sexta-feira, 13 de maio de 2011

Laurent Blanc X Lilian Thuram: futebol e sociedade na França de hoje em dia. Notas de desespero e socorro semi-sociológico



Tâmara de Oliveira

            Quem assistiu àquela sombria (para nós) final da Copa de 1998, há de se lembrar de dois jogadores da defesa francesa naquele ano : Lilian Thuram e Laurent Blanc. Dois homens lindos e unidos que, com Zidane e os outros, realizaram uma utopia de vida curta : a da integração universalista francesa como campeã do mundo, quando nos Champs Elysées  o « b » do apelido da seleção francesa foi triplicado  e « les bleus » viraram « les blancs, blacks et beurs ». En passant, « beurs » é o termo coloquial que designa franceses com ascendência árabe da África do norte. Pois, nessa França desoladora de hoje em dia, tenho me perguntado se Lilian (que tem uma fundação chamada « éducation contre le racisme ») e Laurent (atual treinador da seleção francesa) ainda são capazes de conversar.
É que entre os dois ex-jogadores e amigos explodiu o que eu, inspirando-me mas fazendo malabarismo com o conceito de « fato social total » de Marcel Mauss ( Paris, 1985), chamarei aqui de « acontecimento francês total ». Podemos dizer que para Mauss os fatos sociais totais são conjuntos de práticas e/ou representações que põem em movimento a totalidade da sociedade ou um grande número de suas instituições (Marcel, 2007), tendo a característica de revelar fenômenos que são ao mesmo tempo econômicos, religiosos, políticos, jurídicos, morfológicos, etc., de uma sociedade. Não tratarei aqui imediatamente de conjuntos de práticas ou representações, o que implicaria na consideração de fenômenos relativamente estruturados, mas de um episódio particular e, à primeira vista, aberrante para com as principais instituições da sociedade francesa, assim como para com o principal símbolo de sua República : a divisa « liberté, égalité et fraternité ». Logo, não se trata de « fato social total » propriamente dito. Entretanto, as reverberações do tal episódio envolvem e desvelam com tal intensidade a dinâmica multidimensional dos problemas societais da França contemporânea, bem como práticas e representações que os animam que, passando apenas um dia lendo, ouvindo, vendo atores e comentadores a seu respeito, pensei : eita cabrunco ! Taí uma espécie de acontecimento social total – e dos bem ruins, daqueles que tem parte com o diabo de Riobaldo.
A desgraça explodiu num site de jornalismo independente chamado Mediapart, no final de abril, com a publicação de um artigo sobre uma reunião de uma alta instância da FFF (Fédération Française de Football), a DTN (division technique nationale), occorida em 08 de novembro de 2010. Nessa reunião, Laurent, qu’en plus s’appelle Blanc, teria se declarado inteiramente favorável a uma proposta de restrição do acesso aos polos de formação da FFF  de um certo tipo de adolescentes aspirantes à carreira de futebol na França: os que têm dupla-nacionalidade (« binationaux »), ou seja que são em geral filhos de estrangeiros e podem, segundo regras recentes da FIFA, mudar de seleção nacional mesmo depois de 21 anos. Apresentando pequenos trechos de falas da reunião, Mediapart declarou, entre outras coisas, que se falou em criação oficiosa de cotas discriminatórias desses adolescentes, espécie de ação negativa estabelecendo 30% como teto máximo de recrutamento desses binacionais.
Et c’est parti : « l’laffaire des quotas » no futebol francês foi lançada, sendo cercada por duas sindicâncias administrativas – uma da própria FFF e outra do ministério dos esportes e da juventude, esta última passível de processo no equivalente de nosso Ministério Público. Por trás das repercussões multidimensionais que esse episódio manifesta, argumentarei que o que chamei de « acontecimento francês total » foi desvelando seu sentido profundo : o da racialização dos problemas da sociedade francesa contemporânea, o de sua impregnação em diversas práticas, representações, instituições e conflitos, tornando-a fenômeno revelador de dinâmicas ao mesmo tempo políticas, jurídicas, culturais, econômicas, etc.   
De fato, o primeiro artigo de Mediapart já era assim intitulado : « Foot français : les dirigeants veulent moins de noirs et d’arabes ». Por que tal título, se as tais cotas negativo-discriminatórias teriam como alvo adolescentes com dupla nacionalidade, sob a justificativa de salvaguarda da seleção francesa – ou seja, para diminuir a fuga de jovens talentos, formados pela DTN, para outros países ? O leitor poderia pensar num fato implícito : na França contemporânea, a maior parte de filhos de estrangeiros tem uma segunda nacionalidade africana ou árabo-africana (norte da África). Mas o título não se deve ao implícito e sim ao que teria sido explicitado verbalmente por participantes da reunião : ausência de referência a qualquer nacionalidade particular, concentração argumentativa sobre os « blacks » e « beurs » como problema, descrição eventual destes como estrangeiros.
Depois que o conteúdo de seu artigo foi refutado categoricamente pela FFF e pelo própro Laurent Blanc, Mediapart publicou outro onde apresenta extratos fiéis de uma transcrição da tal reunião, retomados depois por outras mídias, como o jornal L’Équipe. A transcrição teria chegado às mãos de Mediapart por uma fonte interna da FFF. Desesperemo-nos um pouco com alguns dos extratos, todos da fala de Laurent Blanc :
(...)E isso não tem nenhuma conotação racista. Quando pessoas usam a camisa de equipe nacional dos 16, 17, 18, 19 e 20 anos, dos Espoirs, e que depois eles vão jogar em equipes norte-africanas ou africanas, isso me incomoda enormemente. Isso é preciso de fato limitar.
(…)Quanto a mim, não são as pessoas de cor que me põem um problema. Não é um problema com as pessoas norte-africanas. Eu, eu não tenho nenhum problema com eles. Mas o problema é que essas pessoas daí devem se determinar e tentar ajudá-los a se determinar. Se há apenas – e eu falo cruamente – blacks nos polos e esses blacks daí sentem-se franceses e querem jogar na equipe de França, tudo ótimo para mim.
(…)Não queremos eliminar os estrangeiros, de forma alguma, mas fazer com que os polos Espoirs ou os polos da DTN testem a partir de critérios melhor definidos, porque se a gente tem sempre os mesmos critérios, haverá sempre as mesmas pessoas.(…) Grandes, musculosos e potentes. O que existe hoje como grande, musculoso e potente ? Os blacks.  E é assim. Deus sabe o quanto eles são numerosos nos centros de formação. Eu acredito que é preciso recentrar, ter outros critérios, modificados com nossa própria cultura.
(…)Com nossa cultura, nossa história, etc. Os espanhóis disseram-me : « nós não temos problema. Blacks, nós não temos ». (L’Équipe, lundi, le 02 mai 2011) 
              
