sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Twitter Revolutions?


Por Robert J. Brym
Department of Sociology, University of Toronto
rbrym@chass.utoronto.ca

Pro-democracy protests broke out immediately after the 2009 Iranian presidential election. Many Iranians felt that rigging the results in favour of the incumbent, Mahmoud Ahmadinejad, was merely the latest indignity they had suffered at the hands of a repressive regime. In 2010 and 2011, similar protests spread throughout much of the Middle East and North Africa. Tunisia, Egypt, Bahrain, Yemen, Algeria, Jordan, Libya – all of these countries were rocked by protesters, many of them young and well educated, taking to the streets and demanding regime change.

Growing working class literacy allowed pamphlets and newspapers to spread socialist ideas in nineteenth century Europe. Similarly, with more than a quarter of the Middle East and North African population connected to the Internet, Twitter and Facebook were used to voice grievances, debate tactics, publicize atrocities, and plan demonstrations in many Muslim-majority countries between 2009 and 2011 (“Internet...,” 2011). Many American commentators on CNN, Fox News, and the major television networks called the uprisings “twitter revolutions.” Is the term justified?

There can be little doubt that social networking sites helped the uprisings crystallize and spread. However, it is easy to exaggerate their importance. Only .027 percent of the Iranian population had Twitter accounts in 2009, and most tweets concerning the uprising were in English and originated in the United States and other western countries. In Egypt in 2011, the government basically pulled the plug on the Internet, after which demonstrations grew and intensified (Gladwell, 2010; Rich, 2011). These facts suggest that it was not American inventions (Twitter, Facebook, the Internet itself) that propelled the pro-democracy movement in the Middle East and North Africa so much as the brutal facts of everyday life in the region: widespread poverty and unemployment, low upward social mobility, and lack of freedom. Social media helped, but they were only a small part of the story.

More generally, it is important to note that most Facebook friends are really acquaintances and most Twitter followers don’t know the people they are following personally. It is relatively easy to get such socially distant people on social networking sites to participate in certain actions – but only if participation requires little sacrifice. The Facebook page of the Save Darfur Coalition has nearly 1.3 million members but they have donated an average of just nine cents each to the organization (Gladwell, 2010). Big sacrifices in the name of political principles require strong social ties, not the weak ties offered by Twitter accounts and Facebook pages. Typically, when individuals join a social movement, they attract clusters of friends, relatives, and members of the same unions, cooperatives, fraternities, college dorms, churches, mosques, and neighbourhoods. This pattern occurs because involvement in a social movement is likely to require big sacrifices, and you need to be close to others before you can reasonably expect them to share your ideas and willingness to sacrifice for a cause (McAdam, 1982). Relying mainly on weakly tied members of a Twitter group is insufficient. Social movement success depends on the sacrifices of dedicated activists bound together by strong social ties.

References

Gladwell, Malcolm. 2010. “Small Change.” The New Yorker 4 October. http://www.newyorker.com/reporting/2010/10/04/101004fa_fact_gladwell (retrieved 18 February 2011).

“Internet World Statistics.” 2011. http://www.internetworldstats.com/ (retrieved 18 February 2011).

McAdam, Doug. 1982. Political Process and the Development of Black Insurgency, 1930-1970. Chicago: University of Chicago Press.

Rich, Frank. 2011. “Wallflowers at the Revolution.” New York Times 5 February. www.nytimes.com (retrieved 18 February 2011).

