sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Hegel, os hegelianos e o Romantismo 3: a rabada idealista



Jonatas Ferreira

A hierarquia entre as artes

Por email, Artur reclamou de os  meus quitutes no Cazzo estarem pouco substanciosos. Disse que come tudo distraidamente, que sente falta de algo realmente nutritivo. Lembrou-me de uns versos de Ascenso Ferreira, que não transcreverei aqui por falta de espaço e por timidez. Sugeriu-me um passeio gastronômico pelo Mercado de São José, o que fiz com gosto e alguma cautela. Voltei de lá com esse prato típico que agora apresento – e lembrando de Rabelais... Noves fora, neste post, ilustro o argumento esboçado no post anterior a partir do estudo de Hegel sobre a poesia.

Creio que a primeira coisa que salta aos olhos na leitura deste livro é a existência de uma hierarquia entre as artes, hierarquia que subjaz à própria concepção de história de Hegel. Há culturas que realizam mais plenamente o espírito e outras que se encontram ainda na infância da História, assim como, há artes mais espirituais e artes menos espirituais. Pois, se por um lado, a razão na história só se realiza e desenvolve de modo concreto, na realidade de uma cultura que é sempre temporal e espacialmente delimitada, existem formas concretas de expressão onde o Espírito Absoluto se realizou mais plenamente. Deste modo, é possível também dizer que os materiais de que se servem as artes plásticas limitam sua capacidade de imprimir o espiritual nas formas sensíveis quando a comparamos a outras formas artísticas. É possível dizer que encontramos no espaço que compõe a expressão artísitica gradações entre uma menor e uma maior idealidade, uma ordem que iria da arquitetura, à escultura, à pintura. Por esse motivo, infere Hegel, é que os templos gregos precisavam ser adornados com estátuas que magnificassem seu conteúdo espiritual – e os deuses eram humanizados, pois no ser humano o Espírito se realiza mais plenamente que em qualquer outro ente natural. A estátua grega, por seu turno, é dotada de um sentido de interioridade que uma coluna, uma edificação, mesmo que religiosa, não pode ter. Mas, no que diz respeito às esculturas da antiguidade clássica, o mármore ou o bronze são também limites para essa síntese que se opera entre espírito e matéria.

Por sobre esse limite, um desenvolvimento se opera. Há outros tipos de manifestação artísitica em que a idealização pode ser realizar de forma ainda mais pleno. Tomemos a música como exemplo.
“Como dissemos, é a música que ultrapassa a fronteira do visível, ao exprimir a interioridade como tal e os sentimentos subjectivos, não já com o auxílio de figuras plásticas, mas por meio de vibrações sonoras. Ao proceder assim, ela transporta-nos ao outro extremo: ao da inexplícita concentração subjectiva, em qeu o conteúdo só encontra nos sons uma expressão simbólica” (Hegel, s/d, p. 10).

A associação entre música e interioridade precisa ser entendida. Claro, o sonoro é, como explica Hegel, invisível e, enquanto tal, dá-nos a impressão de uma presença que não é propriamente material, de uma sensibilidade ao invisível. Haveria algo mais que sonoro, mais que sensível na música, ele explica: o canto de uma ave, um sabiá, por exemplo, perde todo o seu encanto se descobrimos que é produzido por um apito. Na música há um elemento de interioridade que nos fala mais plenamente da idealidade do espírito humano do que a escultura, portanto. Ora, dizer que a música é mais subjetiva, pois é isso que está sendo proposto, faz todo o sentido se tivermos em mente que o Romantismo alemão acreditava ser a música a arte mais essencial que existiria. Uma linguagem supostamente da pura emoção, ou seja, que se dirige diretamente ao sensível no humano, ao seu sentido de unidade com o mundo, que o torna pleno por alguns momentos. Ocorre-me aquela famosa reflexão de Horkheimer e Adorno sobre Ulisses e o canto das sereias. Onde a música se instala, uma postura de objetividade, distanciamento e precaução se tornaria difícil de ser sustentada. O cauteloso Ulisses ouvia música com uma convicção romântica e uma atitude técnica, iluminista em relação ao lugar da arte no progresso da civilização.

