terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Tentativa de autoanálise: Jampa e o feminismo


Por João Paulo Silva Filho

Feminismo: coisa de homem?

A sugestão desse texto partiu de um diálogo que tive com a professora Cynthia Hamlin no Facebook. Depois de ter linkado esse depoimento que havia lido, escrevi a seguinte chamada para o texto:

Feminismo, coisa de homem. Ser contra injustiça pode ser um aprendizado de uma vida. E não é fácil. Vale muito a leitura desse texto de autoanálise.

O que me valeu a seguinte resposta: ‎"Feminismo, coisa de homem". Jampa, apesar de ter entendido o que vc quis dizer, essa sua frase dá margem a umas interpretações complicaaaadas...

O diálogo continuou até chegamos ao essencial: Aliás, Jampa, vc poderia fazer sua autoanálise e doá-la para o Cazzo, não?

Aqui estou.

Mas, como dito, não creio que minha autoanálise vai render tanto como a que fez a própria Cynthia por aqui. Aliás, muita coisa boa tem aparecido na internet nesse sentido. Como o blogue feminista que promente ser bom, composto de estudantes da USP, que entrou no meu radar pelo Biscoito, o Quem mandou nascer mulher?

Passei dois longos dias pensando como fazer uma reflexão pessoal sobre minha relação com o feminismo que não fosse íntima demais para perder o seu interesse público. E ao pensar nisso, ocorreu-me o primeiro elemento de dificuldade que terminou por ser o mote do meu texto: as diferenças e semelhanças entre minha relação com o feminismo (mais intelectualizada), com a reflexão feminista, com o universo de reivindicação de amigas ativistas - e as minhas relações com o sexo feminino (mais mundanas), mais concretamente, as que nutro com as mulheres que me rodeiam, amigas, filha, mãe, esposa, etc.

Existe um claro descontínuo entre esses dois tipos de relação. O estranho é o seguinte: relacionadas entre si no plano da análise (falo da relação com o feminismo e da relação com as mulheres), as questões feministas, para mim sempre mais reflexivas, tendem sempre a ficar em suspenso nas relações concretas estabelecidas com as mulheres no dia-a-dia. Não sei se isso chega a ser um dilema, mas essa tensão aparece na minha reflexão sobre mim mesmo com alguma frequência. Escolhi falar apenas do primeiro aspecto (relação intelectualizada com o feminismo), porque o segundo já implicaria ter vencido as resistências que na verdade, no máximo, consigo apenas reconhecer. O que mostra que o conhecimento de uma limitação quase nunca é suficiente para se liberar de certas amarras.

Vamos então ao reconhecimento da minha fraqueza reflexiva masculina: sei que minha resistência existe, mas a percebo com mais clareza na relação mais direta com o feminismo, daí aceitar para mim o foco do feminismo como quem aceita, sem saber exatamente como funciona o mecanismo que o produz, o efeito terapêutico da psicanálise. Antes de exemplificar esse primeiro locus do mea culpa, façamos uma digressão para expor como a sociologia aparece para mim a um só tempo como elemento integrante da minha resistência (sempre entendia no sentido freudiano de denegação) e meio para transpô-la (a resistência) pela reflexão: a sociologia volta num segundo momento, mas como recurso analítico das causas da resistência.

