quinta-feira, 30 de junho de 2011

Admirável senso comum? Agência e estrutura na sociologia fenomenológica



Por Gabriel Peters - doutorando, IESP-UERJ

Artigo originalmente publicado em Ciências Sociais Unisinos 47(1):85-97, janeiro/abril 2011. Cedido ao Cazzo pelo autor.

Resumo

O artigo realiza uma incursão seletiva ao terreno plural das microssociologias interpretativas, perfazendo uma análise crítica das contribuições à teoria social legadas pela sociologia fenomenológica de Alfred Schutz e pelo desdobramento desta na abordagem etnometodológica de Harold Garfinkel, com foco especial sobre o problema fundacional da relação entre a ação individual subjetivamente propelida, de um lado, e os contextos societários nos quais ela se desenrola, de outro. No jargão que se tornou hegemônico na teoria sociológica desde a emergência do “novo movimento teórico” (Alexander), o que pretendo fazer é discutir possibilidades e limites da sociologia fenomenológica no enfrentamento da questão do relacionamento entre agência e estrutura.

A inescapável dimensão compreensiva da sociologia

Desde sua “dupla fundação” (Vandenberghe, 1999, p. 34) pelo positivismo de Comte na França e pelo historicismo hermenêutico de Dilthey na Alemanha, a paisagem da sociologia permanece atravessada pela divisão entre paladinos do monismo ou naturalismo epistemológico – isto é, da ideia de que as ciências sociais devem trabalhar sob a égide dos mesmos parâmetros metodológicos vigentes nas ciências da natureza – e defensores do dualismo ou separatismo epistêmico – os quais, defrontando- se com especificidades iniludíveis da vida social e, por extensão, dos tipos de inquérito que podem ser feitos sobre esta, defendem a perspectiva de que o conhecimento sociológico, embora possa ser fidedignamente caracterizado como científico, possui um status gnosiológico significativamente distinto daquele da investigação científico-natural. As diferentes concepções metateóricas acerca do status epistêmico da sociologia também estiveram, desde cedo, associadas a desacordos fundamentais quanto às caracterizações ontológicas das entidades e processos constitutivos do mundo societário, bem como quanto às orientações metodológicas tidas como heuristicamente mais fecundas para o estudo empírico desse universo.

Com efeito, é possível propor a tese de que a prima ratio da posição antimonista encontra-se em um insight ontológico substantivo acerca da ação e da experiência humana em sociedade, insight fraseado de inúmeras formas ao longo da teoria social do século XX, mas que poderíamos expressar assim: di- ferentemente dos fenômenos estudados pelas ciências naturais, os atores humanos que constituem o objeto da sociologia possuem, eles mesmos, concepções e representações acerca do próprio comportamento e dos seus múltiplos contextos de ação, concepções e representações (discursivamente articuladas ou tacitamente supostas) que não seriam elementos simplesmente adjacentes às suas condutas, mas instâncias constitutivas das suas atividades e, portanto, dos mecanismos pelos quais o mundo social se reproduz ou transforma. Nesse sentido, o naturalismo epistêmico preconizado por Comte, Durkheim e tutti quanti negligenciaria a especificidade que as ciências sociais derivam do seu caráter hermenêutico (do grego hermeneus, que significa “intérprete”) ou compreensivo, isto é, do fato de que elas têm como uma de suas dimensões essenciais e inescapáveis a tarefa de interpretação dos significados (inter)subjetivos engendrados pelos seres humanos no curso de sua existência conjunta.

Se fosse necessário encontrar um patrono para a defesa do projeto teórico-metodológico da sociologia compreensiva, concebida em sentido lato ou ecumênico (isto é, para além da sua identificação exclusiva com a versão formulada pelo seu ad- vogado mais famoso: nosso velho herói Max Weber [2000, cap. 1]), não faríamos mal em escolher Giambattista Vico como um dos mais fortes candidatos ao posto. Em Scienza Nuova, publicada na primeira metade do século XVIII, o sábio napolitano inaugurou uma espécie de humanismo epistemológico que contrapunha a exterioridade insuperável do modus cognoscendi científico-natural ao acesso à vida interior de atores conscientes no estudo das ações e produtos históricos do anthropos (Merquior, 1983, p. 15-19). Tal tema veio à baila com força na famosa controvérsia, que chacoalhou a academia alemã no final do século XIX e início do XX, acerca do estatuto epistemológico das chamadas ciências do espírito ou da cultura (Geisteswissenschaften) em relação às ciências naturais (Naturwissenschaften). Foi Max Weber quem assumiu, talvez, a posição mais singular nesse debate, a qual se diferencia tanto do monismo naturalista cego ao caráter impregnado de significado do mundo social (ou, ao menos, às implicações metodológicas desse fato) quanto do dualismo metodológico radicalizado de representantes destacados do historicismo germânico, como Rickert e o próprio Dilthey. Este último, embora um pensador dos mais complexos cuja contribuição resiste à simplificação, passou à história da disciplina sociológica sobretudo como defensor de uma cisão radical entre Erklären e Verstehen, isto é, entre os procedimentos causal-explicativos das ciências naturais e os procedimen- tos compreensivos das ciências humanas. No que toca a esses últimos, Dilthey também adquiriu o vulto de principal teórico da empatia como caminho de elucidação das ações desenroladas em universos sócio-históricos diversos, concebidos, sob a influência de Hegel, como exteriorizações do espírito humano as quais reclamariam, para a sua compreensão, a reativação psíquica dos significados subjetivos que elas coagulam historicamente (Outhwaite, 1985, p. 23-31). Weber, por outro lado, ao mesmo tempo em que reconhecia a especificidade do empreendimento científico-social, não concluía daí que o inquérito sociológico disporia de métodos radicalmente distintos daqueles presentes nas ciências naturais ou substituiria a explicação causal empiricamente verificada pelo intuicionismo empático puro e simples. Tanto Schutz como Parsons permaneceram, cada um à sua sin- gular maneira, fiéis à proposta weberiana de incorporar o ponto de vista subjetivo do ator como central à teoria sociológica (e como differentia specifica em relação às ciências da natureza) sem abdicar das exigências lógicas e metodológicas implicadas no projeto de uma ciência da vida social.