É de alucinar ! Afinal de contas, qual o núcleo justificativo dessa proposta de discriminação negativa? Binacionalidade jurídica como fator de fuga de talentos ? Pessoas « de cor » e pessoas norte-africanas cuja ausência de sentimento de identidade nacional prejudica a Equipe de França ? Certas caracterísiticas físicas dos « blacks » que prejudicam a qualidade do futebol francês ?  Lilian Thuram, tendo pele negra mas nascido em Guadalupe (território francês, logo, ao abrigo das tais cotas de discriminação negativa) foi um dos primeiro a se desesperar ; numa de suas declarações, teria dito : « espero que seja apenas um pesadelo ». Dado seu conhecido engajamento anti-racista, foi procurado por gregos e troianos midiáticos e concedeu várias entrevistas (inclusive à Mediapart). Inicialmente indignado com a fala de Blanc, mas já afirmando que este não é racista, atenuou depois seu discurso – talvez por ver-se objeto de comentários de leitores como os três que se seguem :
Vocês se lembram quando Thuram marcou aqueles gols contra a Croácia, 60 milhões de franceses aplaudiram-no mas ele pôs um dedo sobre a boca como para dizer « pshi, calem a boca !, não foi para vocês que eu fiz esse gol », fazendo acreditar que estava interiorizando suas emoções…Partilhar essa alegria conosco ?!, ele teria preferido morrer. Uma vez mais : onde ele está, o racismo, não do lado que se acredita, em minha opinião (L’Équipe, le 03 mai 2011)