É preciso, para isso, situar minha visão da sociologia e como tendo a instrumentalizá-la para me situar no mundo. Dois pontos para mim são essenciais: 1) a socialização e, 2) por conta dela, a história, entendida como acúmulo do passado nos indivíduos condicionando a ação dos agentes/atores nos mais diversos contextos sociais. Resultado: a história da relação com as mulheres é (necessariamente) um elemento importante e deve ser levado em consideração para entender a "socialização masculina", mesmo a que produz os seres mais desprovidos de sensibilidade com a chamada "questão da mulher". Foi movido por essa ideia que pude, em minha tese, reconstruir os esquemas de socialização de Paulo Honório, protagonista do romance São Bernardo, de Graciliano Ramos, levando em conta a multiplicidade de formas de se relacionar com o sexo oposto, todas elas descritas na narrativa como fazendo parte da história de vida da personagem. Paulo Honório, violento e machista, por conta da ambivalência e complexidade das relações estabelecidas com as mulheres durante seu período de formação, pôde, num dado momento, depois de causar a morte de sua esposa, refletir sobre sua própria condição de homem, percebendo aspectos importantes de seu comportamento, forma de agir e ser da qual se arrepedia amarguradamente. A dominação gerou a perda, mas o que tornou possível a reflexão autoanalítica contida no romance narrado em primeira pessoa? Eis a pergunta que moveu minha análise. Se Paulo Honório estivesse 100% convicto de que fez o que tinha que ser feito, se fosse um macho socializado totalmente no regime dos valores de sua dominação, como poderia ele questionar a matéria prima de seu comportamento? Percebam que, como analista, usei as ferramentas da sociologia não para inculpar o protagonista, mas para reter as informações correspondentes ao seu processo de socialização e sua atualização (no presente) como mote performativo da trama do romance. Uma crítica feminista teria a meu ver ido mais longe, revelando a incapacidade dele de se dar conta de tantas coisas importantes antes da morte da mulher. Tive uma boa trocas de ideias a esse respeito com Ana Paula Portella, que por e-mail avaliou o limite do alcance crítico da empreitada analítica que empreendi. Empreitada de homem?

Depois dessa primeira digressão, pode-se com mais clareza ver o que simboliza minha resistência (mais uma vez, no sentido de Freud): como sociólogo que nunca estudou as relações de gênero (na verdade, só um pouquinho, para aquela que foi parte ínfima de minha tese), minhas opiniões tendem a ser "deslocadas" do foco central da crítica feminista, tornando meu esforço de compreensão de alguns eventos, uma mise en abstraction das questões concretas postas à luz do dia pela reflexão das feministas.

Exemplo concreto dessa abstração pode ser lido aqui, quando me posicionei a respeito do caso Eloá. Na época, li várias análises de trato feminista, mas me recusava a aceitar o argumento central das teses ali defendidas, como quem tem medo de ver o óbvio que elucida sua posição de dominação.

Num texto para lá de mal escrito, já sob efeito da mais pura denegação masculina, tentei mais uma vez reafirmar o meu propósito: nem tudo é questão de gênero, e blá, blá, blá. Uma amiga de doutorado, das mais inteligentes colegas que conheci, comentou o que hoje eu mesmo vejo como meu despropósito:

"Oi, Jampa, Acho legal essa tentativa de diálgo com o feminismo… Mas acho de fato que algumas questões ainda são cegas para você, tudo que você fala é legítimo, mas o buraco é muito mais embaixo e muito mais profundo. Existem elementos que realçamos porque de fato enxergamos assim em nossa cultura, ocidental e oriental, com as suas nuances tão específicas… de submissão e menor valoração às mulheres. Vejo muitos relatos e inclusive os jornais colocam o “amor que mata”. Só essa frase, que em si é absolutamente cega, já diz muito da compreensão equivocada, inclusve das pessoas que querem tratar o caso seriamente. A questão da vítima realmente é muito mole para ser pega, pois se ampliarmos isso, Lindembergue também é vítima de uma lógica de amor e de relações que o fez acreditar que sem ela ele não podia viver, e que sem ele ela deveria ser morta... Acho que faltam elementos, e por mais que o seu diálogo seja sincero, ele ainda tem ficado, do m eu ponto de vista, “nas boas intenções”, e sei que o esforço é válido, mas, usando uma frase de uma amiga: “os homens podem se compadecer da situação das mulheres, mas nunca padecer”. E quando leio o que você escreve, ao menos para mim, fica claro o seu lugar de homem nos pontos de vista que defende… não quero tratar aqui de uma guerra dos sexos, mas dos elementos e das discussões importantes para permitir te alavancar desse lugar."