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Sartre de Beauvoir



Por Luciano Oliveira

Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir formaram durante meio século um casal mágico para minha geração - aquela que nos anos 60 descobriu o marxismo, encantou-se com a revolução cubana e deu de cara com a ditadura militar; e, mesmo morando numa pequena cidade do interior do Brasil - como era o meu caso -, começou a ouvir falar em amor livre, sobre que havia toda uma mitologia em torno da Suécia (até hoje não sei por que exatamente a Suécia) e dos jovens suecos que “faziam amor” (anglicismo que entrou no nosso vocabulário) quando lhes desse na veneta! Sartre e Beauvoir, com seu “casamento aberto”, estimulavam uma imaginação onde figuravam, percebo hoje, muita inocência e alguma má-fé: afinal, nós, os homens, certamente estávamos preparados para a liberdade sexual de que Sartre desfrutava, mas não creio que estivéssemos preparados para que nossas namoradas se comportassem como Simone!... Aliás, sabemos hoje que entre os dois as coisas não eram tão simples assim. Quem leu Tête-à-Tête da americana Hazle Rowley, o livro que trata da relação “igualitária” que Jean-Paul e Simone prescreveram para si, fica com a impressão de que ela sofreu com a vagabundagem sexual que ele, bem mais do que ela, exerceu com uma inconseqüência que chegou por vezes a ser desrespeitosa.

A última palavra contém, propositadamente, certo despropósito! Jean-Paul e Simone encarnaram, àquela época, tudo o que havia de mais radical em matéria de recusa ao que chamávamos, com uma insolência onde não faltava também alguma inocência, de valores burgueses. “Respeitabilidade” - com aspas, naturalmente - era um deles. Foram por 50 anos um casal realmente sui generis: sempre habitando perto um do outro, nunca moraram juntos; e sentimentos de posse estavam explicitamente excluídos do pacto de indissolubilidade (não-matrimonial) que tinham para toda a vida - na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Que, aliás, cumpriram. Pelo menos, ela cumpriu! É curioso como, na velhice, Simone terminou repetindo o destino de boa parte das mulheres que, normalmente mais longevas do que os homens, terminam cuidando dos seus maridos com um desvelo de que eles geralmente não são capazes. Quem já leu A Cerimônia do Adeus, em que ela descreve os anos de decadência do seu companheiro, fica impressionado com a capacidade de doação que ela tinha. Morto, ela vai ao quarto de hospital onde ele faleceu e tem uma idéia maluca: descobri-lo e deitar-se uma última vez ao lado do seu corpo nu. Roído pela diabetes e problemas circulatórios, partes dele já estavam gangrenadas, e a enfermeira chama-lhe a atenção energicamente para a possibilidade de infecção: “Não. Cuidado... a gangrena.” Só então, diz ela, compreendeu “a verdadeira origem de suas escaras”. Mesmo deixando o lençol, alonga-se junto do defunto e dorme um momento. O seu relato termina com uma desencantada e racional, mas comovente declaração de amor: “Sua morte nos separa. A minha morte não nos reunirá. Assim são as coisas: já é muito que nossas vidas tenham podido se acordar durante tanto tempo.” Isso foi em 1980. Seis anos depois, ela também partiu para o grande mistério.

Recentemente, no curso de uma revisita à obra de Sartre, é que me dei conta de que nunca a tinha lido! E acho que não fui o único. Fiquei pensando sobre isso. A impressão que tenho é a de que as pessoas da minha geração - pelo menos aquelas do mundo macho e de esquerda de que eu fazia parte - nunca a consideraram uma pensadora a ser levada na mesma conta em que tínhamos seu companheiro. Pensando bem, ela sempre foi a “mulher de Sartre”. Pensando melhor ainda, não me lembro nunca de ter ouvido alguém referir-se a ele como o “homem de Beauvoir”. Vejo hoje, nisso (ai, as voltas que o mundo dá!), uma espécie de reprodução, mesmo que fosse inconsciente, do papel subalterno da mulher no mundo - desde que o mundo é mundo -, e que ela, com brilho e uma erudição de tirar o fôlego, analisou e denunciou numa obra monumental a que também nunca tinha dado maior importância: O Segundo Sexo, publicada em 1949, quando ela tinha “apenas” 41 anos. Li-o recentemente, impulsionado por um insight que tive um dia desses, que alguns amigos (sobretudo amigas...) olharam meio de banda, mas no qual continuo apostando, sobretudo agora depois de ter percorrido suas cerca de mil páginas: Simone de Beauvoir é autora de uma obra que, com o passar do tempo e as peripécias da história, tornou-se mais importante do que a de Jean-Paul Sartre! Por quê?