(…)Se o futebol africano fosse tão forte ele já teria ganhado algumas copas do mundo e isso está longe de se o caso. Eu sei que nessa França bem pensante não se pode mais dizer nada, senão a gente é tratado de racista, mas eu gostaria de dizer que as reações de todos os blacks de todos os tipos, estilo Thuram, é isso que faz subirem os extremos, isso vai ao encontro do que eles denunciam. Quanto aos bi-nacionais, é pior, nos fizeram acreditar que os da terceira geração se sentiriam franceses, mas são piores do que os pais. Mas nesse caso, é antes a FIFA que é preciso implicar, é uma lei que serve aos interesses das federações africanas, então, da reeleição de Blatter »

(…)vamos jogar cartas sobre a mesa. Uma, os blacks são mais físicos (Diawara Taiwo, por exemplo) e não é racismo dizer isso, é uma constatação, uma questão de genes e de morfologia ; não misturar africanos e antilheses (para a dupla nacionalidade). Duas, agora, se a gente recensear todos os blacks e brancos e a gente quiser ver quais são os mais técnicos, todos conhecem a resposta : brancos e sul-americanos. (L’Équipe, le 03 mai 2011)

Tentemos agora sair desse desespero com um socorro da sociologia, porque foi um sociólogo francês, Éric Fassin, que tem blog no mesmo Mediapart aqui tão citado, quem escreveu um dos primeiros artigos analíticos sobre esse pesadelo real. Argumentando que as representações de « raça » funcionam exatamente na flutuação semântica e lexical, Fassin desfia pouco a pouco o conteúdo das falas dos participantes da reunião, reconstruindo o que ele chama de vocabulário deslizante. Referindo-se assim às diferentes justificativas para a proposta de cotas negativo-discriminatórias que, mesmo em seus momentos explicitamente contraditórios (Laurent Blanc, por exemplo, insiste mais de uma vez em afirmar que não se trata de racismo nem de discriminação de estrangeiros), deslizam entre diferentes sentidos de nacionalidade que fundem lógica de nação e lógica de raça, desvelando uma racialização da nação francesa : da nacionalidade jurídica à identidade nacional, da identidade nacional como sentimento de pertencimeno à identidade nacional como cultura, da cultura como pertencimento a um dado contexto sócio-histórico à cultura como cor de pele e outras características físicas (ou morfológicas). Eu concordo com ele, seguindo as pistas dos extratos por mim aqui citados. Fassin faz também uma distinção entre « racisme d’intention » e « racismo en effet », que tem se mostrado útil para pôr luz dentro do olho desse redemoinho dos infernos.
Logo de um debate televisivo no Canal Plus Sports de 06 de maio, por exemplo, em certos momentos eu tinha imagens cristalinas de um conflito racializado e mais dicotomizado do que se esperava. Com efeito, talvez porque na transcrição haja uma surrepresentação de referências a « blacks » em relação aos « beurs » (estes andam sumidos da seleção nacional desde a última Copa), « blancs » e « blacks » aparecem como os protagonistas visíveis. Já um sociológo que foi àquele programa na TV, Stéphane Beaud, mediatizado porque lançou recentemente um livro sobre aquela greve da Equipe de França na Copa da África do Sul, relatado aqui no Cazzo, aos poucos conseguiu emplacar um argumento, embora sua retórica acadêmica não fosse páreo para os jornalistas e futebolistas experimentados na TV ali presentes. Pois Beaud também fez uma distinção que parecia muito importante no debate televisivo: separar a suspeita de qualquer proposição de cotas restringindo certos jovens do recrutamento nos polos (problema social, político e jurídico exigindo averiguação séria), da discussão sobre o possível racismo dos indivíduos cuja fala na reunião foi transcrita. Outro debatedor, ex-presidente do Olimpique de Marseille, insistia também nessa distinção, mas principalmente na necessidade de não se transformar o problema de proposta inadimissível de cotas negativas numa guerra entre brancos e negros, apesar das palavras chocantes e que exprimem, ele está convencido, muito da realidade do futebol francês e do racismo.
Nesse debate, o momento em que a imagem era mais visivelmente a de um conflito racializado e dicotômico, foi encarnado por Laurent Blanc e Lilian Thuran, pois que eram eles os sujeitos das questões : qual deles teria razão, se Blanc é racista, se Thuram também é racista, como os colegas estão divididos entre os dois – notadamente os de 1998 – e o porque do silêncio ensurdecedor de « Zizou » (Zinedine Zidane) nesse episódio, até agora.