Volto aqui ao ponto inicial do meu mea culpa para com isso tentar concluir essa breve autoanálise: foi através da relação direta com as feministas, e as questões e argumentos espinhosos que põem em questão a posição particular em que os homens estão situados para refletir sobre os eventos, que pude sempre me dar conta do tamanho da minha resistência. E isso já aconteceu em diversas ocasiões, como o exemplo acima ilustra. Por essa razão, no diálogo no Facebook, defendi que esse lugar específico ocupado pelo homem, que o coloca inclusive na defensiva porque ele se julga ameaçado de perder o lugar que ocupa no sistema de dominação, não pode ser desconsiderado para a reflexão que prescinde de análise sobre a especificidade da resistência masculina ao feminismo. É um ponto de vista que defendo, acredito, que não se confunde com o comentário que Nicole fez:

"Pra mim o problema que deriva do que Cynthia esta dizendo é algumas pessoas acharem que esse processo da aceitação do feminismo pelo homem é mais árduo do que a aceitação feminina, que ocorreria de forma mais 'natural'. E sabemos bem que esses movimentos de aceitação, tanto masculino quanto feminino, são de certa maneira indissociáveis e co-dependentes."

Em nenhum momento eu quis defender que seja mais fácil para mulher que para o homem (em termos de socialização dos esquemas de dominação, ou seja, da incorporação desses esquemas) aceitar as teses centrais que o feminismo defende (aliás, que os feminismos defendem, não podemos esquecer). Apenas acredito, como sociólogo, que não se pode ignorar o lugar do qual o homem socializado atua ao aceitar ou recusar tais ideias. O mesmo deve-se fazer em relação a mulher socializada e ao feminino. Isso se quisermos dar alguma concretude aos debates abstratos sobre socialização do feminino e do masculino. A questão que me faço é de sociologia da dominação, dos espaços ocupados que não querem ser perdidos, dos capitais simbólicos que designam superioridade etc. esse topos que situa concretamente os agentes na hierarquia social que a estrutura de dominação de alguma forma agencia. Negar isso seria, a meu ver, negar a realidade díspar que é a razão de ser do feminismo, dos embates contra a situação estrutural de inferioridade. Veja que discuto teoricamente o que poderia ser debatido através de questões mais concretas, através de categorias que visassem captar essa disparidades em seus contextos específicos...

Mas como não quis expor, por mil e uma razões, as minhas dificuldades mundanas, da ordem da conviência pessoal com o sexo feminino, e não tenho pesquisas nessa área, achei melhor me ater à minha modesta relação intelectual com o feminismo. Julgo que nas relações concretas poderíamos encontrar também elementos não menos essenciais para analisar os fatores que freiam ou fazem avançar - em uma figura que se julga heterossexual como eu - sua sensibilidade em prol da causa feminista. Isso fica para uma oportunidade futura, quando tiver ponderado com mais clareza sobre os recalques corriqueiros de minha masculinidade.

15 comentários:

Artur disse...

Um homem não pode ser feminista, mas pode ser aliado do feminismo. É isso, no fundo, o resultado do habitus da dominação masculina?

Cynthia disse...

Eita, boa pergunta, Arture.

Jampa disse...

Arture, eu acho que concretamente um homem pode ser feminista (lutar ao lado das feministas pela eliminação das disparidades de gênero), isso ele pode fazer em vários planos. Agora, no plano terórico... reflexivo, o que ele não pode esquecer é que ele não se se desfaz de suas disposições apenas por ter tido acesso ao aparato crítico do feminismo.Isso é verdade também para mulher... se falo da socialização, não da posição no sistema de dominação. Diria então que o habitus é, na forma que é tratado na minha análise, ainda mais modesto do que o que você sugere. Ele revela apenas um óbivio social: a vontade individual não é suficiente para mudar, de uma hora para outra, o curso de uma "maneira de ser". Uma tautologia que me parece reveladora de muita coisa que deveríamos lembrar e, quando esquecemos, ajudamos a reproduzir fenômenos de desigualdade.