Porque da mesma maneira que Marx, que não inventou o socialismo, tornou-se o nome mais importante do movimento operário, Beauvoir, que não inventou o feminismo, tornou-se a teórica mais importante da - como costuma se dizer - única revolução que deu certo no século XX: a das mulheres! E Sartre?

Sartre. Tenho a impressão de que sua obra teórica está bastante datada. O que não diminui a importância de sua participação no pensamento e na história política do século findo. Entre o final da segunda guerra e inícios dos anos 80, o nome de Sartre, sem exagero, refulgiu no mundo inteiro - dando continuidade a uma hegemonia cultural da França que se iniciou com o Iluminismo e ainda não perdeu de todo o seu prestígio (basta considerar o que ocorre hoje em dia com um nome como o de Michel Foucault). Contam que, no conturbado Maio de 68, com a França literalmente paralisada por um movimento que parecia ter saído dos eixos de qualquer razoabilidade, o General De Gaulle foi aconselhado por seus acólitos a mandar a polícia recolher o velho Sartre que, animando um auditório de estudantes gritando palavras de ordem contra todo tipo de autoridade, tinha ocupado a veneranda Sorbonne. De Gaulle, do alto dos seus quase dois metros de altura, teria replicado com sabedoria: “Não se prende Voltaire!”. É isso. Sartre foi, em determinado momento, o Voltaire do século XX - aquele que, corajosa e semelhantemente ao que seu ilustre antecessor havia feito em relação à intolerância religiosa, decidiu afrontar a sociedade de privilégios em que nasceu e afirmar que “o ponto de vista dos deserdados” é o mais verdadeiro em qualquer circunstância.

Hoje já não acreditamos nessa simplificação, mas pouco importa. O que vale a pena recordar é que esse é, por assim dizer, o “segundo Sartre”, aquele da fase marxista que todos nós conhecíamos e repetíamos mesmo sem ter lido A Crítica da Razão Dialética - onde se encontra a proclamação de que o marxismo seria “a filosofia insuperável do nosso tempo”; o Sartre que pôs em voga uma palavra mágica que chegou até Aracaju e o interior do estado de Sergipe onde eu vivia: “engajamento”! Mas é esse Sartre, justamente, que, se ouso dizer, é um pensador menor - como foi Voltaire no seu tempo, uma figura de inexcedível grandeza na defesa dos valores das Luzes, mas que não chega a constituir uma ruptura no pensamento e na forma de pensar, como foi, antes dele, um Hobbes; no seu tempo, um Rousseau; e, depois dele, um Kant. Ocorre que Jean-Paul, por volta dos anos 50, mesmo sem admitir e até fazendo um esforço descomunal para juntar as duas coisas, deixou de lado a perspectiva sombria da chamada filosofia existencialista, dentro da qual tinha se tornado um nome de reputação com a publicação em 1943, numa França ainda ocupada pelos nazistas, de O Ser e o Nada (outro livro que nenhum de nós leu...), e abraçado, com fervor, o revolucionarismo marxista mais delirante, responsável por sua ruptura com velhos amigos como Raymond Aron, Merleau-Ponty e Albert Camus.