Num balanço aéreo, diria que a maioria está mais preocupada com a sustentação de Blanc como treinador da seleção e com os conflitos internos de poder na FFF, justificando isso principalmente por uma razão pragmática (ele seria necessário à seleção francesa neste momento). E, do ponto de vista de seu racismo ou não, todos os colegas, inclusive Thuram, declaram que « Laurent não é racista ». Assim como os participantes do debate televisivo, todos claramente compadecidos com a situação terrível onde Laurent Blanc se meteu – com suas declarações « maladroites » (desajeitadas) e sua recuperação pelos conflitos de poder na FFF. A avaliação de Thuram era claramente mais negativa. Embora existam certos colegas cuja posição é parecida com a dele, a grande maioria o põe em questão. Desde um colega que requentou um suposto episódio da final de 1998 nunca revelado, para representar Thuram como alguém que também pode ter comportamentos racistas, até outros que condenam sua tendência a ver racismo em tudo, devido ao seu engajamento militante. O black ícone do conflito está então numa posição delicada entre seus companheiros de vitória e os debatedores televisivos – assim como em sondagens de opinião via internet, onde sua posição e/ou ele próprio são julgados e condenados pela maioria. 
Não deixa de ter sua graça…para mim desesperante. Digo desesperante porque tenho visto as principais entrevistas e declarações públicas de Thuram e, embora a falta de espaço impeça que eu as reproduza aqui, afirmo ao leitor do Cazzo que elas são sensatas e com requinte argumentativo. Mesmo num primeiro momento de indignação mantinha um discurso de respeito e afeto por Blanc, depois disse que já falou com ele por telefone, usa uma linguagem psicanalítica e impessoal quando aborda a dimensão racista do episódio, sustenta um discurso anti-racista não identitário  e, para prová-lo, centra sua reivindicação pública na apuração da suposta proposta de cotas de discriminação dos « binationaux », afirmando que o racismo é fato do « inconsciente coletivo » e não o centro do problema. Por sua vez, Laurent Blanc, embora com apoio da maioria dos colegas, das mídias esportivas e da opinião nas sondagens que andei sobrevoando, também está numa situação para lá de desconfortável. Mete os pés pelas mãos desde o início, primeiro negando tudo, depois, quando foi impossível negar, pedindo desculpas mas afirmando sua indignação por ser acusado de racista e, finalmente, sumindo na Itália. Mas já está voltando : como o episódio acionou o aparato jurídico-administrativo do ministério dos esportes e da juventude e pode chegar à justiça, deporá sobre o ocorrido. Algumas imagens mostram-no absolutamente perdido, para não dizer subjetivamente demolido.
Falando nas dimensões jurídico-estatal e política do imbróglio, a nova ministra dos esportes tem sido estrita numa abordagem jurídica do caso, há mil anos luz das  patacoadas da ex-ministra (do tempo da greve na Copa), manifestando em seu discurso a mesma preocupação de tantos que vi no debate televisivo : impedir que o problema derive em crise sócio-racial no país. Dir-se-ia que não estamos mais no governo Sarkozy, tanto a postura dessa ministra parece adequada aos princípios estruturais do estado republicano francês, princípios que fariam desse episódio, não um revelador de sua totalidade societal mas uma aberração contra as instituições, práticas e representações da sociedade francesa. Essa ministra pareceu-me chata, confesso ao leitor : a priori, sua postura parecia desautorizar meu malabarismo com o conceito maussiano… 
Por outro lado, uma tendência oficial do partido do governo Sarkozy (Droite Populaire, responsável por um projeto de lei para suspender o direito à dupla nacionalidade e dispostíssima a alianças com o Front National), recolocou-me na hipótese do acontecimento francês total : lançou um documento acusando Mediapart por « maccarthysme de gauche » e defendendo a restrição dos «binacionaux » para salvaguardar o futebol francês. Sem usar nenhum termo com conotação racializada ou etnicizada, o documento abunda, todavia, na direção de um sentido xenofóbico, como se o futebol francês estivesse ameaçado por estrangeiros. De tal sorte que volto a Éric Fassin para retomar meu malabarismo com Mauss :
Nos Estados Unidos como na França, para compreender essa racialização da nação, não é suficiente invocar a herança da escravidão e da colonização. Ela não se explica somente pelo passado ; ela tem uma atualidade política bem presente. Enquanto no ultra-Atlântico, é a extrema direita do Tea Party que se levanta contra o presidente, na França, esse populismo está no poder. É o presidente da República, seguido por seus ministros, quem institui uma identidade nacional racializada.  Não nos surpreendamos que o futebol seja hoje em dia o porta-voz disso. O que Mediapart nos revelou, é o que nós já sabíamos, sem querer reconhecê-lo completamente. Os dirigentes do futebol francês apenas declaram, no segredo de suas reuniões,  o que se escancara todos os dias, muito publicamente, no debate político nacional. (http://blogs.mediapart.fr/blog/eric-fassin. Consultado em 07 de maio de 2001)      