Artur disse...

E é uma dúvida mesmo, pois não saberia responder. Notei que, na tua análise, Jampa, é forte a referência a Bourdieu. Tentei raciocinar dentro desse quadro analítico (claro, é provável que tenha vulgarizado o coitado do Bourdieu); mas, num blog, é permitido o risco -- assim, meu raciocínio foi o seguinte:

até onde vai a força do "habitus"? Qual é o alcance de seu "determinismo"? Suponho, aqui, que o habitus de gênero é muito mais básico e impregnável do que, por exemplo, o habitus de classe. Digo isso, porque acho possível a reversão ideológica na dominação de classe, isto é, tentando raciocinar como um marxista, um pequeno-burguês pode assumir o ponto de vista de um operário.

(não sei se posso fazer tal afirmação. Por isso, talvez, a necessidade de “intelectuais orgânicos” da classe operária)

Falei de reversão ideológica, uma reforma moral e cultural, digamos assim. Acho que a reversão de um habitus de gênero precisaria mais do que uma reforma moral e cultural – o gênero implicaria (muito mais do que no habitus de classe) uma reversão psíquica, isto é, uma transformação bem mais estrutural na socialização primária. Ou, em outros termos: pode-se, em tese, “escolher” sua posição moral, mas é muito mais difícil (ou impossível) “escolher” seu gênero.

O que isso implica? Implicaria dizer que a condição necessária para ser feminista é ser do gênero feminino? Implicaria dizer que não posso ser feminista, por causa do determinismo do meu habitus no meu psiquismo, embora possa adotar posições morais próximas ao feminismo? Talvez, para ser feminista, um homem precisasse de um caminho para Damasco (uma catarse) comparável àquele que transformou Saulo em Paulo.

(É raríssimo um homem participar do núcleo decisório de uma organização feminista. Seria por causa disso?)

(E, se o habitus de gênero molda o psiquismo, faria o mesmo com a cognição. Seria, por isso, que nunca entendi a epistemologia feminista? Hehe... Acabei de oferecer meu pescoço para o machado de Cynthiazoca)

Bem, não sei se acredito na minha argumentação. De todo modo, na Arturolândia, minha sociedade comunista particular, além de não existir a Coisa, o gênero seria uma escolha moral. Seria um mundo onde a socialização primária viraria um completo artefato social. As bases biológicas do psiquismo, em relação ao gênero, escafeder-se-iam. Haveria uma desestruturação do gênero, deslocando-o para o campo da moral, isto é, para a liberdade e para a vontade. O gênero, enfim, libertar-se-ia completamente do sexo. Nesse mundo, o gênero seria uma questão de fórum íntimo, um diálogo com nossa voz interior, uma questão relacionada à autenticidade (hehe).

Jampa disse...

Acho que suas perguntas, Arture, são muito pertinentes, mas eu também não teria respostas para elas, talvez por partir de outro foco, de outra postura reflexiva.