Este Sartre ultra-esquerdista está datado. Mas o filósofo da fase existencialista, também acho que está. Sartre fez parte de uma geração influenciada pela filosofia de Heidegger - para quem o homem se definia como um ser para-a-morte. Não há nada de alvissareiro nessa perspectiva, e a obra do Sartre dessa época faz sua a “experiência da negatividade” típica da sensibilidade moderna desde que Nietzsche fez o anúncio de que “Deus está morto”. A angústia é o ar do tempo, e está na literatura de Kafka, no teatro de Beckett, na pintura do norueguês Edvard Munch, cujo famoso quadro, O Grito, vale por uma pinacoteca inteira de desolação. Retomemos os célebres termos sartreanos: o em-si, o para-si e o para-o-outro.;Para ele há dois modos fundamentais de ser: aquele próprio às coisas inanimadas - o em-si, e aquele outro próprio à consciência humana - o para-si. A consciência, vazia de sentido, é inteiramente livre no momento em que se dirige às coisas. “O Homem está condenado à liberdade” é outras de suas frases antológicas. Isso é fonte de angústia, e uma das maneiras de escapar dessa situação é desempenhar o papel que os outros designaram “para si”, tornando-se um ser para-o-outro. O olhar do outro, assim, me petrifica, me transforma numa coisa em-si com a minha aquiescência, porque a responsabilidade de exercer a liberdade radical a que estou condenado é fonte de sofrimento. Prefiro, assim, uma vida inautêntica, como ser para-o-outro, donde outra frase famosa que correu o mundo: “O inferno são os outros”.

Tudo isso é meio confuso e sombrio, e se, por razões de espaço, simplifico ao extremo, não creio que falsifique o essencial do seu existencialismo. Pessimista por excelência, ele parece inscrito no clima cinzento do pós-guerra numa Paris ainda sofrendo a falta de víveres, cujos intelectuais exorcizavam os horrores do conflito nas caves esfumaçadas da sofisticada rive gauche, onde se escutava jazz e Juliette Greco, a qual, de cabelo na cintura e cantando toda de preto, tinha se tornado a “musa do existencialismo” - que, por sua vez, tinha se tornado moda! Mas logo Sartre deixará de cultivar essa filosofia do desespero aderindo, como vimos, ao marxismo. O livro sobre a razão dialética será seu projeto teórico nesse sentido. Sem abandonar os conceitos existencialistas, ele irá historicizar o homem “inautêntico”, fazendo dele não mais uma decorrência da condição humana, mas produto da sociedade capitalista, com isso tornando-o um equivalente do homem “alienado” de Marx. Numa pirueta arguta, mas a meu ver pouco convincente, ele dirá que o homem em-si, tornado objeto pelo olhar do outro, será superado pela inserção no “grupo em fusão” da ação revolucionária que redimirá sua inautenticidade. Como não acreditamos mais nisso, passemos a Simone.

Na verdade falo apenas da Simone de Beauvoir que escreveu O Segundo Sexo em 1949. Mas quem escreve uma obra dessa magnitude aos 41 anos precisa de outras credenciais? É nele onde se encontra o célebre princípio que nutre teoricamente ainda hoje o movimento feminista: “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Curiosamente, o desenvolvimento do enunciado é bem menos radical do que dá a entender a sua leitura descontextualizada, pois Beauvoir não está pretendendo que as mulheres não nascem fêmeas! Acho mesmo esse um dos pontos mais lúcidos do seu pensamento: ser mulher não é a mesma coisa que ser fêmea; da mesma maneira, aliás, que ser homem não é a mesma coisa que ser macho. Macho e fêmea são destinos biológicos; mulher e homem são construções históricas. O que hoje até parece uma banalidade, não o era então. Nesse sentido o livro de Simone é um desses que anunciam uma tese que, vindo posteriormente se incorporar ao senso comum - mesmo que um senso comum qualificado -, parece desprovido de novidade quando o lemos a partir de um patamar retrospectivo, esquecendo o quanto ele contribuiu para a construção desse mesmo patamar.

Com sua divisa célebre Beauvoir está afirmando que existe a fêmea como dado biológico, certo, mas o que é feito desse dado - que atribuições lhe são designadas, que costumes lhe são infligidos -, aí a responsabilidade já não cabe à biologia. Se de um lado só a mulher pode dar à luz e amamentar, de outro se abrem infinitas possibilidades diferentes no que diz respeito ao exercício da maternidade e à prática da amamentação - e será a história, a economia, a cultura etc. que se encarregarão de estabelecê-las. Como ela mesma diz, “Os dados biológicos são de uma extrema importância [...]. Mas o que recusamos é a idéia de que eles constituem para a mulher um destino fixo; eles não a condenam a conservar para sempre esse papel subordinado.” O texto de Beauvoir está cheio de observações argutas sobre detalhes aparentemente menores acerca da maneira como revestimos as diferenças entre os dois sexos: “Nada é menos natural do que vestir-se de mulher; sem dúvida o vestuário masculino é também artificial, mas é mais cômodo e mais simples, é feito para favorizar a ação em lugar de entravá-la” - lembre-se o leitor de que, à época em que o livro foi escrito, mulheres não usavam calças!... Assim, ela adverte: “Quando emprego palavras como mulher ou feminino, não me refiro evidentemente a nenhum arquétipo, a nenhuma essência imutável”; ao usar essas palavras, acrescenta, é preciso subentender: “no estado atual da educação e dos costumes.”

