sem noção do tempo que passa e alheio aos passageiros do espaço que ocupa, o gamer subitamente sente-se desagradado com a partida que joga. Game over. Restart.

O tempo do presente ampliado

Gumbrecht diz que vivemos hoje um presente ampliado, que o futuro já não é um lugar certo para se ir e que o passado perdeu sua função pedagógica. Em sua amplitude, creio que o videogame revela esta nova temporalidade e a técnica que ela privilegia. Quando o desenvolvedor de videogames consegue emaranhar o jogador na trama do game over/restart, a experiência estética ganha expressão no próprio ato de jogar. E o prazer, a beleza, o bom gosto, em suma, a experiência estética que o jogador irá vivenciar depende essencialmente de um videogame que é simplesmente “bom de jogar”.

*JOSÉ EISENBERG é professor de Filosofia da Faculdade Nacional de Direito (UFRJ). Texto publicado, originalmente, no Jornal O Globo, caderno Prosa e Verso, do dia 8/01.

14 comentários:

Artur disse...

Parei de jogar porque estava me viciando. Sou aditivo, logo, tenho que ter cuidado.

Gostei da tua interpretação do game over/restart. Eu tinha culpa quando reinicializava o jogo. Tinha a sensação de que o Grande Jogador olhava e não aprovava minha atitude. Agora, serei o rei do game over/restart.

Luciano Oliveira disse...

Eu devo estar realmente ficando velho. A tese do vídeo-game como uma forma de arte não me parece sustentável nos próprios termos em que o próprio Eisenberg coloca as duas formas diferentes através das quais fruímos uma coisa e outra: vídeos-games e filmes. Vídeos-games, o nome já está dizendo, são para serem "jogados"; filmes e desenhos animados, numa palavra, cinema, ou artes-visuais se preferirem (o que lato sensu poderia incluir também o teatro, a ópera etc.)são para serem "assistidos"... Será que algum descerebrado que fica horas na frente nessas maquininhas infernais está fruindo as qualidades estéticas de Mário?... Sei não. Mas, enfim, depois que Duchamps inventou a chamada "arte conceitual", tudo é possível neste mundo que perdeu o juízo.
Ah, sim, antes que esqueça: o texto é muito bom e bem escrito, a ponto de despertar em mim, que não tenho nada a ver com esse mundo, o desejo de lê-lo. A divergência, frontal, é no plano do argumento.

Le Cazzo disse...

Oi, Luciano.

Ninguém me passou procuração, mas como andei escrevendo acerca desse tema com Jorge Ventura e Micheline Batista, ouso fazer um comentário. Creio que é Gadamer quem faz uma ponte entre arte e jogo ao tentar elaborar uma forma não positivista de pensar a verdade. Está lá no Verdade e Método. Não entrarei no mérito, mas lembraria que a arte como contemplação (acho que Gadamer lembraria também) é um resultado histórico, não tão recente, é verdade, da possibilidade artística. O alemão de Gadamer, inclusive, guarda a ressonância dessa cumplicidade: o ator é um "jogador da mostração".

O teatro mais recente, e sua referência ao Dadaísmo, é oportuna, sempre namorou com a possibilidade de quebrar a barreira entre espectador e ator. Entre o jogador/ator e o espectador: Boal, Zé Celso etc.

Acho portanto que há pano para as mangas para argumentar. Não obstante, também não sou muito entusiasmado com jogos. Mas ocorre-me de um resultado verdadeiramente estético, no sentido de belo, que sempre admirei num jogo chamado Grim Fandango. (Lembrei-me também de Saramago deslumbrado com as cartas do solitaire "caindo em arcos" na tela do seu computador).

E depois há toda essa estória de estetização do consumo... Sei não, acho que o JE teria mais a dizer sobre o assunto. Abraço, Jonatas

Luciano Oliveira disse...