Recapitulemos : esporte, mídias, justiça, política, práticas e representações de identidade…O acontecimento indica realmente que a racialização da nação de que fala Fassin tem a força de revelação totalizante que animava Mauss ao elaborar o conceito de « fato social total », embora eu esteja tratando de um fenômeno que revela muito mais uma dinâmica de crise societal – para a qual « fato social total » não seria um conceito muito adequado. E é por isso que eu troquei « fato » por « acontecimento ».
Mas ainda tem uma dimensão da qual não falei e sobre a qual vou ainda me apoiar em Fassin para introduzir:
E também  não é por acaso que no amanhã de uma Copa do mundo sul-africana, da qual o sociólogo Stéphane Beaud mostrou tão bem, num livro recente, como o racismo de classe, ao qual adicionaremos que ele é inseparavelmente uma racialização das classes populares, pôde-se atribuir o fiasco a jovens estigmatizados como « traidores da nação » ; o futebol francês está mergulhado nas tormentas das políticas identitárias vindas de alto. Como se surpreender que ele confunda dessa forma referências nacionais e raciais, quando isso é o ordinário do discurso político sob Nicolas Sarkozy? Nem é tanto que a palavra racista tenha sido « liberada » ; é antes de tudo que alguns dirigentes esportivos, como os de outros meios, satisfazem-se em falar com as linguagens disponíveis no espaço público. (http://blogs.mediapart.fr/blog/eric-fassin. Consultado em 07 de maio de 2001)      