Mas esse estado atual, desde a mais remota antiguidade, foi sempre obra de homens. “Foram os homens que fizeram a Grécia, o Império Romano, a França e todas as nações; que descobriram a terra e inventaram todos os instrumentos para explorá-la, que a governaram e encheram-na de estátuas, de quadros e de livros.” Neste universo masculino, à mulher sempre coube o papel de apêndice - como está escrito no renitente mito da criação da primeira mulher a partir de uma costela do primeiro homem. Como, então, admirar-se de que ela própria se sinta inferior? Em determinado momento Beauvoir remete a uma deliciosa boutade de Bernard Shaw: “O americano branco relega o negro à condição de engraxate; e daí conclui que ele é bom apenas para engraxar sapatos”... Valendo-se da terminologia sartreana que ela usa abundantemente no livro, a mulher - como o negro numa sociedade racista, o judeu numa sociedade nazista - não tem uma vida autêntica; ela é um ser para-o-outro.

Seria impossível, numa apresentação tão breve que é ao mesmo tempo uma homenagem - além de convite para que leitores retardatários como eu conheçam finalmente seu grande livro -, falar de toda a riqueza histórica, sociológica, psicológica e até literária de O Segundo Sexo. Esquivo-me da tentação de inserir alguma conjunção adversativa nesta admiração. Algumas até me ocorreram durante a leitura. Há passagens em que la Beauvoir deixa-se entusiasmar pela militância e parece comprazer-se no exercício tão jacobino e tão francês de épater le bourgeois. Miudezas minhas. No atacado, o balanço positivo ganha de goleada. Certamente por ser mulher e por ter sido uma grande escritora, são particularmente fascinantes as páginas em que Simone disseca com lírica crueldade os diversos momentos cheios de desconforto e angústia por que passa a fêmea no seu processo de transformação em mulher: o primeiro penteado que não pode ser desmanchado, a estréia do incômodo vestidinho, o uso de toalhinhas na menstruação, o noite de núpcias e o defloramento muitas vezes traumático, a gravidez, o parto, a amamentação e, finalmente, a menopausa que a libera do ciclo que a natureza lhe impôs de reproduzir a espécie - quando então, liberta das obrigações da fêmea, a mulher descobre em si, desolada, um corpo sem frescor.

Mas o livro termina com uma nota otimista. Como que deixando de lado a sinistra perspectiva do Outro cujo olhar nos transforma em objetos, ela anuncia um futuro, “quando for abolida a escravidão de metade da humanidade”, em que, “para além das suas diferenças naturais, homens e mulheres afirmem sem equívoco sua fraternidade.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Mulheres, negros e outros monstros: um ensaio sobre corpos não-civilizados


Trailer do filme A Vênus Negra, de Abdellatif Kechiche

Por Jonatas Ferreira e Cynthia Hamlin
Publicado em Rev. Estud. Fem. vol.18 no.3 Florianópolis set./dez. 2010