Marx tem uma frase que para mim sempre resumiu o significado de todo realismo sociológico que se preze: não confundir as coisas da lágica com as lógicas das coisas. Dsse mote de forte impostação epistemológica - a sociologia deve sempre recuar quando o modelo explicativo passa a ser visto como correlato da realidade, e só pode fazer isso inferindo a resitência do mundo real que obedece lógicas de funcionamento que não são correspondentes às lógicas usadas pela razão -, deriva-se a maneira na qual os conceitos (socialização, habitus) se relacionam com os fenômenos observáveis (feminsmo, resitência ao feminismo). É esse o pano de fundo de minha autoanálise, que enfraquece, do ponto de vista da ambição teórica, o alcance da abrangência propriamente formal do conceito, que passa longe das questões ontológicas sobre o gênero.
Um conceito como habitus é curioso por conta disso. Visto dessa maneira entendemos melhor porque a noção se comporta de maneira diferente quando utilizada para dar conta de objetos distintos. Isso acontece na própria obra de Bourdieu, o habitus tende a captar elementos estruturais quando analisa objetos como "sistema de ensino na França", mas perde esse nota, digamos, mais estruturalista, quando analisa as trajetórias de vida para situar e descrever a socialização. Um exemplo próximo de nós derivado dessa perspectiva está no trabalho de Sergio Miceli, que identifica uma correspondência entre a socialização primária (femininizante) dos intelectuais e estabelece e as escolhas na trajetória profissinal desses indivíduos. Talvez nesse sentido a socialização diga menos sobre a ontologia do ser social do que gostaríamos que ela dissesse. Na minha modesta opinião, acho que não cabe a sociologia tratar dessas coisas. Eu posso até estar compartimentando demais as formas de concepção do conhecimento sociológico, mas como dito, confio profudamente na especificidade histórica da sociologia como disciplina.
Sério, fazia tempo que não discutia teoria dessa forma. Não forcem que estou enferrujado.

Cynthia disse...

Deixa ver se eu entendi:

Artur defende que a “ideologia” de classe pode ser mudada via alterações na socialização secundária; já a ideologia de gênero só pode ser mudada via alterações na socialização primária porque é, em algum sentido, mais “fundamental” na determinação da personalidade do que a primeira. (Tu eras marxista, arture?).

João Paulo defende que alterações no processo de socialização (seja primário ou secundário) não fazem diferença para a forma como os homens vêem o mundo porque o elemento determinante da ideologia de gênero seria a posição social; por outro lado, também defende que as mulheres precisam ter acesso ao “aparato crítico do feminismo” para que se tornem feministas, ou seja, a posição social não é suficiente para se perceberem como feministas.

Conclusão: para Artur, o feminismo é uma essência, um fundamento da feminilidade; para Jampa, o feminismo é...

impossível?

É isso?

Jampa disse...

Cynthia, mais do que achar que o feminismo é possível, eu acho que, como sociólogo, não poderia negá-lo, nem se quisesse. Só não estou preocupado com a essência dele e sim com suas manifestações empíricas(históricas) que, a meu ver, só podem ser bem analisadas, considerando-se o aspecto do passado social dos agentes. Para mim o que importa é que há mulheres e homens que aderem ou deixam de aderir a defesa pela igualdade social nas relações de gênero. Se isso é ser e não ser feminista em absoluto, como disse, não teria condições de responder. Eu sei que, politicamente, aceitando para mim que seria melhor viver numa sociedade mais igualitária como princípio, ainda teria que vencer amarras decorrentes de uma longa socialização. E que isso não é tudo, porque pertencer ao gênero dominante traz implicações específicas na própria luta interna contra o que você se tornou. Eu acho de achismo puro, que a sociologia crítica pode ajudar nesse processo reflexivo. Daí a relação que estabeleci entre socioanálise e psicanálise. Nesse sentido, para quem se auto-intitulou positvista tosco como eu, estou muito mais próximo com meu cientificismo sociológico da fenomenologia do que muita gente poderia inferir, se me julga apenas pela defesa que faço do uso das técnicas de pesquisa.
Nesse sentido eu até me considero feminista, só não sei ainda se as feministas assim me consideram. :)

Cynthia disse...

Jampa,

eu entendo seu ponto de vista. Mas acho que o que está lhe escapando é uma pergunta fundamental, colocada pelo movimento feminista (e aqui estou falando do movimento social, não das abordagens teóricas) que foi retomada por Artur: os homens podem ser feministas (i.e., aceitos como agentes do movimento social), ou "simples" aliados do feminismo? O mesmo poderia ser colocado em relação a travestis e transexuais, por ex.

Pensar isso implica pensar coisas como a unidade do sujeito mulheres, possíveis relações de identidade e diferença em relação aos homens e aos transexuais etc. Isso, por seu turno, implica pensar a base de uma suposta identidade (biologia, experiências, moral etc).

