quarta-feira, 25 de abril de 2012

Velho Recife Novo


Velho Recife Novo from ContraVento on Vimeo.
Oito especialistas de diversas áreas (arquitetura e urbanismo, economia, engenharia, geografia, história e sociologia) opinam sobre a noção de espaço público na cidade do Recife e destacam temas como: a história do espaço público na cidade, o efeito dos projetos de grande impacto no espaço urbano, modos de morar recifense, a relação entre a rua e os edifícios, a qualidade dos espaços públicos, legislação urbana, gestão e políticas públicas e mobilidade.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Contribuições da epistemologia feminista para uma crítica da ciência moderna

Modelo anatômico de mulher grávida, em madeira e marfim, para fins de ensino. Stephan Zick, 1639-1715

Por Clarissa Galvão - Doutoranda em Sociologia, PPGS/UFPE

O objetivo desse breve artigo é analisar as críticas aos processos de produção do conhecimento científico realizadas no âmbito da epistemologia feminista. A discussão baseia-se, principalmente, nos argumentos levantados e debatidos por Anderson (2011), Benhabib (1995) e Flax (1991). O fio-condutor da minha reflexão será tecido em torno das críticas que as diferentes correntes da epistemologia feminista dirigem à Ciência Moderna e à razão instrumental. Nesse bojo, destacam-se questões como a possibilidade de um conhecimento universal, a verdade, a objetividade e as características do sujeito cognoscente.

Das epistemologias feministas

As reflexões da epistemologia feminista (conceito não-unívoco, que abarca diversas vertentes) surgem no bojo do movimento feminista, como desdobramentos da problematização sobre universais e supergeneralizações. De modo simplificado, tal problematização objetiva chamar atenção para o fato de que o conhecimento, os valores, as experiências etc. de um grupo hegemônico resumem-se a isso, ou seja, não são universais, tampouco possuem base alguma que legitime essa pretensão (Hamlin, 2007; Anderson, 2011).

Segundo Anderson (2011), a despeito das divergências entre as correntes que compõem o que se convencionou chamar de epistemologia feminista, é possível definir o seu objetivo principal de modo consensual, qual seja: analisar a influência do gênero nas concepções de conhecimento, em seus modos de produção e justificação, bem como na concepção de sujeito cognoscente.

A partir da análise das questões acima elencadas, seria possível identificar as formas por meio das quais as mulheres, e outros grupos marginalizados, são postos recorrentemente em desvantagem no processo de produção do conhecimento, para então construir caminhos de reforma das referidas concepções e de suas práticas.

No que tange à identificação dos modos pelos quais as desvantagens operam praticamente, a fortuna crítica da epistemologia feminista já avançou bastante. De maneira esquemática, e geral, é possível elencar algumas respostas diferentes e complementares à pergunta “como as mulheres são colocadas sistematicamente em desvantagem, em se tratando da produção do conhecimento científico?”.

A primeira desvantagem seria a exclusão das mulheres da ou a redução de sua participação na atividade de pesquisa. Tal ação tem sido justificada pela desvalorização de um estilo cognitivo feminino[1] e de sua forma de conhecer, o que acarreta uma negação de autoridade epistêmica às mulheres.

Em conseqüência disso, são elaboradas teorias sobre as mulheres que reforçam a sua condição como o Outro do homem (Beauvoir, 1970) e as tornam, e a seus interesses, problemas e produção, invisíveis. Obviamente, esse tipo de ciência e de tecnologia não é útil para as mulheres, tampouco para os demais grupos em situação de desvantagem (Anderson, 2011).

Ante o exposto, é possível apontar e discutir as concepções centrais à epistemologia feminista, em sua crítica a esse modelo de ciência excludente, a saber: os conceitos de conhecedor e conhecimento situados.

