sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Por que precisamos castigar o PT




Eduardo Leal Cunha
Psicólogo, Psicanalista, Doutor em Saúde Coletiva (IMS/UERJ), Professor do
Núcleo de Pós-Graduação em Psicologia Social e do Departamento de Psicologia da UFS,
autor de Indivíduo singular plural: a identidade em questão, 7Letras, 2009


Com o (quase) fim do julgamento da ação penal 470 e tendo acompanhado sem grandes pretensões o dito mensalão nas emissoras de televisão e nos jornais, ou seja, como espectador em princípio leigo e desinteressado, não exatamente atento a detalhes legais ou implicações políticas de cada movimento, dou-me conta de que acabo exercendo em relação ao processo penal e sua repercussão na imprensa ou mesmo nas mesas de botequim, aquilo que Freud denominou, em referência à técnica necessária ao psicanalista e à possibilidade de escutar o inconsciente dos pacientes, atenção flutuante, a disposição de escutar o que é dito, sem esperar nada demais, sem julgar precipitadamente ou buscar coerência no que ouve (Freud, 1912).

Pois não se trata aqui de questionar o processo ou as decisões dos magistrados – os juristas que o façam, se for o caso –, mas sim de colocar-se diante de alguns acontecimentos, que, como na fala dos nossos pacientes, mostram que há algo mais na enunciação além do enunciado.

Não se trata de encontrar a verdade dos fatos ou decidir peremptoriamente sobre a inocência ou culpa de cada, se é que qualquer dessas coisas é mesmo possível, pois como aprendi outro dia em um seriado americano: confie naqueles que buscam a verdade e tenha medo dos que a encontraram.


Trata-se, apenas, de propor interpretações, sugerir sentidos possíveis para o que se passa e que pode ter vínculos com a nossa história de vida e com o que vivemos atualmente, que não percebemos de imediato, significados dos quais não temos consciência. Lembrando que, ainda tendo como referência a clínica psicanalítica, tais interpretações são apenas interpretações (KOHUT, 1988), tentativas de elaboração, sem a pretensão de serem verdades definitivas ou absolutas; apenas um trabalho preliminar, um ponto de partida, oferecido pelo analista, para que o paciente possa então elaborar, estabelecer ligações entre o presente e o passado, reconhecer desejos e impulsos inconscientes (FREUD, 1914), rever seus pontos de vida, refletir sobre seus afetos e encontrar, ou não, novas formas de se posicionar diante dos fatos da vida.

Trata-se, portanto, de vislumbrar por trás de nossa vontade de justiça ou dos arroubos moralizantes dos mais variados personagens que povoam o fenômeno da ação penal – o que inclui não apenas políticos, advogados, procuradores e magistrados, mas também jornalistas, homens de bem e homens comuns –, aqueles desejos odiosos e egoístas (FREUD, 1910a) que, segundo Freud, estão presentes na banalidade do nosso cotidiano e muitas vezes determinam nossos atos mais sublimes. Ou seja, trata-se de interrogar – mesmo que rapidamente, a título apenas de provocação – os consensos formados, as unanimidades que vão se estabelecendo e naturalizando, as aparências que de tão certas ou evidentes, não nos deixam espaço para ver o que se passa a seu redor, fazendo esquecer o que nos ensina Saramago em A janela da alma, filme de João Jardim e Walter Carvalho: “para conhecer as coisas, é preciso dar-lhes a volta”.
Foi a partir dessa postura e com tais reflexões freudianas e literárias a me guiar, que se firmou certa impressão em relação ao caso, a qual pode ser resumida em uma única frase: precisávamos castigar o PT.