Não creio que essas questões fujam ao escopo da sociologia: ao contrário, suspeito que qualquer pessoa que trabalhe com movimentos sociais (um tema sociológico por excelência) se veja obrigado a refletir sobre isso.

Neste sentido, simplesmente afirmar que, historicamente, os homens ocupam um lugar de dominação que é difícil de ser rompido não chega ao cerne da questão. Também não dá conta do fato de que nós, mulheres, fomos socializadas em uma cultura patriarcal (ou seja lá que nome se queira dar a essas relações de dominação masculina).

Aí fica uma pergunta como provocação intelectual: para quê um arsenal conceitual tão sofisticado se a resposta à questão poderia simplesmente ser colocada em termos de senso comum? Não é complicar as coisas desnecessariamente ou, pior, talvez conferir uma aura de "cientificidade" a algo que já está dado por meio do uso de um jargão técnico? Colocando a questão de outra forma: que vantagens (epistemológicas, se vc quiser), o fato de ser sociólogo lhe confere em sua autoanálise? Qual o papel dessas "abstrações" teóricas no processo?

Entenda, não estou desqualificando sua reflexão: ao contrário, acho-a relevante e necessária. Apenas estou tentando apontar que vc pode aprofundá-la ao trabalhar um pouco mais o que vejo como uma espécie de resistência às questões teóricas, aparentemente removidas da realidade concreta.

Jampa disse...

Cynthia,

também entendo seu ponto de vista. E respeito, de verdade. E havia entendido a provacação de Arture no bom sentido, no de me induzir a uma reflexão mais aprofundada das coisas que havia dito.

Como você bem notou, meu ponto de vista é simples, mas não simplista. O ponto central que você coloca é: para quê um arsenal conceitual tão sofisticado se a resposta à questão poderia simplesmente ser colocada em termos de senso comum? Não é complicar as coisas desnecessariamente ou, pior, talvez conferir uma aura de "cientificidade" a algo que já está dado por meio do uso de um jargão técnico? Colocando a questão de outra forma: que vantagens (epistemológicas, se vc quiser), o fato de ser sociólogo lhe confere em sua autoanálise? Qual o papel dessas "abstrações" teóricas no processo?

Vejo duas vantagens: 1) a própria tensão, estabelecida na prática científica em disciplinas como a sociologia, no estabelecimento prático do conhecimento construído pelas técnicas de análise, gera tipos de conhecimento que são diferentes do senso comum. A sociologia é uma espécie de Wikileaks da realidade social. Veja, falo de fenomenologia, mas ela aparece como elemento a ser considerado, as subjetividades não encerram o procedimento analítico da sociologia. Acredito na ruptura epistemológica e em suas propriedades objetivantes (inclusive das subjetividades). Mas tudo isso precisa ser considerado in loco, em pesquisas concretas ao risco de também se tornar uma fómula vazia, como vejo em muitas análises de foco bourdieusiano. 2) Isso implica dizer que o papel da teoria não é recriar um equivalente perfeito da realidade, e que só a pesquisa pode mensurar a qualidade da teoria, porque o "modelo explicativo" decorre da capacidade do sociólogo de vencer as resistências do real para compor uma análise razoável, inteligível e consistente do fenômeno estudado. O que me incomoda, na maneira como a questão é colocada, na verdade, é que ela postula que devemos construir o telhado da casa antes de sujar as mãos com suas bases. Por favor, peço descuplas por minhas metáforas sempre do senso comum. Mas é para dizer que já acho que antes de se perguntar sobre as possibilidades ou não de ser feminista,sendo homem ou não, (do ponto de vista estritamente sociológico),devemos analisar o que é ser e não ser feminista historicamente (o que não excluí a análise do presente, a meu ver). Na verdade, eu tenho uma resistência às questões teóricas sim, devo reconhecer.Acho, porém, que é por não conseguir removê-las da realidade concreta. Uma e outra estão para mim unidas de tal forma que só uma pesquisa pode de fato avaliar a perfomance, digamos assim, da teoria.
Sei que é um ponto de vista polêmico e que me estou vunerável a várias críticas.