Afirmar que todo conhecedor, e consequentemente o conhecimento, é situado significa ir de encontro a determinada noção de objetividade, em cujo bojo está: a dicotomia sujeito-objeto; a ausência de perspectiva, que advoga a possibilidade de um ponto de Arquimedes (uma visão de lugar nenhum); o desinteresse ou a distância emocional com relação àquilo que será conhecido; a neutralidade axiológica; a idéia de controle, através de experimentos e manipulações, do que vai ser conhecido; e de orientação externa, ou seja, as representações refletem aquilo que as coisas realmente são (Anderson, 2011, s/p).

De início, é preciso esclarecer que na afirmação de que todo conhecedor, e logo o conhecimento por este produzido, é situado, não há necessariamente um abandono da noção de objetividade. É possível que uma postura como esta seja tomada, mas tal radicalização, por assim dizer, convive com proposições que visam discutir e redefinir a objetividade e o papel da ciência.

Chamar atenção para o conhecimento situado significa apenas destacar que quando alguém se debruça sobre algo, com o objetivo de conhecê-lo, não há a possibilidade de despir-se de seus backgrounds, visões de mundo, emoções, interesses, valores etc.

Nesse sentido, a epistemologia feminista defende que todo conhecimento é parcial, produzido a partir de um contexto e representa uma determinada perspectiva. E, em se tratando do conhecimento produzido pela ciência moderna iluminista e pós-iluminista, este é considerado androcêntrico[2] e, portanto, suas pretensões universalizantes são vistas como opressoras e excludentes dos Outros do sujeito cognoscente da razão instrumental.

O debate sobre como o gênero situa os sujeitos cognoscentes, dentro da epistemologia feminista, ocorre entre três principais correntes: o empirismo feminista; a teoria da perspectiva feminista (standpoint) e o pós-modernismo feminista (Harding, 1986 apud Anderson, 2011, s/p).

Desde já, importa denotar que essas abordagens possuem pontos de contato e inter-relações e que não foram superadas, no sentido de que poderiam estar, atualmente, apenas na história do pensamento. Ao contrário, são atuais, passaram/passam por diversas reformulações e revisões desde o momento em que surgiram até a época contemporânea (Anderson, 2011). Abordaremos aqui apenas os seus contornos gerais e características principais.

O Empirismo Feminista

O empirismo feminista concentrou seus esforços na tentativa de tornar as mulheres um grupo visível para as lentes das pesquisas científicas tradicionais. Sendo assim, as empiristas feministas propõem-se a pensar em como os valores feministas podem orientar a investigação empírica e contribuir para a melhoria da metodologia em geral.

Não havia, pelo menos quando de seu surgimento[3], uma noção de conhecimento situado nessa abordagem. Essa ausência acarretou uma limitação de sua crítica aos pressupostos do conhecimento científico. O movimento foi o de tornar a mulher visível, com o intuito de entrar no cânone, sem reconhecer que os fundamentos daquele implicavam desvantagens que iam muito além da invisibilidade, como já discutimos. Afora isso, é possível questionar em que medida uma maior participação de mulheres, feministas ou não, nesse modelo de ciência tradicional, seria capaz, por si só, de superar a sua situação de desvantagem.

A Perspectiva Feminista

A teoria da perspectiva feminista, que possui forte influência do marxismo, propôs a noção de conhecedor situado e foi além, combinando-a à idéia de vantagem epistêmica. Os grupos subordinados, que nesse caso particular são as mulheres, teriam uma vantagem epistêmica sobre os dominantes para falar a respeito de determinadas questões sociais, incluindo a situação de desvantagem que lhes é imposta.
Uma teoria completa desse ponto de vista deve especificar (i) a localização social da perspectiva privilegiada, (ii) o escopo de seu privilégio: para que perguntas ou temas podem reivindicar um privilégio a mais, (iii) o aspecto da localização social que gera conhecimento superior: por exemplo, o papel social, ou a identidade subjetiva, (iv) o fundamento de seu privilégio: o que é sobre esse aspecto que justifica a pretensão de privilégio; (v) o tipo de superioridade epistêmica que reinvindica: por exemplo, maior precisão, ou maior capacidade de representar verdades fundamentais, (vi) outras perspectivas em relação às quais afirma a superioridade epistêmica e (vii) os modos de acesso a essa perspectiva: está ocupando a posição social necessária ou suficiente para conseguir o acesso à perspectiva? (Anderson, 2011, s/p).
A idéia de privilégio epistêmico tem sido fonte de polêmicas e controvérsias. As teóricas da perspectiva feminista afirmam que o conceito de vantagem epistêmica é aplicado em outras áreas sem grande alarde, nas quais a expertise em determinado assunto confere autoridade a certas pessoas.

