sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Sofrimento e Silêncio: alguns apontamentos sobre sofrimento psíquico e consumo de psicofármacos (PARTE 5)




Jonatas Ferreira

Por tudo quanto foi exposto, a linguagem é um ponto crucial de nossas preocupações teóricas. Trata-se, antes de tudo, de uma reflexão sobre o lugar da fala diante da emergência de uma nova geração de medicamentos psicoativos e de terapêuticas, a estes estreitamente associados, que propõem um tratamento do mal-estar contemporâneo em que a importância da fala é posta em questão. É preciso, todavia, entender que essa forma de abordar o sofrimento deve ser entendida como fortemente discursiva. Como entender essa proposição aparentemente contraditória? Se recorrermos mais uma vez ao que aqui chamamos de tradição trágica para interpretarmos essa dificuldade, constataremos ali um diagnóstico das sociedades contemporâneas que indica o empobrecimento da linguagem por um certo positivismo científico, empenhado em eliminar toda discussão semântica como um empecilho à plena universalização de um conhecimento objetivo[1]. É esta visão, este discurso, que prevalece hoje quando a psiquiatria busca reduzir o sofrimento a efeitos passíveis de serem tratados de modo objetivo. É necessário que reportemos a tendência contemporânea à medicalização, de um modo geral, e a tendência ao consumo de antidepressivos, ansiolíticos etc., a este movimento mais amplo que é produzido pela ciência moderna. E, assim, perguntamos: que discurso temos diante de nós?


Talvez a análise mais radicalmente crítica daquilo que a linguagem vem se tornando na sociedade da informação é fornecida por Heidegger. Para ele, a cibernética a vem transformando vários campos da tecnociência em um terreno marcado pelo desejo de constituir instrumento linguístico não-ambíguo, que venha a viabilizar performances técnicas céleres. Silenciada de suas ambiguidades essenciais, no entanto, a linguagem caminharia resultaria empobrecida. Que esquecimento fundamental essa concepção de linguagem promove? Heidegger nos dá algumas pistas quando afirma: “Falar é escutar a linguagem que falamos. […] Não falamos simples mente a linguagem. Mas a partir da linguagem. Isso só nos é possível porque já sempre pertencemos à linguagem. O que nela escutamos? Escutamos a fala da linguagem”.  (HEIDEGGER, 1998B, p. 203) Constatar que “não falamos simplesmente a linguagem”, mas “a partir da linguagem” é conduzir a questão da verdade para o terreno da finitude, é recusar a posição transcendente a partir da qual a tecnociência pretende conceber a fala, a linguagem, como um mero meio de exprimir pensamentos, de garantir instruções precisas, performances eficientes. É precisamente essa última possibilidade da linguagem, a linguagem instrumentalizada, tornada algo a serviço de performances eficientes que temos diante de nós ao menos desde que a teoria da informação, a cibernética se colocou como paradigma hegemônico das ciências. Sobre isso tivemos oportunidade de falar em artigo recentemente publicado (Ferreira, 2010, p. 521):

Esse é o sentido primeiro de reflexões como Língua de Tradição e Língua Técnica (1999) ou A Caminho da Linguagem (2008b): a redução da linguagem à troca de informação é a consumação da metafísica, a su incapacidade de pensar o ser a partir de outra perspectiva que não a da razão instrumental”. A constatação de uma colonização radical das possibilidades da linguagem pela tecnologia da informação é o problema que demandava, como ainda demanda, comprometimento intelectual. “O ponto decisivo para a nossa reflexão atém-se a isto: são as possibilidades técnicas da máquina que prescrevem como é que a língua pode e deve ainda ser língua” (Heidegger, 1999, p. 36).

A linguagem técnica, de que nos fala Heidegger, ou seja, a linguagem a serviço da performance, dos fluxos ininterruptos e eficientes de informação busca expurgar de si toda tensão, aqui compreendida como ruído. Seu empobrecimento está ligado àquilo que ele chama de “tédio profundo” na cultura pós-guerra, ou seja, um esvaziamento da possibilidade de significação em nome da execução de tarefas, o niilismo levado às suas últimas consequências. Vivemos na iminência da irracionalidade do real, cuidando sempre dos sobressaltos emocionais que resultam de vivências desconexas. Sofremos a impossibilidade de constituir alguma forma de antropodicéia. O psicofármaco não é causa nem consequência desse estado de coisas, desse empobrecimento. Usando o jargão weberiano, poderíamos afirmar que há uma afinidade eletiva entre o tratamento bioquímico das emoções e o niilismo radical em que a sociedade do consumo nos mergulha. A civilização do “verbo” é silenciada, cala. Ou, o que resulta no mesmo, somos capturados numa verbosidade oca, na intimidade de aeroporto, na dor que não pode saber de si. Há algo de preocupante aqui quando consideremos com Geoge Steiner (2010, p. 21):