Para ler o artigo completo, clique aqui.

7 comentários:

Fernanda disse...

Professores Cynthia, Jonatas

Desculpem usar este espaço para falar de outra coisa que não o texto.
É que me lembrei que há algum tempo vocês divulgaram no blog a história da Elaine César, do Teatro Oficina, e o absurdo da briga pela guarda de seu filho.
Recentemente, um juiz considerou que por Elaine ser artista, ter câncer, estar grávida e ter um novo relacionamento não teria os qualificativos necessários para exercer a maternidade, e que, portanto, seu filho estaria mais seguro com o pai.
Então venho pedir a vocês que divulguem seu blog, http://elainecesar.blogspot.com/
uma vez que vocês já falaram sobre ela por aqui e pela grande visibilidade que o cazzo tem.

Desculpem novamente o uso indevido do espaço,
abraços,
Fernanda

Luciano Oliveira disse...

Francamente!
Se as razões da sentença são mesmo essas, isso sim está a merecer uma marcha!!!
Por que essa referência?
Porque fico especulando, recuperando aqui as reflexões que Cythia Hamlin costuma fazer sobre as ambiguidades e os perigos da ironia, se o tom de deboche que tomaram essas marchas comportamentais no Brasil não levam água ao moinho de um juiz desses...

Desculpem também, Jonatas e Cynthia, estar "desvirtuando" o assunto do post, mas a causa é justa!
Luciano

Cynthia disse...

Essa estória parece muito absurda mesmo. Como não tenho informações suficientes sobre o caso (e estou sem tempo para me inteirar a fim de escrever sobre o assunto), vou divulgar o blog da Elaine Cesar nas nossas "páginas úteis" e deixar que as pessoas tirem suas próprias conclusões. Obrigada pelo toque.

Lulu, juro que não entendi a relação entre isso e o que vc chama de "marchas comportamentais". Só um imbecil de carteirinha para julgar um caso de guarda do filho com base em manifestações que não têm nenhuma relação direta com o caso em questão.

Luciano Oliveira disse...

Cynthia,
Muito bem ponderada, como é de seu estilo, a postura cautelosa do seu primeiro parágrafo. Realmente, a coisa parece tão absurda, que só um imbecil...

O que me leva ao segundo parágrafo.
Realmente, Cynthia, não tenho nenhuma informação, quanto mais evidência, de que há alguma relação entre essa decisão aparentemente estúpida e as "marchas comportamentais".
Talvez tenha sido temerariamente elíptico ao juntar duas coisas que a princípio nada têm a ver...
Mas não sei...
Até por ofício e pelos temas que academicamente me interessam, sou uma pessoa atenta ao que pensam e como reagem ao que vêem as pessoas comuns, um largo arco que abrange desde as que assistem vomitórios como programas do tipo "cardinot", até alguns alunos meus na faculdade de direito(futuros juízes...) que tratam tais marchas com desprezo e até repugnância. Acho que foi por aí que meu pensamento se exerceu e aparentemente se excedeu.
Se eu, pessoalmente, visse essas marchas como estando integralmente certas, talvez a reflexão que fiz não me ocorresse. Mas, ainda que inteiramente solidário com a intenção que elas veiculam (independentemente de suas "opçôes" sexuais, todos os honens e mulheres nascem livres e iguais!), acho que elas se excedem no excesso, arriscando-se a cair num buraco perigoso. Tanto mais que a imbecilidade, a má-fé e a busca frenética da mídia por audiência transformam esses acontecimentos em algo não muito diferente de uma coisa patética chamada "o desfile das virgens de Olinda"...