Tomo tal frase como certeza, pois não cabe ao psicanalista, ao menos em princípio, para que a coisa ande, questionar a verossimilhança do que seu paciente lhe diz ou mesmo das interpretações que lhe surgem na mente. Ao contrário, devemos escutar tudo que é dito, sem julgar, avaliar ou medir. Assim agindo, percebi que a partir daí minha imaginação de analista, ocupada no trabalho de ligação, de produzir sentidos possíveis para o que escuta, deveria seguir imediatamente em nova direção: se devemos castigar o PT, e é certo que precisamos fazê-lo, falta enunciar o porquê.

De novo aqui, sinto-me à vontade, e com vontade, de continuar agindo como psicanalista, ainda que ninguém me o tenha demandado – análise selvagem, portanto, ainda em termos freudianos (FREUD, 1910b) – e procuro responder à pergunta, ou seja, o porquê do castigo, tentando desvendá-lo a partir precisamente do que define o castigo proposto, ou efetivamente dado. Ou seja, imagino simplesmente que a maioria das pessoas, leigas em direito penal como eu, calcula a pena como retribuição ao crime, ou vingança, se preferirmos, e assim, sabendo como queremos nos vingar do PT, talvez possamos imaginar que mal o PT nos fez.

Em seguida, me dei de conta que a punição imposta ao partido dos trabalhadores começa pelo seu rebaixamento ao mesmo nível dos outros partidos. Seus políticos não são melhores do que os outros. Mas tal rebaixamento, e castigo, vai além: não sendo mais apenas políticos comuns, os dirigentes petistas foram agora identificados ao que no imaginário nacional contemporâneo deve ser reconhecido como a própria essência do ser político: aquele que traz em seu ontos os germes da fome do poder e do apetite pelo dinheiro.

A condenação imposta pelo Supremo Tribunal Federal funciona então para muitos como a legitimação definitiva do fato de que os políticos de esquerda, incluindo aqueles que lutaram com o poder militar só o fizeram, porque foram excluídos do poder, de que os críticos da corrupção só a criticam porque dela não se locupletam.

Desse modo, a epopeia petista legitima o mito midiático contemporâneo de que a política não nos serve pra nada e que bem melhor seria se pudéssemos viver sem ela.

Ao mesmo tempo, tal operação de rebaixamento moral – e pretensamente realista – do Partido dos Trabalhadores pode agradar àqueles que, situados nos vastos campos da esquerda e aprisionados em seus ideais foram feridos de morte por José Dirceu, quando este nos mostrou que mesmo o poder – e os governos – de esquerda não são conquistados com a pureza das ideias e sim com a concretude, insalubre, dos acordos, das concessões e das barganhas, feitas estas não com seres nobres e heroicos, mas com elementos de carne, osso e interesses, como Roberto Jefferson e outros tais.

Talvez, assim, precisemos castigar o PT pela pretensão de ser melhor do que nós. Ou por nos mostrar que não somos tão bons assim. Por transformar a esperança em instrumento de marketing político. Por nos mostrar que nossos ídolos são de barro e que o Rei está nu.

Não que o tenham feito intencionalmente. Como talvez, também não precisemos castigá-los conscientemente, ou pelas razões ou da forma que nos orgulhamos em admitir.

Nesse ponto, talvez valha pena lembrar que muitas vezes atos de caráter social atendem em verdade a propósitos narcísicos, ou simplesmente egoístas, defensivos, como, em Freud, o tipo ideal do caridoso (FREUD, 1930), que alimenta e protege o outro com afinco, para manter em seu inconsciente o desejo intenso de causar-lhe mal. Assim, também, podemos nos dedicar a julgar e condenar o outro, expor as suas vergonhas (como na sequência de charges de Chico Caruso em que os réus do mensalão aparecem nus), para proteger as nossas próprias. Lembrando ainda de outra categoria freudiana, a do estranho (unheimlich) (FREUD, 1919), com a qual ele nos ensina que muitas vezes o que nos causa horror e repugnância é aquilo que, escondido em nosso inconsciente, retorna a partir do mundo exterior, nossos fantasmas mais secretos materializados na figura do Outro.