Retenho desse trecho a dimensão econômica em sentido largo ou, da estratificação sócio-econômica em termos estritos. O futebol, enquanto carreira, é esporte de pobre há muito tempo. Ora, uma enorme parte dos pobres franceses tem ascendência nas ex-colônias (sobretudo africanas ou norte-africanas). Logo, são os « blacks » e os « beurs » que estarão em maioria nas filas de recrutamento dos polos de formação do futebol francês. A França vive um processo progressivo de segregação urbana, social e escolar de seus pobres, desde os anos 1980. Processo, aliás, global (o Brasil é só vanguarda histórica ou modelo). Neste sentido, concordo inteiramente com o sociólogo Robert Castel (2007), que diagnosticou um intercruzamento entre questão social (sócio-econômica) e questão racial (racialização dos conflitos)  como problema maior da sociedade francesa contemporânea.
E é esta duplicadade que pode dar luz inclusive a uma divergência entre sociólogos, Éric Fassin de uma lado, Gérard Noiriel e Stéphane Beaud do outro, sobre esse acontecimento infernal – divergência cuja novela está começando nessa segunda semana de escândalo. O primeiro, especialista em imigração e racismo e colaborador do Mediapart, insiste sobre a racialização da nação e não poupou tinta para analisar conteúdos de racismo ordinário nas falas da reunião. Os segundos, mais próximos da sociologia bourdieusiana, embora concordem que há racialização do vocabulário e discriminação dos filhos de imigrantes pela idéia juridicamente criminal de cotas, condenam o que chamam de abordagem midiática e acusatória que, identificando propósitos heterogêneos sob a mesma rubrica de « racismo », reforçaria a racialização das classes populares. Em suma, embora não citem Fassin, Noiriel e Beaud entendem que intelectuais críticos ligados ao que eles chamam de « causa negra », tem empreendido análises mais ideológicas do que sociológicas, posto que sem fundamento empírico consistente…Essa divergência acabou de tornar-se pública, assim como apareceu hoje a primeira entrevista de Zidane a esse respeito (serena mas indo na mesma direção da maioria dos colegas : condena o vocabulário da reunião, opõe-se radicalmente às cotas, mas sustenta e lamenta Blanc). Essas novas repercussões são importantes, todavia este texto tem que terminar !
Terminarei então declarando que a racialização dos conflitos sociais é potencialmente infernal. Como ela sempre envolve processos identitários e, ainda por cima, atravessados pela história da colonização e da escravidão, as paixões que suscita são dificilmente controláveis. E tenho pensado : se a racialização pode produzir institutionalizações progressistas, como o fim do apartheid na África do Sul ou ações afirmativas, ela também tem dado fontes de legitimação a racismos de todos os tipos. Ao mesmo tempo, tem dissimulado o fato de que os ricos andam cada vez mais absurdamente ricos e os pobres segregados e estigmatizados por critérios culturalistas ou racialistas. Afastados de tudo e todos que podem incomodá-los, imagino o quanto é confortável para os ricos de todas as cores que, num país como a França, ao invés de se discutir sobre o dinheiro público que foi versado ao capital financeiro que quase faliu o mundo e continua obrando para fali-lo, a sociedade e o Estado franceses mergulhem num pesadelo sobre a identidade nacional e as propriedades genéticas ou culturais das « raças », projetando sobre as categorias segregadas de sua população, em lógica mezzo-nacionalista/mezzo racialista, todos os males da sociedade francesa.
E eu que continuo sem crer, faço novamente aqui uma prece – por Lilian Thuram e Laurent Blanc (cuja esposa tem ascendência argelina, como Zidane fez questão de frisar em sua primeira entrevista). Por Thuram, porque recebe na pele e na alma a seguinte monstruosidade: a maioria da opinião e de seus colegas de 1998 consideram ilegítimo sua indignação contra expressões racistas (para ele, aliás, inconscientes) e propostas de discriminação negativa das minorias visíveis da sociedade francesa. Por Blanc porque, embora receba apoio majoritário, inclusive enquanto esposo e provavelmente pai de franceses vulneráveis às consequências sociais da racialização, precisaria fazer um trabalho de sócio-análise (no sentido bourdieusiano) sobre seus próprios habitus racializados e suas consequências, para o qual ele não parece estar preparado.
BIBLIOGRAFIA :      
CASTEL, R. La discrimination négative – citoyens ou indigènes. Paris : Seuil. 2007.
FASSIN, É. « Les mots dont souffre le football français . »  Le journal mediapart – blog de Eric Fassin, 08 mai 2011 [en ligne] . http://blogs.mediapart.fr/blog/eric-fassin
MARCEL, J.-C. « Bataille et Mauss : un dialogue de sourds ? », Revue du MAUSS permanente, 14 avril 2007 [en ligne]. http://www.journaldumauss.net/spip.php?article18
MAUSS, M. Essai sur le don : forme et raison de l’échange dans les sociétés archaïques. Paris, PUF, 1985.
NOIRIEL, G. / BEAUD, S. Race, classe, football : ne pas hurler avec la meute. Libération.fr, 08 mai 2011. (en ligne).

9 comentários:

Tâmara disse...

Começo eu mesma o « comentariado », porque essa era das TICs faz com que todo acontecimento contado fique velho em alguns segundos ; faço então uma « mise à jour » ; a) a pessoa que gravou a tal reunião, membro de um braço da FFF, e que a entregou no outro dia a um dos seus chefes da mesma FFF(kkk), chama-se Mohamed Belkacemi (« binational » com mesma ascendência árabo-africana que Zidane) ; b) na ruptura que esse acontecimento provocou na seleção campeã de 1998, deu uma fortíssima impressão (pela TV e internet) que os raros colegas com a mesma posição de Thuram tem pele entre o marron e o azul noturno ; c) o ministério dos esportes e da juventude já tornou público o resultado de sua operação : certos termos pronunciados são moralmente chocantes, mas nenhum projeto de cotas negativas está em execução na FFF, logo, nada a ser penalizado ; Laurent Blanc admite e nem compreende como disse certas palavras, lamenta e chora, mas também não fez nada de penalizável ; « par contre », a sindicância pensa que Mohamed Belkacemi poderia ser «advertido ». Ou seja, amigos, Thuram, Mohamed e outros « binationaux » do mundo inteiro, negro e árabe, quem não sabe, sempre estão por trás das merdas nesse mundo de hoje em dia. Os que são pobres, é claro, porque nos Champs Élisées, por exemplo, nenhuma boutique da indústria de luxo vê problema em vender lingérie caríssima a princesas árabes veladas. Nem rezo mais...Choro pela França.