La primauté de la parole, de celle qui peut être parlée et communiquée pal le discours, est caractéristique du génie grec et judaïque, et elle a été transmise à la chrétieneté. La conception classique et chrétienne du monde s'efforce d'accorder réalité et maîtrise à la chrétieneté.

Em Linguagem e Silêncio, ele propõe uma reflexão interessantíssima sobre as implicações linguísticas que decorrem de ter a matemática passado a constituir, a partir do século XVII, o paradigma das ciências modernas – teses próxima à de Heidegger, que acredita ser 'o matemático' a própria essência das ciências modernas. Para Steiner, o desenvolvimento da matemática posterior a Leibniz encaminha-nos paulatinamente para a indizibilidade, para a impossibilidade de enunciação verbal. O cálculo diferencial ou integral, as operações com números complexos se colocam para além da possibilidade da verbalização. Isso significa, por exemplo, que as operações subjacentes à simples atividade computacional pressuposta na escritura deste texto é intraduzível para a experiência humana. “La force des théories biologiques et zoologiques de Darwin résidait partiellement dans la persuasion de son style, tandis que dans la biologie post-darwinienne lês mathématiques ont joué um role de plus em plus irrésistible” (Steiner, 2010, p. 25). Steiner se pergunta com que autoridade o humanismo continuaria a pretender legitimidade se a esfera da palavra, do verbo tem perdido paulatinamente importância diante da elegância e eficiência da matemática. Segundo esse argumento, a poesia concreta seria sintoma, mas do que recusa à enunciação tradicional, ao expressionismo, à subjetividade lírica.

Se no passado recente, essa dor cultural, que resulta da dificuldade em encontrar uma antropodicéia, sentido, para a existência numa sociedade que já não precisa de qualquer ethos que legitime suas dinâmicas econômicas e políticas, essa tragédia, como afirma Simmel, poderia encontrar paliativo numa narrativa subjetiva, hoje isso já parece se distanciar de nosso horizonte cultural. Entre o sofrimento melancólico e o trabalho da subjetivação se coloca o fármaco, que evidencia a precariedade da estratégia subjetivadora, de resto desancada a partir de Heideggger pelo pensamento trágico. Ora, a palavra é o suporte sobre o qual um trabalho de significação poderia ser empreendido pelo sujeito, pelo melancólico – e precisamente ali onde o seu sentido parece ser colocado em suspenso. Por tudo o que dissemos, esse suporte encontra-se desestabilizado pela matematização da realidade, pela tecnociência. Sem um reestabelecimento da palavra, todavia, como podemos conceber uma alternativa cultural que não represente adequação às dinâmicas empobrecedoras do capitalismo?

Porém, falar é muito mais difícil do que parece. Em que medida os elementos trágicos de nossa cultura, e que a psicanálise representa de modo ambíguo, poderão nos oferecer a esperança de uma alternativa a isso que chamamos, com Benjamin, “pobreza da experiência”? Em que medida tais elementos são compatíveis com a oferta de soluções químicas que não podemos desprezar? Longe de querer responder essas questões, esse texto pretendeu levantá-las. Não sei se tive sucesso na empreitada, mas eis aí minha tentativa de provocação.



[1] Deveremos aqui mencionar, por exemplo, o Positivismo Lógico como tentativa bizarra de higienização da linguagem, de purgá-la de toda a ambiguidade.

3 comentários:

Tâmara disse...