Anderson (2011) utiliza o exemplo dos mecânicos de automóveis para ilustrar essa questão. A opinião dos mecânicos, devido a sua experiência prática com carros, estaria melhor posicionada, em se tratando de avaliar problemas em um automóvel, do que a de alguém que seja apenas um usuário/proprietário de um carro. Segundo as defensoras da perspectiva feminista, portanto, a idéia de privilégio epistêmico só gerou polêmica quando tratou de temas em disputa entre grupos sociais.

Uma das principais críticas feitas à concepção de vantagem epistêmica refere-se a sua circularidade. Pois, se a vantagem é fruto de uma situação de desigualdade, esta precisaria manter-se para o que o mencionado privilégio continuasse a existir. Além desse, haveria outro problema relevante que fundamenta a idéia de vantagem epistêmica: a generalização da desigualdade, como se todas as mulheres vivenciassem-na da mesma forma.

A despeito dessas e de outras críticas, há quem defenda que do ponto de vista prático, e não do epistemológico (no sentido de acesso privilegiado à realidade), as representações produzidas na chave teórica da perspectiva feminista podem ser mais úteis para as mulheres do que outras (Anderson, 2011, s/p).

O Feminismo Pós-Moderno

De acordo com Flax (1991), o Ocidente passou por um período de mudanças, incertezas e ambivalências. A seu ver entre as teorias mais relevantes para a compreensão desse momento estão o pós-modernismo e feminismo. Ambas constituídas por uma tensão entre aceitação e rejeição de determinados pressupostos iluministas.
Cada um desses modos de pensar toma como objeto de investigação pelo menos uma faceta do que tem se tornado mais problemático em nosso estado de transição: como entender e (re) constituir o eu, gênero, conhecimento, relações sociais e cultura sem recorrer a modos de pensar e de ser lineares, teleológicos, hierárquicos, holísticos e binários (Flax, 1991, p. 218.)
Esses pontos em comum teriam possibilitado uma aliança entre as teóricas feministas e discursos pós-modernistas, especialmente a partir do momento em que as primeiras começaram a desconstruir noções como razão e conhecimento e a desvelar as conseqüências dos arranjos de gênero ocultadas por concepções pretensamente neutras e universalizantes.

Para Anderson (2011, s/p), diferente das outras correntes, o feminismo pós-moderno tem atuado de forma mais intensa na crítica interna das teorias feministas. As feministas pós-modernas acusam muitas teorias feministas de estarem reproduzindo, em seus arcabouços teóricos, as práticas científicas que criticam, como, por exemplo, a universalização de situações particulares.

As teóricas do pós-modernismo feminista radicalizam a crítica à ciência moderna, por meio de uma ênfase na diferença, na ambivalência e contingência. Acreditam que a busca por causas universais, necessárias e trans-históricas que expliquem a formação da identidade de gênero ou do patriarcado geram teorias com ranço essencialista, pois transformam fatos discursivamente construídos em normas.
Em termos mais gerais, esta ênfase na diferença visa negar qualquer possibilidade de se transcender a localização particular do sujeito do conhecimento, especialmente por meio da negação de idéias como universalidade, necessidade, objetividade, subjetividade, unidade, verdade e mesmo realidade. Considerar a diferença significa focar a particularidade, a contingência, a instabilidade, a ambigüidade, em resumo, negar as idéias mais caras ao Iluminismo (Hamlin, 2007, s/p).
 Nesse escopo, falar sobre a categoria mulher torna-se extremamente problemático. Foram as reflexões das teóricas filiadas a esta corrente, provocadas pela primeira vez pelos movimentos feministas negro e lesbiano, que chamaram atenção para as vozes que são silenciadas nesse conceito.