Cynthia disse...

Jampa,

Pressupor que o critério de adequação empírica é o critério único de avaliação das teorias não é também pressupor aquilo que vc quer negar, isto é, que a teoria deve ser uma "cópia" da realidade?

A reflexão metateórica, neste sentido, não significa a construção do telhado antes dos alicerces, mas simplesmente não tomar como "dado" aquilo que é construído. Aliás, penso que o processo de autoanálise é uma forma de pensar acerca dessa construção (nossos preconceitos, "pontos cegos", identificações e desidentificações com certos processos e fenômenos etc), ou seja, antecede a pesquisa, propriamente dita (caso contrário, não faria sentido).

Creio que a questão mais delicada aqui é como, nós sociólogos, efetuamos esse tipo de reflexão com o auxílio de um conjunto de conceitos e categorias distintos daqueles que utilizamos na vida cotidiana ou no senso comum e que nos possibilite perceber que aquilo que tomamos como "dado" ou "empiria" ou "realidade" pode ser questionado. É neste sentido que acho que sua autoanálise pára onde começa a colocar as questões mais relevantes, entende? Mas, mais uma vez, não entenda isso como uma crítica pessoal: só acho que, independentemente de qualquer pesquisa empírica, vc tem mais pano para manga em sua autoanálise do que está disposto a utilizar.

Outra coisa: acredito que alguns desses elementos (como vc coloca em seu post) são de ordem pessoal e privada - em outras palavras, não precisam ser expostos para o mundo. Mas que tem muito mais coisa passível de ser avaliada aí, isso tem! Espero que vc dê continuidade a este processo (e no caminho, quem sabe, reavalie a importância das questões filosóficas no fazer sociológico).

É isso. No mais, admiro sua coragem de se questionar sobre uma questão que, certamente, faz com que vc tenha que sair de sua "zona de conforto". Isso não é pouco.

Jampa disse...

Cynthia,
muito obrigado mesmo pelas palavras de adimiração.
Sim, só lembrando, nenhuma das críticas feitas às minhas opiniões eu considero pessoais.E estou realmente gostando da oportunidade de expor meu self sociológico sem justamente ter essa preocupação "personalista", digamos assim.
Vamos lá:

"Pressupor que o critério de adequação empírica é o critério único de avaliação das teorias não é também pressupor aquilo que vc quer negar, isto é, que a teoria deve ser uma "cópia" da realidade?"

Sim e não se fomos bem weberianos, mas bem direitinho mesmo. Tipo, um Weber da Ética Prostestante. Veja, o que vou dizer não é nenhuma novidade. Inclusive aprendi muito disso em disciplina sua, na graduação.Falei da Ética porque é onde ele "aplica" isso. O que a inteligência faz, segundo Weber, é organizar o empírico disforme de maneira a satisfazer o intelecto que pode dizer: pôxa, essa explicação, pelo volume do material empírico utilizado, pela robustez do enquadramento teórico desses dados combinado às soluções metodológicas, etc., por tudo isso, esse tratamento parace condizer mais com o que acontece de fato no mundo social.É muito diferente de dizer: ah, através da ciência eu digo como é a realidade em si para si.Isso não impede, por exemplo, que outras correntes teóricas se apropriem do mesmo "dado" e diga outra coisa. Só que na minha opinião, se temos um referente "tido como tal", podemos avaliar a consistência da teoria pelo valor explicativo(descritivo e analítico)da proposta da pesquisa. O que resolve em parte o problema do realativismo, acho. Sinceramente, eu defendo com muito afinco essa perspectiva fraca e pragmática de conceber o estatuto espistemológico da sociologia.
1)porque a força teórica isolada produz ligações formais no conhecimento que não são fundamentais na produção de conhecimento propriamente sociológico. Acho que o conhecimento histórico(e com ele o sociológico, que é parte dele) se dá porque existe indexação das palavras-conceito aos contextos históricos que as tornaram possível. Daí a importância do domínio dos clássicos em nossa disciplina, porque as alterações semânticas nos conceitos, feitas para dar conta de contextos específicos, são as principais responsáveis pelo rendimento explicativo na sociologia.Uma teoria bem amarradinha, nesse sentido, a vezes atrapalha mais do que ajuda.É preciso por os óculos ainda sujos.