Quando falamos da relação do Romantismo alemão com a música devemos, além disso, mencionar a forma surpreendente que esta alcançou na obra de compositores como Beethoven, Mendelssohn, Schubert etc. Porém, exatamente porque a música é entendida como expressão radical de interioridade, de subjetividade e emoção, para Hegel ela não poderia ocupar o lugar mais destacado na hierarquia entre as artes.
“Com efeito, considerado em si mesmo, o som é desprovido de qualquer conceito e assenta em relações numéricas; deste modo o lado qualitativo do conteúdo espeirtual corresponde às relações quantitativas e às diferenças de tempo, contrastes e mediações que elas comportam, mas somente de uma maneira geral; a precisaão qualitativa como tal não pod ser totalmente expressa pelo som”. (Hegel, s/d, p. 10)

Fácil de perceber, na citação acima, o lugar destacado que a palavra ocupa como meio privilegiado mediante o qual o conceito a razão, o espírito se apresenta diante de nós, possibilitando o seu reconhecimento. Derrida talvez dissesse a esse respeito que logocentrismo é precisamente isto: o privilégio da palavra como índice da presença do espírito, da fantasia de um ser que estaria pleno em si próprio. É na poesia, portanto, que a arte encontra sua forma mais elaborada de idealização. É ela que em princípio pode constituir uma síntese entre a interioridade da música e a exterioridade das artes plásticas; é ela que pode espiritualizar plenamente o mundo externo e, ao mesmo tempo realizar a interioridade como algo que, em sua exterioridade, pode ser compartilhado. E aqui podemos perceber o modo como Hegel opera a ideia de síntese como superação de uma contradição, como sua resolução num plano mais elevado. De modo semelhante à música, na poesia realiza-se a “percepção imediatada alma por si mesma e em si mesma, princípio de que carecem a arquitetura, a escultura e a pintura” (Ibid. p. 10-11) - estas se realizam como objetos exteriores à consciência. Por outro lado, a poesia recupera da pintura e escultura, por exemplo, uma capacidade de representar, que a música perde, dada a interioridade sob a qual ela é produzida e experienciada. Essa capacidade de representar é ainda dinâmica, capaz de captar o movimento das coisas externas, como a escultura, a arquitetura e a pintura não podem, além de ser capaz de representar também a interioridade. (Fico sempre me perguntando o que Hegel acharia do cinema, caso o tivesse conhecido.) Assim, a poesia
“amplifica-se até formar com as representações, as intuições e os sentimentos interiores, um mundo objectivo, que mantém quase toda a precisão da escultura e da pintura, e é, além disso, capaz de representar de forma mais completa que qualquer outra arte a totalidade de um acontecimento, o desenvolvimento da alma, de paixões, de representações ou a evolução das fases de uma ação” (Ibid).