Jonatas (e Artur também),
Estive acompanhando seus posts (em silêncio, mas com o sofrimento que você e Artur recomendam, não com um silêncio psicofármaco). Assim, como silenciar o sofrimento nos rebaixa à dor, corro o risco de dizer muita besteira, mas vou falar (tanto que talvez tenha que ir em duas partes): lá para a PARTE 3, tive a seguinte impressão: Jonatas vai concluir isso heideggerianamente. Pois parece que eu tinha razão, embora Heidegger seja um estrangeiro para mim. E aí, fico dividida. Por um lado, meus pesadelos com a hegemonia da cibernética e sua linguagem matemática e a dificuldade de uma alternativa sociocultural que isso implica, atuaram em mim, levando-me a pensar num pós-humano em simbiose com a tecnociência e na irrelevância das ciências humanas em tal contexto (ai de nós!). Por outro, fico pensando que essa conclusões heideggerianas podem ter uma abordagem unilateral ou parcial das direções possíveis de nossa relação à técnica (penso em anteriores posts seus, onde a técnica parece abordada em aberto). Não há saída imaginável para o niilismo – você pensa assim? Quando Artur se pergunta se prescindimos de deus mas precisamos da transcendência dos sistemas experts, eu me pergunto: prescindimos, quem, cara pálida? Deus anda um objeto de investimento emocional muito cobiçado e, o que é pior, os mais visíveis desses investidores (agindo politicamente, às vezes empoderando) parecem buscar versões francamente reacionárias do deus judaico-cristão e muçulmano. Por outro lado, apesar dos resultados frustrantes até agora, as “primaveras árabes” e os “occupy wall street” da vida parecem investir em alternativas culturais a essa hegemonia. Parece-me que, empiricamente, isso é um indício de que a hegemonia da linguagem da cibernética mantém-se num campo de lutas: o silêncio do sofrimento que ela postula é posto em questão em diversas direções e, muitas vezes, utilizando a própria tecnociência para fins não instrumentais. Se perco até o sono quando assisto na TV que um jovem da informática está fazendo o maior sucesso porque utiliza um algorítmo que lhe permitiu desenvolver um jornal online onde o leitor só ler o que “deseja” consumir como notícia (esquema parecido com os spams psicofármacos invasores do Cazzo), acordo até feliz quando vejo moças com o peito nu manifestando também por causas que não são “de mulheres”, mas socioeconômicas: “O pulso ainda pulsa/E o corpo ainda é pouco/Ainda pulsa/Ainda é pouco”.

Le Cazzo disse...

Oi, Tâmara.

Obrigado pela oportunidade de retificar algumas impressões que, sei, os apontamentos que acabei de publicar podem suscitar. Eu não sou exatamente alguém que compartilha a tal teoria da secularização. Para mim, uma saída transcendente sempre esteve disponível, embora outras influentes tenham surgido. Eu até gostaria de embarcar nessa vibe transcendente, sou absolutamente sincero. Mas se há algo que o protestantismo me ensinou foi buscar sempre a sinceridade de coração - por isso gosto tanto de Jó. Não consigo, como Santo Agostinho, rezar todo dia para ter fé - creio que foi Agostinho que disse algo parecido. A segunda coisa, é que Heidegger não é exatamente um homem sem esperanças com relação à cibernética. Ele acredita, se minha interpretação não estiver equivocada, numa resistência poética. Eu diria talvez numa resistência trágica. Escrevi um texto em que de certo modo puxo essa possibilidade contra uma exegese mais mal humarada de Heidegger - minha própria. O ensaio foi publicado na Análise Social, com um título infeliz.

Se escrevo também esse texto é porque acredito que o espaço de onde falo ainda é o da ambiguidade da linguagem, portanto, da resistência. Uma forma de resistir é buscar entender a lógica daquilo que devemos combater. Desde quando publiquei esse último post em nosso querido, mas modesto Cazzo, fomos objeto de ataque de 183 spams, propagandas de medicamentos psiquiátricos enviadas por máquinas. Isso foi há apenas umas poucas horas. Não tenho nada contra uma substâncias químicas - como poderia ter?, já necessitei e necessito delas. Só quem não admite o caráter eminentemente protético do ser humano poderia falar algo como O Humano, ou, o que é ainda pior, do pós-humano. Em lugar de uma solução fácil como essa, acho que precisamos expor nossa relação tensa com a tecnologia. Precisamos procurar as frestas por onde podemos respirar. É isso que me motiva.

Essas notas podem, de fato, dar margem às interpretações que você expôs. Pela generosidade de expô-las, e por me lembrar dos cuidados que devo ter ao apresentar este material numa versão final, mais uma vez, muito obrigado. Jonatas

Le Cazzo disse...

E mais uma vez, aos leitores e às leitoras peço compreensão para meu processo de trabalho. Publico esses textos sem revisão. Somente quando os vejo publicados no Cazzo vou corrigindo os incontáveis erros que cometo. Contrariando o dito, neste caso quem chega mais cedo à fonte bebe uma água menos limpa.