Desse modo, Castigar o PT seria talvez, ainda, uma espécie de ação sintomática, descrita por Freud como formação de compromisso entre tendências opostas presentes no psiquismo (FREUD, 1910c): condenamos a corrupção, e, portanto, o sistema político brasileiro fundado na desigualdade, mas selecionamos como alvos da condenação aqueles que aderiram recentemente ao esquema e de certo modo são estranhos a ele, como Genoíno e Dirceu, pois assim, ao mesmo tempo, preservamos o mesmo sistema e as suas elites, com a quais, de algum modo, nos identificamos. Condenamos, aliás, aqueles que, enquanto governo, para além de eventuais transgressões, pecados e alopramentos, colocaram em questão precisamente tal desigualdade e abriram as portas para que uma parcela da população habitualmente excluída da cidadania, a ela tivesse acesso.

Desse modo, saciamos nossa fome de justiça e de mudança, mas agimos de modo a reconfortar aqueles que se sentem ameaçados pela justiça e pela mudança. Do mesmo modo que quando protestamos por Lula não se tratar no SUS, ao mesmo tempo em que criticamos os políticos que desrespeitam a maioria do povo brasileiro e a tratam mal, reafirmamos que o ex-presidente pertence a esta maioria, é apenas um operário nordestino sem instrução, um quase preto nos termos da canção de Caetano, e é assim mesmo, mal, que deve ser tratado.

Assim, certamente precisamos castigar o PT, precisamos constranger Lula, pois temos sede de justiça e estamos cansados da corrupção. Mas é possível, ainda, que tenhamos também em cada um de nós, uma pequena parte, consciente ou inconsciente, assumida ou recalcada, no sentido popular do termo, que, como diria o Senador Jorge Bornhausen, não vê a hora de se livrar dessa raça e de por de volta as coisas no lugar, a começar pelos operários na fábrica e os velhos subversivos na cadeia.

Por conta disso, agora como cidadão e eleitor – não mais submetido à regra da abstinência que rege o trabalho do analista e legitima seu lugar – pergunto-me por fim, e neste caso pensando especialmente nos votos dos eminentes magistrados, se houve efetivamente uma mudança quanto ao estatuto das provas necessárias à condenação de corrompidos e corruptores, ou se o tipo de evidência que seria insuficiente para condenar o filho do senador Arnon de Mello ou o Banqueiro Daniel Dantas, simplesmente provou-se suficiente para selar o destino de políticos que não são filhos de ninguém, bancários e banqueiros de menor estatura.

Espero, sinceramente, que seja apenas coincidência, azar do destino ou mesmo ironia da vida que um publicitário menor tenha sido condenado a quarenta anos de prisão, enquanto o ilustre marqueteiro de Maluf e de outros grandes nomes da política nacional e sul-americana, tenha sido capaz de provar sua inocência. Sob esta esperança habita, devo confessar, o medo de que, como diria o saudoso Millôr Fernandes, nossa justiça seja cega, tenha a espada sem fio e a balança desregulada; e continue capaz apenas de castigar os pretos e os pobres ou quase pretos de tão pobres, ou aqueles que, na política ou nas finanças, lançando-se com apetite excessivo, sobre o que sempre teve dono, seja o poder político, os cargos comissionados ou os esquemas de corrupção, tornem-se então também quase pretos e permaneçam pobres, apesar dos milhares ou milhões que manuseiam, ao menos aos olhos da justiça e talvez de muitos de nós que nos consideramos, agora legitimados pelos supremos homens da lei, melhores que eles.