Para Hegel, o paradigma do simbolismo é a arquitetura, assim como a escultura se realiza mais plenamente no classicismo e a pintura e a música no romantismo. Uma hierarquia entre os estilos, portanto, é também uma hierarquia entre as artes. Quanto mais próxima do logos, mais humana, mais espiritual é a arte, e portanto mais desenvolvida. Para ele, todavia, o “grau de perfeição de uma arte” depende de sua capacidade de se elevar acima das particularidades de “tal ou qual forma especial”. “Pela sua essência, é a poesia a arte que melhor do que qualquer outra, apresenta maiores possibilidades de um tal desenvolvimento libertador. Ela assim se conduz na criação artística, quer dotando de uma existência real cada forma particular, quer libertando-se da dependência em relação a um determinado tipo de concepção e de conteúdo, seja simbólico, clássico ou romântico” (Ibid. p. 21). Mas, se a poesia só pode realizar seu potencial na história, é fundamental que percebamos ali mesmo seu “desenvolvimento libertador”, que pecebamos o seu destino nas contradições que ela supera, sabendo de antemão aquilo que a destingue do prosaico, do mundo rotineiro de todos os dias: “O objecto verdadeiro da poesia é o reino infinito do espírito” (Ibid., p. 30). Assim, ela é a busca “compreender uma multiplicidade de circunstâncias”, “mas deve apresentar este vasto conjunto de particularidades como estando subordinado a um só princípio” (Ibid., p. 33). A realização mais fundamental da poesia, portanto, está de algum modo atrelada a um monoteísmo capaz de pensar a diversidade, a um pensar a essência do mundo que não pode ser confundido com a “consciência vulgar”, prosaica do mundo, que aceita os fatos particulares na insignificância de sua “acidentalidade” (Ibid., p. 35). Porém, a consciência poética nada é sem esses acidentes. E aqui voltamos à influência herderiana, sobre a qual já falamos.
“Como a poesia tem por objetcto, não as generalidades da abstracção científica, mas todas as ideisas da razão individual, encontra a sua principal determinação no caráter nacional de que é uma emanação e cujo conteúdo e modo de concepção se tornam o seu conteúdo e o seu modo de expressão próprios, o que a conduz a um grande número de formas particulares. Com efeito, as poesias oriental, italiana, espanhola, inglesa, romana, grega e alemã diferem umas das outras pelo seu espírito, sentimentos, maneira de conceber o universo, expressão etc.” (Ibid., p. 37 e 38)

A poesia, lugar onde o geral e o particular se encontram de modo orgânico, vivo, varia no tempo e no espaço e essa variação está diretamente ligada à realização do espírito no mundo, o que vale dizer que encontraremos também nessa variação a estruturação de uma ordem e uma hierarquia. Mas a forma de subordinação que a suposição de um princípio estruturador do mundo implica é curioso, pois ele difere, por exemplo, do pensar técnico, no qual a particularidade é apenas um meio para atingir um fim. Na poesia, cada particularidade conta com sua própria dignidade, “cada parte, cada momento são interessantes em si, porque dotados de vida” (Ibid., p.44). E sobre isso já falamos em um post anterior: a arte não deve ser concebida como meio para a obtenção de nada; ela é essencial e, como tal, possui uma dignidade incompatível com a instrumentalização (Ibid. p. 57 e 58). (Vai entender Dostoievski, que escreveu obras-primas com o propósito de pagar suas dívidas!). A poesia nos retira da “prosa da vida”, ou seja, de nossos engajamentos cotidianos em que o mundo se torna irrefletido e, portanto, fundamentalmente instrumentalizável. Que a poesia, a arte, possam ser pensadas como uma esfera privilegiada nesse exercício de combate à alienação, parece-me uma herança clara do Romantismo de Jena, no que pese Hegel não postular, como aqueles, que a arte ocuparia o papel mais elevado na realização plena do ser humano.

Na medida em que é um exercício de estranhamento com relação ao mundo dado, à prosa da vida, a poesia é um ato crítico. “Ao tratar o elemento sensível com esta atenção, […] acrescenta-se à seriedade do conteúdo qualquer coisa que o torna mais distante, menos familiar e transporta tanto o poeta como o auditor a uma esfera de serena beleza” (Ibid., p. 89). Acerca do tratamento poético da vida quotidiana, poderia ser dito aquilo que Hegel diz acerca de certos constrangimentos que o poeta tem para se expressar, como, por exemplo, o uso da rima. Esse obstáculo não constitui um limite à expressão poética, mas um elemento que o “eleva e ajuda” (p. 88). A poesia, portanto, está ligada à organicidade entre vida e espírito que nos permite retomar algo já dito nessa série de posts: para Hegel, a história, seu desdobramento em contingências, está inextricavelmente relacionada à realização da razão no mundo. É a partir da contradição, da contingência, da particularidade que o espírito se desenvolve nesta direção. Constatar isso, é um passo para apreciar a necessidade de se pensar a própria história da poesia como exercício através do qual se perceberá a direção ruma à qual esse desenvolvimento se produz. Isso me levaria agora a discorrer sobre poesia épica, sobre a poesia lírica e sua síntese na poesia dramática. Mas a preguiça é maior do que o progresso de meu espírito. Digo apenas que são páginas memoráveis.