Jesus, Maria, José...
Onde fui meter minha colher?
Juro, Jonatas, no momento em que fiz aquele distinção entre assistir e jogar, como cirtério distintivo do que poderia ou não ser arte, me lembrei justamente do teatro de Zé Celso. E mais ou menos me disse: "Êpa, e agora?...", mas, por preguiça ou incompetência mesmo para pontificar nesses assuntos, deixei pra lá a luzinha vermelha que acendeu em mim e mandei o post.
Me lasquei!
Sua objeção é pertinente e inteligente. De fato, a arte como contemplação é uma invenção, historicamente ocidental e "recente", como na verdade tudo no mundo é invenção. (Nietzsche: não há fatos; só há versões.) Mas, isto feito, se tudo é assim, então não tem jeito. Mas infelizmente a gente tem que se guiar pelas balizas que historicamente inventamos. Por isso existem as categorias, que não são senão recortes que fazemos no "devir infinito e caótico" (é Weber?) que constitui a realidade, que é "em si" inapreensível... Ocorre que eu, talvez por temperamento, gosto das balizas... Não as sacralizo, mas gosto de defender a tese de que pão não é pão porque se chama pão, mas porque se não chamarmos pão o padeiro não vai nos entender...
Entendamo-nos.
Independetemente de chamarmos arte uma ou outra das duas coisas, ou, como você aparentemente prefere, as duas coisas, acho que, fenomenologicamente falando, existe uma diferença, digamos, no que sente o jogador de vídeo, jogando, e o que sinto vendo-o jogar. Como não acho graça nenhuma nessas coisas, vou argumentar com um exemplo análogo, já que adoro ver futebol. O drible mais lindo que eu já vi em futebol foi aquele que, pulando sobre a bola, Pelé deu no goleiro do Uruguai (cujo nome, polonês, não me atrevo a escrever) na copa do mundo de 70. Acho aquilo um momento de arte visual. Mas no momento em que ele, Pelé, deu o drible, o que ele sentiu foi outra coisa. Na minha atitude, há contemplação; na dele, destreza genial. Simplesmente são coisas diferentes, não?
Sei que as palavras são polissêmicas e que há diversos empregos para a palavra arte. Assim se diz que há uma arte do futebol, ou uma arte do vídeo-game, mas a conotação da palavra aí não é a mesma daquela que empregamos quando dizemos que o drible de Pelé foi uma obra de arte, não?
Enfim, não sei se fui convincente. Mas pouco importa: tentei apenas ser esclarecedor. Afinal, gosto de balizas, como disse...

Le Cazzo disse...

Muito bem, meu caro Luciano, quando você encontrar uma baliza clara para dizer o que é arte e o que não é - que não seja a empírica nossa de cada dia - diga-me. Retorno assim o favor que você me fez. E por falar em pintura, você precisava ter me visto jogando como zagueiro.

Acho, apenas acho, que não se trata de encontrar grande arte nas minhas performances destacadas, por mais artísticas que elas fossem- creia-me, pois hoje já abandonei as chuteiras. Mas a de, eventualmente, perguntar se não há elementos estéticos na atração que todo jogar exerce. Digo "estético" e Gadamer insistiria, talvez, no termo arte - que opera muito melhor fora das separações mais estritas entre sujeito e objeto, produção e contemplação.

Mas o que estou fazendo aqui, encaminhando uma discussão que certamente nada tem a ver com o que JE quis discutir...

De qualquer modo, aí vai.

Cynthia disse...

Só para encher a paciência de Lulu:

Inclusive, ousei fazer uma pequena reflexão sobre a interpretação de Glenn Gould das variações de Goldberg onde opunha a ideia de verdade presente na estética de Gadamer ao niilismo nietzscheano segundo o qual "não há fatos; só há versões"...

:)

Luciano Oliveira disse...

Onde a encontro, a reflexão?

Cynthia disse...

Clica em "hermenêutica", aí nos marcadores, ou dá uma busca em "Goldberg", na caixinha com uma lupa, no topo da página. Eventualmente vc acha.(Estou seguindo o conselho de Tâmara e dando uma aulinha extra sobre o uso de TIC's).

:*

Le Cazzo disse...

Aqui no Cazzo, mas é claro. Jonatas

Tâmara disse...

Eu não queria me meter nessa discussão, mas confesso que não resisti, vendo meu nome invocado tão a propo'sito. De fato,Jonatas, pode haver lugar igual, mas melhor do que o Cazzo para essa aulinha extra de Cytnhia, não existe não.