Le Cazzo disse...

Tâmara,

Acho que, por algum problema técnico, o blogger deletou, de ontem para hoje, o teu post junto com um comentário ou dois que aqui havia. Restauro o dito cujo, mas fico preocupado. Um comentário de Franzé já sumiu de meu último post e essa agora... Bem, cá está, de volta o post, mas sem os vídeos que tomara emprestado do youtube. Temos agora uma foto. Jonatas

Cynthia disse...

Também sumiram 4 comentários do post sobre metodologia. Pelo menos eu anotei a sugestão de leitura que o Alyson havia deixado por lá...

Tâmara disse...

Jonatas,
Pois é, que estranho esses sumiços. E obrigada por re-editar o texto.
Aproveito para contar umas tristes novidades do causo : as duas sindicâncias concluíram que termos moralmente chocantes existiram, que Blanc lamenta e chora, mas que não há nada penalizável. A ministra dos esportes, em seu pronunciamento público, afirmou ainda que uma advertência ao participante da reunião que, há muito cansado do clima racializado das discussões na DTN, a gravou e a entregou a um dirigente da FFF no outro dia (e não às mídias, meses depois), seria uma recomendação profilática. O homem chama-se Mohamed Belkacemi (com mesma ascendência árabo-africana que Zidane). Em suma, as instituições responsáveis decidiram que o errado não é discutir institucionamente cotas de discriminação negativa contra adolescentes cujas portas de saída da pobreza reduzem-se quase completamente ao futebol (além de racializá-los e por em questão sua nacionalidade francesa), mas tentar agir contra isso. Como Belkacemi assumiu que gravou sem que os participantes soubessem, virou o grande traidor, mesmo se ficou estabelecido que não foi ele quem deu a gravação às mídias, que sua ação limitou-se à busca de reação institucional dos próprios dirigentes da FFF. Mas, como demais às vezes é demais e teve gente que ficou indignada com a recomendação da ministra, a FFF parece que vai deixar Mohamed em paz. E uma correção : coloquei muito superficialmente que a imagem dicotômica brancos X negros devia-se à sobrerepresentação do termo « black » nas falas da reunião. Corrijo-me : há dez, quinze anos, a xenofobia francesa concentrava-se ainda contra os « beurs » ; os « blacks » pareciam invisíveis e/ou até objeto de certa culpa colonizadora. De lá para cá a imigração de ex-colônias negras tem sido muito provavelmente maior do que a norte-africana. Desde 2005, com as rebeliões urbanas de jovens, a negritude virou o problema mais visível. Daí uma maior racialização da xenofobia e da rejeição de filhos/netos de imigrantes, combinada à consolidação de uma representação que integra « blacks » e « beurs » na mesma desgraça : a do islã como ameaça à identidade nacional.

Luciano Oliveira disse...

Tâmara, minha querida,

Li entristecido seu magnífico texto. Ando recluso mas não poderia deixar de dizer alguma coisa. Sou, por razões pessoais e culturais, muito ligado à França, onde tudo começou...
Definitvamente, não há povos imunes à desgraça do racismo. Há pessoas. Pessoas que, provavelmente, superam, num gesto moral, mas que também é racional, o estranhamento que, "naturalmente", sentimos num primeiro momento diante do "outro"... (As aspas cumprem a função elíptica de me desobrigar de escrever longamente para explicar o que quero dizer com uma e outra coisa.)
Como disse, há pessoas. Muitas foram franceses que, num contexto particular do século XVIII, inscreveram suas idéias num movimento político que, aliás, com a Restauração napoleônica, deu pra trás...
Acho isso interessante. A episteme iluminista era mais generosa do que a episteme positivista que lhe veio depois.
Aquela falava em termos de humanidade; esta começou a falar em termos de raça... e vimos o horror onde isso foi dar!
Os generosos anos 60 e 70 também estão dando marcha à ré!
A história parece um eterno retorno do que não presta. A esperança é que seja também um eterno retorno de coisas boas... E é nesse sentido que pessoas como você trabalham. Mas não apenas você...
Viva Montaigne! Viva Montesquieu! Viva Voltaire! Viva Condorcet! Viva Rousseau!
[...]
Viva Sartre! Viva Foucault! Viva Derrida! Viva Bourdieu! Viva Lefort!
Viva você também, Tâmara! Viva!