[e mais uma vez não vou reler o que escrevi e identificar erros. Almas boas, espíritos de luz, gente da terra do frevo, do semba, da catira, do bumba e do fandango, ajudem.]


9 comentários:

Tâmara disse...

Jonatas,
Esse sapo po's-rabada esta' tão inspirador... Até fiz um ra'pido comenta'rio ontem a respeito, mas acho que esqueci de publicar.

Eu não estou na lista dos que podem lhe ajudar (minha alma não é la' muito boa, minha terra não é marcada por esses ritmos e espi'rito de luz é defunto; Deus me livre e guarde!).Mesmo assim vou pitacar.

Em termos de forma, acho que essa parte 3 esta' bem mais enxuta do que as anteriores - sobretudo em relação à parte 2. Em termos de conteu'do, você vai perdoando minha não familiaridade com o tema, mas fiquei pensando na velha dissertação de um amigo filo'sofo, onde,se minha memo'ria não me engana, a problema'tica era a cri'tica hegeliana à autonomia da arte moderna. Sendo assim, acho que o que ficaria marcado seria a oposição hegeliana ao romantismo. Pensei inicialmente que seus posts faziam o caminho contra'rio mas, no final das contas, parece-me, posso estar dizendo besteira, que você trabalha tanto a oposição como a afinidade. E que é a mesma idéia sobre o movimento do espi'rito que aproxima e opõe Hegel ao romantismo: tese/anti'tese/si'ntese. As vezes Hegel parece-me monstruoso com sua dialética! Acho que compreendo o medo que Artur tem dele...Abraço, Tâmara

Le Cazzo disse...

Oi, Tâmara.

Sua ajuda é preciosa - e se estiver disponível em aquivo digital, você bem que poderia me enviar a dissertação do seu amigo. Acerca do que você está falando, veja a coinciência, estou terminando de ler um artigo de um cidadão chamado Marco Aurélio Werle, que trata da ideia da crise da arte moderna em Benjamin e Hegel. Pessoalmente, penso que nem em Hegel nem em Benjamin a arte moderna está em crise. O que li de Hegel leva a entender que a arte se realizará e que não devemos lamentar a sua separação da religião. Acho que deveria ter escrito, afinal, mais duas páginas sobre a poesia na história - acho que vou fazer uma versão 2.0 do último texto, que está enxuto por pura preguiça. Então veremos a dialética funcionando. No final das contas, Hegel não lamenta que a arte não seja mais aurática, como, de resto, essa também não é a postura benjaminiana - no que pese isso não ficar claro em uma das versões da "Obra de Arte...".

Para ser coerente com Hegel, acho que precisamos entender que ele se vê como síntese entre o pensamento clássico (e o modo como este foi apropriado pelo classicismo na Europa moderna) e o romantismo. Como toda síntese, ela pretende ser uma superação, mas ao mesmo tempo uma continuação do antigo de um modo superior, mais profundo. O romantismo foi fundamental para pensarmos a espiritualização da arte, mas ao mesmo tempo, insuficiente para pensarmos na realização concreta do Espírito no mundo. Há em Hegel um 'realismo' que será extremamente importante para o marxismo: o progresso é feito das coisas concretas, contingentes do mundo. Daí podermos dizer que, dessa perspectiva, toda crítica é herdeira.

E eu tenho medo de Artur, que é muito mais perigoso do que o falecido Hegel. Abraço, Jonatas

Artur disse...

Perguntas, ô senhor das rabadas hegelianas (opa!):

- vc percebe alguma relação entre a visão hegeliana da poesia e a noção de autenticidade?

(pensei nisso, já que vc pesquisa relações entre Hegel e o romantismo)

- em Hegel, há algum sentimento moral na poesia?