Eu realmente não vejo muito problema em articular jogo e arte ou, mais claramente ainda, explorar a dimensão estética do jogo. Por outro lado, também sou afeiçoada às balizas,sem sacraliza'-las, ou seja, desde que admitamos que as balizas são mo'veis no espaço,no tempo e no sujeito (o zagueirão Jonatas ou Pelé: isso deve fazer uma diferença no futebol, né?)

E fico pensando que o que me interessa nesse texto não é tanto a dimensão estética dos vi'deos-games (ou sua condição de arte, se quisermos), mas alguns juizos que apareceram nos comenta'rios: "algum descerebrado que fica horas na frente nessas maquininhas infernais" - Luciano; "Não obstante, também não sou muito entusiasmado com jogos" - Jonatas; "Parei de jogar porque estava me viciando" e "Tinha a sensação de que o Grande Jogador olhava e não aprovava minha atitude" - Artur.

Quem seria esse Grande Jogador, de quem Artur parece ter-se libertado? Sera' que libertou-se ou é agora mesmo que vai sucumbir, encantado ao saber que o que ele quer é exatamente a reinicialização eterna do jogo? O Grande Jogador seria esse "tempo presente ampliado" onde "[i]merso em sua atividade lúdica, sem noção do tempo que passa e alheio aos passageiros do espaço que ocupa, o gamer subitamente sente-se desagradado com a partida que joga"? Sei não, mas isso fez-me pensar ao mesmo tempo em Bernard Stiegler (que denuncia uma relação meramente compulsiva do sujeito com o mundo) e em Hartmut Rosa (que critica o que ele chama de "compressão do presente",onde este encolhe, foge e diminui nosso sentimento de realidade e de identidade.)Ou seja, parece que o Grande Jogador (o desenvolvedor de video-games)"emaranha o jogador" numa experiência estética que provoca um sentimento (pelo menos para alguns observadores externos) de que o cérebro do jogador fugiu (levando com ele até a intensidade do desejo de vito'ria). Acho que prefiro outras belezas...Abraço

José Eisenberg disse...

Eu estou como a Tâmara, e prefiro as entranhas dos comentários ao texto.

Entre elas, a idéia da fuga do cérebro é muito boa. Resolve o problema da acusação do Luciano de que os jogadores são descerebrados. Já as obsessões de Tuca (sic.) são juvenis, como todas as outras que teve. :P

Tâmara disse...

Zezenbergue,
Eu não sei muito bem até onde você esta' comigo, mas ontem li uma reportagem numa revista de vulgarização cienti'fica para adolescentes (Science et vie junior)e lembrei imediatamente desse texto. Não se trata da dimensão estética dos jogos, mas da economia poli'tica que tem-se desenvolvido nos u'ltimos dez anos dentro de vi'deo-games on ligne. Um nego'cio de doido! Empresas (primeiro nos EUA, cada vez mais na China e até na I'ndia)ja' surgiram especializadas na venda de moedas virtuais de jogos, em troca de dinheiro real, que eles não são bestas, através do uso de trabalhadores-jogadores. Estes passam o dia nos ni'veis baixos, repetitivos e cansativos do jogo, para acumularem moedas virtuais que seus patrões vendem aos jogadores que não têm tempo nem vontade para eleveram-se de ni'vel por seu pro'prio trabalho dentro do jogo, mas não têm problemas com suas contas de final do mês. Ha' toda uma dinâmica conflitual em torno disso,crimes bem reais dessas empresas (como piratagem de cartas de crédito dos clientes-jogadores), revoltas contra os spams dessas empresas na tela dos jogos, angu'stia de que so' os ricos possam atingir os ni'veis elevados dos jogos. E, recentemente, uma produtora/fornecedora de vi'deo-games acabou de criar uma espécie de modelo de "economia sustenta'vel e (quase)solida'ria": jogadores realmente endinheirados venderão tempo de jogo a jogadores que têm muita moeda virtual porque têm tempo para jogar, mas não têm dinheiro real para usar todo o seu tempo no vi'deo-game. Deu até vontade de voltar a estudar economia...Abraço

Artur disse...

Tenho obsessões e, ainda mais, juvenis, mas não tenho esse nome regressivo "zezenbergue" -- ahá!

Cynthia disse...

Verdade, José: Arture não tem nada de regressivo. Tuca também não. Já Bubu...