2)Dessa forma o conhecimento se dá e é avaliado no processo de confrontação dele - conhecimento já existente, através do que existe a disposição do sociólogo, conhecimento em vias de produção- com a realidade tida como dada, elemento de refenrecialidade do pesquisador.

Tenho dificuldade de expor essas ideias com clareza de forma teórica, já que são reflexões que me fiz para dar conta de objetos específicos de minha tese. Espero não estar muito confuso. Mas se estiver, é só dizer que eu tento novamente. É um defeito meu isso...?

Pedro Monteiro disse...

Muito interessante o texto e a discussao.
Parabens.

Uma pequena nota, Joao Paulo.
Voce disse que ficou "pensando como fazer uma reflexão pessoal sobre minha relação com o feminismo que não fosse íntima demais para perder o seu interesse público"

So queria observar (reforçando a provocaçao de Cynthia) que um importante insight do feminismo é sobre a importancia do "pessoal".

Ou seja, so queria apontar que pensar concretamnte na propria experiencia de que forma as relacoes de genero se estreturam è sempre importante.
Falo isso lembrando de um texto que Cynthia publicou ha algum tempo sobre um pai que levava seus filhos para aula.
Acho que se chamava "Um peixe fora d'agua"

Jampa disse...

Olá Pedro Monteiro,
Obrigado pelo comentário.
olha, eu acho que nesse ponto que você toca, eu e Cynthia condordamos. Fiz uma escolha de tratamento que achava mais conveniente porque não é fácil nem simples transformar o pessoal em algo com real interesse coletivo. Não que devamos só elaborar textos procurando a facilidade das tarefas, mas é um texto de blogue que tentou tratar da questão por um viés particular. O intento tentou fugir desses blogues (ou blogs) ou algumas contas de tuiter(ou twitter) que encontramos pessoas dizendo "acordei cedo hoje, e escovei os dentes". E você se diz, tá... mas... e eu com isso? Ou então, quando algum aluno chega para o/a professor@ e diz "eu não consegui fazer tal trabalho porque briguei com minha namorada, fiquei triste, não consegui trabalhar..." Não diria que essas coisas não tem interesse coletivo. Acho, porém, que para conseguir transformar esse tipo de informação em algo sociologicamente interessante seria preciso um esforço suplementar...Imagino, por exemplo, que a recorrência de desculpas esfarrapadas para justificar atrasos indiquem algo sobre uma cultura escolar, uma maneira de encarar o trabalho acadêmico, esquemas de percepção das coisas desse universo, etc. Mas para "provar" isso precisaria fazer uma enquete, entrevistar esse estudante, etc.
Isso para dizer que concordo com você, estudar como as relações de gênero se estruturam na própria experiência é algo muito importante.

Cynthia disse...

Jampa, só para constar (já que estamos nos afastando cada vez mais do tema do seu post), eu não defendo a teoria pela teoria, nem a teoria dissociada do trabalho empírico. Só acho que existe uma independência relativa das duas coisas e que algumas questões devem ser trabalhadas no plano lógico. O mesmo se aplica à história, que envolve determinadas decisões metateóricas.

Pedro, recebi seu email. Minhas férias terminam semana que vem: respondo então, ok?

Pedro disse...

Joao,
entendo melhor agora o seu "corte".

Cynthia,
sem problemas e sem pressa!
A ultima coisa que quero é atrapalhar as suas ferias =)