- na poesia, justamente no combate à alienação, a interioridade estaria resguardada de alguma forma?

- a poesia moderna revelaria uma nova forma de interioridade, uma profundidade íntima jamais vista no mundo antigo?

(nesse raciocinio, a poesia, no fundo, é para Hegel, o que a música é para os românticos)

Continuo com medo de Hegel.

Le Cazzo disse...

General,

São perguntas interessantes, pena que minha competência em Hegel seja ainda mirrada para respondê-las de modo competente.

Você poderia falar um pouco mais sobre a noção de autenticidade?...

É possível dizer que, em sentido amplo, em Hegel há um sentimento moral na poesia, contanto que entendamos que nenhuma boa poesia pode ser feita se o poeta pretende ser agente moralizador. Como ele disse, a poesia não deve ser instrumento de nada.

A poesia clássica não é tanto acerca da interioridade; a poesia romântica, cristã, o é mais. A poesia épica nem tanto, a lírica bem mais. É curioso ver que a alienação é em Hegel, como o era já em Fichte, um momento fundamental da realização do espírito, do processo de plena humanização: sem se perder o cidadão não se acha - o que é uma ideia também romântica: já dissemos isso acerca de Novalis, no Cazzo. Em Hegel, a poesia é uma das formas através do qual o Espírito se realizará na História, ou seja, vencerá por fim a alienação. Agora, perceba que o mergulho romântico na interioridade ainda é para Hegel alienação, ou seja, ainda não é a solução.

A interioridade não é marca da arte clássica, mas da arte cristão e romântica. (Mas acho que vou ter, afinal, de fazer a versão 2.0 onde isso vai ficar claro. Há muito o que se comparar sobre a perfeição formal, como tradução da espiritualidade da arte clássica e a arte romântica).

A poesia ocupa um lugar destacado na estética hegeliana. Mas, diferentemente dos românticos, Hegel nunca acreditou que esse fosse o lugar mais alto de sua filosofia.

Abraço, Jonatas

Artur disse...

Quando falei em “autenticidade”, pensei em Charles Taylor: a « autencidade » é uma ética. Teria suas raízes nalguns individualismos mais antigos, que implicaram algumas formas de responsabilidade: o racionalismo cartesiano, isto é, a responsabilidade de pensar por si mesmo; o individualismo político de Locke e o peso atribuído à vontade e a capacidade decisória do indivíduo.

Os humanos teriam um senso moral inato, uma intuição básica para saber o que é o bem e o mal. Sabe aquelas conversas interiores, talvez vozes, de que Cynthia fala tanto, cuja manifestação pensei que fosse esquizofrenia? Não, não, são outras coisas, ainda mais que se originam de dentro da pessoa, não podendo ser consideradas propriamente uma alucinação auditiva.

É uma voz que funda essa nossa interioridade (desconheço isso, infelizmente, pois sou oco). Vc já viu Cynthia falando sozinha?! Pois é… Essa voz interior deixa-nos em contato com nossos sentimentos morais; assim, podemos agir corretamente.

Ocorre um deslocamento moral de fora para dentro, pois nossos sentimentos morais são inatos, estão dentro de nós. Esse contato profundo com nossa interioridade é um contato moral. Onde está nossa verdade? Em nós mesmo. Autêntico é o sujeito que é fiel à sua verdade. A Fonte que estava Lá, está Aqui. É uma baita mudança moral na subjetividade humana. Temos um íntimo, e bem profundo. É a invenção do eu monadológico.

Pelo que entendi de Taylor, Rousseau e Herder dão mais dois passos adiante na fundação moderna da autenticidade. O primeiro pedia para prestarmos atenção à voz da natureza que está dentro de nós. Nossa salvação moral passa por um contato autêntico com nós mesmos. Esse contato autêntico é um contato íntimo. Esse tipo de conexão, que no mundo contemporâneo só gera depressão, é fonte de alegria para Rousseau (e para os psiquiatras). É o que chama de “sentimento de existir” (li isso em Taylor, repito).