RESUMO

A dinâmica ocidental de civilização implica uma relação tensa entre corpo e mente, cultura e natureza, civilização e barbarismo. No ensaio que se segue, exploramos a construção deste último dualismo ao investigarmos os espaços nos quais certos corpos são definidos como monstruosos. Em particular, estamos interessados na constituição de uma visão científica de diferenças raciais, sua especificidade em relação à percepção medieval do lugar da alteridade, seu papel em legitimar a circulação de corpos 'monstruosos' como mercadorias e sua reivindicação de desvendar uma hierarquia objetiva de raças e gênero. De Lavater a Curvier, a classificação das espécies oferece um modelo hierárquico que será apropriado pelos discursos de raça e gênero na biologia. Nesse contexto, um caso pode ser considerado paradigmático: a 'Vênus Hotentote'. Argumentamos que a negociação política do status ontológico de Sara Baartman, durante os séculos XIX e XX, representa precisamente tal esforço para estabelecer as fronteiras de civilidade mediante a circulação e a exclusão de corpos incivilizados.

Palavras-Chave: mulheres; corpos negros; teratologia; ciência.
"O basilisco [monstro em forma de serpente] é capaz de fulminar o homem pelo olhar porque, ao vê-lo [...] põe em movimento pelo corpo um terrível veneno que, lançado pelos olhos, impregna a atmosfera com sua substância mortífera [...] Mas quando é o homem que vai ao encontro da fera guarnecido de espelhos [...] o resultado é diverso: o monstro, vendo-se refletido nos espelhos, lança seu veneno contra o seu próprio reflexo: o veneno é repelido, retorna sobre ele e o mata."
(Malleus Maleficarum: o martelo das feiticeiras - Heinrich KRAMER e James SPRENGER, 1991, p. 73)

Introdução

Na história do pensamento ocidental, mulheres, negros e monstros têm algo em comum: uma suposta proximidade com a natureza que configura a essência liminar de sua humanidade. Segundo tal forma de pensar, um espaço de civilização que se contraponha a essa proximidade deve ser forjado - um espaço em que, da segurança do mundo da cultura, seja possível objetivar e controlar esses seres fronteiriços. De fato, a constituição de um discurso civilizador abre-se em oposições fundamentadas na identificação de um hiato entre natureza e cultura: corpo versus mente, prazer versus razão, forma versus essência, matéria versus ideia etc. Assim, é comum que o discurso civilizador constitua as seguintes alternativas polares: a natureza alimenta, nutre e constitui nosso lugar dentro da existência; ao mesmo tempo, corrompe essa existência, sepulta-a, impõe-se ao homem civilizado como poder incontrolável, caótico, apavorante. A natureza é simultaneamente fecundidade e luto.

É importante considerar que o discurso civilizador não se estrutura exclusivamente em um dos polos dessa oposição, mas na arquitetura que coloca tais alternativas como algo inquestionável. Na prática, porém, tal discurso precisa excluir incluindo e incluir o outro sob o estigma da exclusão. É, portanto, da própria ambiguidade que deriva sua força, embora, paradoxalmente, seja tanto mais forte quanto menos ambíguo se mostre. É a constituição desses lugares que será investigado aqui. Em linhas gerais, nosso propósito é demonstrar como a ambiguidade diante da alteridade foi objeto de negociações distintas ao longo da história do Ocidente. Em particular, interessa-nos o modo como a constituição da sociedade moderna e de um discurso científico resultou em imagens monstruosas de alteridade, na produção discursiva de corpos considerados exóticos e, no limite, abjetos.