Mas, meu Deus! Que sacanagem estamos fazendo com o belo, didático e erudito texto de Gabriel sobre a fenomenologia!
Ai, Gabriel, me desculpe: mas depois de ver o banho que Marta e suas amigas deram na Noruega, vou para a frente da televisão esperando que Neymar e Ganso façam outro tanto com a pobre Venezuela...

Bom fim de domingo a tod@s!

Tâmara disse...

Pois é, escutando Lulu-Cibalena, tento fazer uma homenagem ao artigo de Gabriel:
Ja' sou sua fã, Gabriel e, mesmo sem saber direito o que a Noruega tem a ver com isso, a verdade é que Neymar e Ganso fizeram uma rica Venezuela contra um Brasil pobre de tanto florido inu'til.

Partindo para seu texto, ja' esta' guardado para minhas aulas de teoria sociolo'gica. Mas faço uma pergunta: por que omitiu a presença de Marx no projeto de Berger e Luckmann? Ao meu ver, eles propuseram uma sociologia schultiziana a partir de uma si'ntese entre os "três porquinhos". Por outro lado, gostei de você ter usado o termo "esti'mulo" do behaviorismo: a Teoria das Representações Sociais de Serge Moscovici, acho, empreende um bom trabalho de inspiração fenomenolo'gica para refundar o conceito behaviorista de esti'mulo: as representações sociais precedem o esti'mulo. E o interessante é que tem gente da psicologia social cognitivista que tem concluido no mesmo sentido.

Finalmente: acho que Berger e Luckmann ainda são mais pro'ximos de Schutz do que Bourdieu. O problema da mudança ou transformação social são melhor empreendidos por eles com a noção de "problema" do que Bourdieu. Posso estar dizendo besteira, mas acho que Bourdieu é mais importante para "corrigir" a falha quanto às estruturas sociais numa sociologia de inspiração fenomenolo'gica. Quanto à mudança social, para mim Bourdieu continuou muito devedor da escola francesa de sociologia de base durkheimiana.
Em suma, bom demais esse seu texto.

Gabriel Peters disse...

Oi Luciano,

Obrigado pelos elogios. Não entendi bem o propósito da referência futebolística (rs), mas, de todo modo, não há necessidade alguma de pedir desculpas pelo uso do espaço para debater o problema de Elaine César, que certamente é mais importante e urgente, do ponto de vista pessoal e político, do que qualquer discussão mais abstrata sobre a (linda querida fofa) fenomenologia.

Olá Tâmara,

É sempre gratificante receber comentários de uma leitora inteligente como você. De fato, quando mencionei a articulação entre “significado subjetivo” (Weber) e “facticidade objetiva” (Durkheim) proposta por Berger e Luckmann, deveria ter acrescentado, sim, que é a partir de uma leitura não determinista do terceiro dos nossos pais totêmicos que eles pensam a dialética entre ambas as dimensões.
A noção de “problema” ou de “situações problemáticas” é extremamente útil para capturar não só a relação entre reprodução e mudança como também aquela entre habitus e reflexividade. Mesmo deixando de lado o papel causalmente independente da reflexividade do ator leigo e concedendo a Bourdieu que deliberações reflexivas só surgem quando há desajustes práticos entre habitus e campo, teríamos de reconhecer, contra o homem (digo “homem” deixando de lado, por ora, aquela nossa discussão sobre a sua divindade), que tais desajustes não estão restritos às situações de crise radical que ele caracteriza com a ideia de efeito de histerese, mas constituem parte e parcela da experiência cotidiana de qualquer agente, particularmente em contextos de mudança veloz como o nosso. O curioso é que esse modelo mais fluido da relação entre disposições habituais e deliberações reflexivas, centrado no retrato de situações problemáticas, já estava nos trabalhos de pragmatistas como Mead e Dewey, ambos lidos e citados – como você bem sabe - tanto por Schutz quanto por Berger e Luckmann.
Por fim, quanto à questão do estímulo, aí vai minha breve resposta (http://instantrimshot.com/). Piadinhas horrorosas à parte, acho que o influxo pragmático na fenomenologia permite recuperar o “fantasma na máquina” (Ryle) exorcizado pelos behavioristas, mas tomando-o como a complexa mediação entre desafios socioambientais e respostas agênticas (se acham o termo horroroso, tratar com Margaret Archer). Ergo, sem recair na concepção “cartesiana” de um sujeito desengajado do mundo e de suas demandas práticas. Como você bem diz, esta parece ser também a linha da turma da “psicologia social cognitivista” (e da terapia cognitivo-comportamental!) à la Albert Bandura e outros.

Abração a tod@s

Luciano Oliveira disse...

Oh! Oh!
Oi, Gabriel!
Não há nada a entender na referência futebolística... Trata-se apenas de uma pura e prosaica (e inconfessável!) verdade: queria dizer alguma coisa sobre seu texto, que achei excelente pela clareza e elegância estilística com que você consegue tratar de coisas que são difíceis (qualidade que já surpreendi em textos anteriores seus), mas... Neymar e Ganso iam jogar daí a pouco, e como sou fã dos dois, fui pra frente da televisão...
Abração,
Luciano