Mas o teu Herder, que vc gosta tanto, vai mais longe ainda: eu sou a minha própria medida. Eu tenho a minha maneira de ser humano. Devo vivê-la, pois autenticidade é verdade e felicidade, e não imitar outras formas de vida -- aliás, não preciso imitar ninguém, pois o modelo está aqui dentro de mim.

Devo ser, horribile dicto, sincero (é muito dever nessa ética da autencidade). Sinceridade é fundamental, pois é um caminho de realização. Assim, sendo autêntico, sou original. Olha aí o princípio de autenticidade fundando outro: a originalidade. Ao ser sincero, sou fiel à minha originalidade; inclusive, só eu mesmo sei o que ela é e deve ser.

(imagine meu desespero procurando dentro de mim algum modelo viável de Artur)

Enfim, realizo meu potencial sem precisar do Outro.

Nesse sentido, Hegel não é romântico. Ele não busca a autenticidade. Seu sistema não é sincero. A interioridade de seu sistema parece mais uma prisão. No fundo, é um mentiroso. Um canalha baba-ovo do Estado Prussiano (hehe) – o Outro de sua filosofia.

Cynthia disse...

O mundo todo está lendo Taylor, ou é impressão minha? Quando não está chovendo, tenho levado meu livrinho para debaixo de um coqueiro e passo horas em companhia do moço. Ao contrário de Artur, o homem do vazio interior, estou gostando muito.

Le Cazzo disse...

Bem, General.

Vossa Mercê já tem sua própria resposta - e chegou com emoção e furor a ela, como pode ser constatado no final de seu comentário. Se você fala de autenticidade em termos liberais, estaremos distantes de Hegel e também de Herder. Hegel é uma base conhecida da crítica ao liberalismo no século XIX - donde provém Marx, por exemplo. O particular e o geral estão sempre integrados, o sujeito não é maior que sua cultura etc. etc. Suspeito que um hegeliano, como Taylor, deva fazer alguma ginástica para aproveitar esse conceito no seu trabalho - mas conheço pouco Taylor, embora o esteja estudando por conta de Hegel. Só não tenho o conforto de uma casa na praia, com coqueiros e 10 eunucos servindo-me água que passarinho não bebe, fazendo cosquinha na sola do meu pé e cantando a ária da Rainha da Noite. Ai de mim, para tais confortos não nasci.

Heidegger é outro que também usa o termo - e mesmo os heideggerianos acreditam que tenha sido um vacilo à metafísica do sujeito do velho MH.

Quanto a Herder, fomos apresentados apenas recentemente, não acredite no que Nelson Rubens, o bravo Alex ou a Candinha andam dizendo aí em João Pessoa. Mas as coisas de Herder (por favor não me entenda mal) estão mais voltadas para refletir acerca da importância da cultura, da língua nacional, como limites de nossa realização mais autêntica. Pouco liberal, não é?

Qual é o livro em que Taylor fala sobre autenticidade? Interessa.

E, Cynthia, não acredite no vazio interior de Artur. Depois da mão de vaca que eu o vi traçar no Mercado de São José neste sábado, ele estará pleno por uma semana, no mínimo.

Artur disse...

Sou oco, só tenho vísceras. E cheias de mão de vaca.

Mas eu gosto de Taylor, Cynthiazoca. Escreve bem e de forma clara. Tenho a sensação de que o entendo. Isso me deixa feliz.

Tenho interesse nas discussões sobre a formação do individualismo (por isso, gosto tb das análises de Alain Renaut, um filósofo liberal francês).

Acho que Taylor fala de autenticidade nesse livro: "As fontes do self".

O livro sobre Hegel é bom?

Le Cazzo disse...

Tenho esse, vou ler. Há dois dele sobre Hegel. Um traduzido para o português. O outro vi que está disponível no 4shared. É claro que eu não baixei, pois ando dentro da lei, mas que está disponível, chamando você pelo primeiro nome, está. Gostei muito do que saiu aqui no Brasil. Jonatas