Cibalena/Luciano

Le Cazzo disse...

Cara Tâmara,

Perdoe, mas não consegui me controlar. Deveria ter deixado o seu texto - tão interessante e sempre bem escrito, como já havia dito pessoalmente a você - em evidência por mais uns dois dias, pelo menos. Mas o vídeo traz o mesmo tema e eu o achei ótimo... Abraço, Jonatas

Tâmara disse...

Luciano,
Tem esse consolo de poder continuar escrevendo e falando- no's que temos isso não so' como ofi'cio. Um beijo grande. E viva Luciano! Viva!

Jonatas,
Colocar mais um post sobre o tema é muito bom: o ato é mais do que teo'rico; é poli'tico. E viva o Cazzo também! E viva Jonatas! Um abraço.

Le Cazzo disse...

Eu publiquei, por engano, uma versão antiga do texto de Tâmara. Publico agora a última versão, com as desculpas pelo equívoco. Abraço, Jonatas

Tâmara disse...

Muito obrigada, Jonatas. E sinto por ter lhe dado tanto trabalho desta vez. Mas já lhe disse, não foi culpa de ninguém e sim do diabo de Riobaldo por trás do acontecimento relatado. Se bem que me pergunto se os vídeos do youtube que você tomou emprestado na primeira postagem « n’y sont pour quelque chose »…

Aproveito para falar um pouco mais do comentário de Cibalena/Luciano. Eu fui muito rápida ontem porque tinha que sair (passei o dia com amigos franceses da geração desses generosos anos 1960/1970 na França que, mais ainda do que nós, andam agoniados com seu país). Ou seja, relendo com cuidado o comentário, continuo toda orgulhosa por seu elogio, Luciano, você, a quem às vezes escrevo só para ter o prazer de receber a beleza de sua palavra escrita. Por outro lado, o conteúdo do comentário fez-me refletir ainda mais (obrigada de novo). Pois é, não há povos imunes à desgraça do racismo e acho que, no meu caso, foi mais intuitivo do que reflexivo o fato de ter construído um texto que sai de pessoas particulares (Thuram/Blanc) para seu contexto histórico-social e volta a essas pessoas com uma prece, atéia mas sincera. Mas veja : fico pensando que se os povos não são imunes à desgraça do racismo, é porque « povo » é termo abstrato (inspiro-me aqui em Marx, em seu método da economia política). Mas « pessoas » também é, não há pessoas sem seu contexto – e este pode ser mais ou menos favorável ao gesto moral de que você fala. Penso sinceramente, por exemplo, que Laurent Blanc é um indivíduo potencialmente capaz do gesto moral de reconhecer os laços desgraçados que sua fala estabelece entre nacionalidade/fidelidade/morfologia racializada, para justificar uma proposta criminosa – discriminação negativa. Mas o contexto onde ele se constrói/reconstrói é tal que ele não precisou fazer esse gesto : as instituições responsáveis e a maioria da opinião legitimaram sua desgraça verbal. Neste final de semana (antes do novo escândalo francês, o sexual com o homem do FMI e do Partido Socialista), pululalam entrevistas e matérias com os pedidos de desculpas de Laurent Blanc : este não reconhece nada disso, apenas o fato de ter ferido pessoas que ele conhece e também as que não conhece, por palavras que foram retiradas do contexto...Ora, em primeiro lugar, essas pessoas não ficaram feridas apenas pessoalmente. Em segundo lugar, é exatamente o contexto que torna sua fala mais desgraçada – tanto o contexto sócio-histórico da França como o das instâncias do futebol francês ! Em terceiro lugar, as pessoas que ele conhece e reconhece ter ferido (como Lilian Thuram), continuam sendo feridas pelas repercussões do acontecimento: como Blanc foi inteiramente limpo, elas são muito interpretadas como os verdadeiros responsáveis pelo escândalo. Como se a indignção diante de expressões racistas fosse ilegítimo ou, no mínimo, perigoso! É por essas e outras que não dá para se surpreender quando lutas anti-racistas adquirem tonalidades também racistas…Abraço