Inicialmente, consideraremos os elementos ambíguos que marcaram as representações culturais da mulher e do negro e que possibilitam sua caracterização como um/a Outro/ a monstruoso/a. Argumentaremos que o monstruoso aparece como o lugar da alteridade por excelência, um lugar que marca a fronteira entre criação e corrupção, ordem e caos, civilização e barbárie. Na sociedade medieval, em que a circulação dos corpos era restrita pela sua própria lógica econômica (o mercado tinha uma importância restrita, local),o monstruoso sempre esteve associado à ideia de circulação imprópria. Numa sociedade que se moderniza, a partir do comércio, da circulação de corpos e mercadorias, uma outra lógica civilizadora teve que ser concebida. Nesse sentido, argumentamos que o surgimento de um sistema de classificação taxonômico representou um primeiro passo legitimador do aumento da circulação de corpos e objetos transformados em mercadoria com o processo de expansão capitalista. Esse sistema de classificação, que constitui a baseda ciência moderna, representa uma ruptura. Para usarmos uma distinção semelhante àquela que Michel Foucault faz com respeito à loucura, diríamos que o monstruoso deixa de ser concebido, primordialmente, como objeto de julgamento moral e passa a ser explicado pela biologia. Distintamente do argumento foucaultiano, acreditamos que o elemento moralizante continuou claramente vivo, subjacente à explicação científica. Essa nova concepção do monstruoso, na exata medida em que se pretende científica, busca ocultar sua matriz valorativa, concebendo esses seres como espécimes naturais. A suposta isenção daquilo que se considera 'natural' é o ponto a partir do qual se essencializa uma explicação histórica e política. Tal naturalização é o equivalente moderno do ritual de exorcismo descrito no Martelo das feiticeiras: ao promover hierarquias raciais e de gênero e localizar o/a Outro/a do civilizado na base dessas hierarquias, a reflexão científica busca, ao mesmo tempo, neutralizar seus poderes, funcionando como o espelho que reflete a mirada do monstro sobre si mesmo. É justamente quando se percebe que esse olhar não é axiologicamente neutro que esse/a Outro/a monstruoso/a surge como um problema real cuja emergência e efeitos precisam ser explicados.

A fim de ilustrar nossos argumentos, efetuaremos um estudo de caso referente a Sara Baartman, mais conhecida como Vênus Hotentote. Baartman nos interessa porque representa uma convergência importante entre os principais pontos levantados aqui. Em primeiro lugar, além de mulher, é negra. Em segundo lugar, representa um caso extremo de constituição de identidade a partir do olhar do outro. Privada de sua própria voz e da perspectiva cultural de seu povo, sua identidade pessoal foi inteiramente subsumida à sua identidade social, fazendo dela uma espécie de significante vazio que reflete os valores dos grupos que a constituem como um tipo específico de sujeito. Por fim, ao ser submetida a três tipos de olhares distintos - a selvagem perigosa e amoral; o negro como raça biologicamente distinta e a heroína dos modernos movimentos sociais - a circulação de seu corpo, desde o século XIX, tem garantido a manutenção da lógica civilizatória europeia.

Para ler o artigo completo, clique aqui.

Seleção de Monitoria para a disciplina Fundamentos de Sociologia


Este ano, solicitarei uma vaga para monitoria na disciplina de Fundamentos de Sociologia, que será ministrada às segundas (16:00- 17:50h) e quintas-feiras (14:00- 15:50h). A fim de poder enviar a solicitação à Pró-reitoria Acadêmica (Proacad), selecionarei um(a) monitor(a) com base nos seguintes critérios:

  • análise do histórico escolar;
  • análise de carta de intenções, justificando interesse na monitoria da disciplina em questão;
  • disponibilidade para participar das aulas no horário definido acima.

De acordo com as normas da Proacad, são requisitos para a monitoria:

  • ser estudante regularmente matriculado e cursando disciplinas em curso de graduação da UFPE;
  • não ter concluído nenhum curso de graduação ou habilitação do curso; 
  • ter cursado e obtido aprovação na disciplina a que se refira a monitoria ; 
  • não apresentar histórico escolar com reprovação não recuperada;
  • ter disponibilidade de 12 horas semanais para as atividades de monitoria.

O histórico e a carta de intenções devem ser enviados para o meu email (cynthiahamlin@hotmail.com) até as 12:00h do dia 14 de fevereiro. O resultado da seleção será divulgado entre @s interessad@s no dia 15 de fevereiro, até as 12:00h.

Mais informações no site da Proacad (aqui).

Cynthia Hamlin

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Michel Foucault: a cultura do self



Para ouvir embaixo de um coqueiro, olhando o mar,  com 10 eunucos servindo água que passarinho não bebe, fazendo cosquinha na sola do  pé e cantando a ária da Rainha da Noite.

C.