Referências Bibliográficas:

Freud, Sigmund “Cinco lições de psicanálise” (1910a) in ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. Vol. 11 pp.13-58
Freud, Sigmund “Psicanálise silvestre” (1910b) in ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. Vol. 11 pp.207-216
Freud, Sigmund “A concepção psicanalítica de uma perturbação psicogênica da visão” (1910c) in ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. Vol. 11 pp.197-206
Freud, Sigmund “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise” (1912) in ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. Vol. 12 pp.149-163
Freud, Sigmund “Recordar, repetir, elaborar” (1914) in ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. Vol. 12 pp.193-207
Freud, Sigmund “O estranho” (1919) in ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. Vol. 17 pp.275-314
Freud, Sigmund “Mal-estar na civilização” (1930) in ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. Vol. 21 pp.15-80
KOHT, Heinz Análise do Self. (1988) Rio de Janeiro: Imago.

3 comentários:

Tâmara disse...

Eduardo, rapaz,
Quando você me passou esse texto, minha primeira leitura foi, digamos assim, pragmática: ando sentindo (e outros colegas e amigos também), um clima meio udenista ou lacerdista nesses anseios justiceiros de nosso Brasil varonil e conclui que o que você escreve é particularmente útil neste momento. Relendo agora, lembrei de minha velha tese de doutorado onde, por uma abordagem sociológica, cheguei a conclusões que têm afinidades com o sentido de sua busca psicanalítica por sentidos. Seguinte: meus entrevistados eram demandados a justificar suas práticas de suborno de policiais, uso de políticos para obter habilitação, ou de amigos funcionários para suspender multas de trânsito. Em três dos quatro tipos ideais construidos, aparece um discurso de indivíduos repletos de boas intenções para com as normas impessoais de sanção à transgressão no trânsito, mas que, coitados, não as cumprem por causa da corrupção essencial de um Outro que os domina: o Brasil, uma espécie de gigante malandro que a tudo corrompe para manter as desigualdades também diante da lei. O único tipo ideal que não construiu esse discurso era composto por indivíduos das classes populares; eles justificavam suas próprias motivações para driblar a lei simplesmente por um cálculo custo-benefício, além de manifestarem uma visão fatalista da realidade social, gênero: "quem pode, pode; quem não pode se sacode".
Em suma: febres por justiça podem ser uma potência conservadora e violenta apavorante.
E isso não significa que penso (pensamos) que o mensalão seja apenas uma farsa midiática e elitista; mas que seu processo jurídico-político manifesta nossas estratégias práticas e simbólicas de conservação e/ou restauração da identificação, envergonhada mas sólida, com o imaginário-identitário gigante corrupto e perversamente desigual. Não é a toa que a ARENA quer voltar...É preciso reagir a isso, mas o PT não ajuda, né? Abraço

Tâmara disse...

Eita, Eduardo, seu texto tá me dando trabalho, viu? Verificando se você tinha respondido ao meu comentário, percebi que fiz afirmações incorretas sobre um dos tipos ideais de minha pesquisa. Pensei: mesmo que isso não tenha importância pra ninguém, eu própria dizer besteiras sobre um trabalho meu, assim também é demais também!
Voilà a correção: um dos três tipos ideais que possui a identidade nacional como representação essencialista da corrupção, não a usa como justificativa de suas próprias práticas; pelo contrário, eles rejeitam ferozmente essa corrupção, são estruturalmente decepcionados.E têm uma orientação política terrível: são adeptos e/ou nostálgicos de uma ordem autoritária - a boa solução, segundo eles, para superar a essência corrupta do Brasil e do braileiro. Detalhe: sócio-economicamente, são de classe média-média, não intelectualizada. Pensei nos seus "homens de bem"/"homens comuns". Pensei na moça tomando chimarrão,parece que antiga estudante do PROUNI, defendendo a novíssima ARENA...
Ai, amigo, estamos mal encaminhados, hein...?

Eduardo Leal Cunha disse...

Tâmara, lendo seu comentário penso que seja esse um trabalho vital nesse momento: perceber certo vínculo maldito entre certo discurso moralizante e práticas nada decentes, até o ponto em que o discurso moral pode se converter em legitimação do status quo, em certa medida verdadeiramente imoral. Foi isso que tentei fazer, perceber os fantasmas que nos assombram nessa defesa intransigente da lei e do castigo.