Ao privilegiar a diferença, é possível perceber e destacar o elemento opressor existente na categoria mulher. A desigualdade de gênero não é vivenciada da mesma maneira por todas as mulheres, possui matizes relacionados à cor, etnia, classe, orientação sexual, nacionalidade etc. Sendo assim, a fala de intelectuais, brancas, heterossexuais e de classe média, além de não representar a todas as mulheres nos mais variados contextos de desigualdade, contém um ranço opressor e excludente.

“Esta crítica da "mulher" como um objeto unificado de teorização implica que "mulher" também não pode constituir um sujeito unificado de saber (Lugones & Spelman 1983). As teorias da identidade de gênero universal sob ataque são aquelas em que as autoras, todas mulheres heterossexuais, de classe média, branca, podiam ver-se. Os críticos afirmam que as autoras falham ao não conseguirem reconhecer a sua própria condição como situada e, portanto, os caminhos em que estão implicadas ao reproduzir as relações de poder, neste caso, a autoridade presunçosa de mulheres brancas, heterossexuais, de classe média para definir "o ponto de vista das mulheres", para falar por todas as outras mulheres e definir quem elas são” (Anderson, 2011, s/p).

Ante o exposto, fica claro que dentro desta abordagem a idéia de privilégio epistêmico não se sustenta. Para além disso, no pós-modernismo feminista a situação epistêmica contemporânea caracteriza-se por uma pluralidade discursiva e, portanto, pela parcialidade[4]. Aqui, diferentemente das outras abordagens, há um abandono da idéia de objetividade e mesmo de verdade: não é possível ao sujeito cognoscente transcender a sua situação, tampouco arvorar para si uma visão de “lugar nenhum”.
É no nível metateórico que as filosofias pós-modernas do conhecimento podem contribuir para um auto-entendimento mais preciso da natureza de nossa teorização. Não podemos simultaneamente afirmar (1) que a mente, o eu e o conhecimento são socialmente constituídos e o que podemos saber depende de nossos contextos e práticas sociais e (2) que a teoria feminista pode revelar a Verdade do todo de uma vez por todas. Tal verdade absoluta (por exemplo, a explicação de todos os arranjos de gênero em todos os tempos é x...) requereria a existência de um “ponto de Arquimedes” fora da totalidade e além de nossa inserção nela, a partir da qual poderíamos ver (e representar essa totalidade). O objeto visto (totalidade social ou arranjo de gênero) teria de ser apreendido por uma mente vazia (a-histórica) e perfeitamente transcrita por/em uma linguagem transparente (Flax, 1991, p.235).
No bojo do feminismo pós-moderno, portanto, a tarefa principal das teóricas feministas é pensar sobre como pensamos, ou não pensamos, a respeito do gênero. E essa tarefa deve ser feita de modo que articule as perspectivas dos mundos sociais a que pertencem os sujeitos cognoscentes, fazendo-os pensar sobre: a repercussão desse pertencimento em sua produção, as relações de poder que podem estar subjacentes às suas interpretações destes mundos e em como é possível transformar essas realidades (Flax, 1991, p.246).

Contudo, os benefícios e/ou a necessidade dessa aliança entre as teorias feminista e pós-modernista não são ponto pacífico dentro da epistemologia feminista. Muitas são as críticas feitas a esse casamento e às reflexões epistemológicas que dele derivaram.

Para Benhabib (1995), uma das principais críticas dessa aliança teórica, se se considerar algumas das principais características dos pós-modernismos, seria o caso de nos perguntamos: feminismo ou pós-modernismo?

Segundo a autora, a proclamação das mortes do sujeito, da História[5] e da Metafísica[6] é o movimento que permite a articulação do pós-modernismo com feminismo, e, ao mesmo tempo, acarreta fortes obstáculos para que tal aliança seja bem-sucedida. Pois, alguns dos pressupostos subjacentes a esses funerais seriam incompatíveis com determinados pilares centrais à epistemologia e à teoria feminista, como a sua dimensão crítica e emancipatória.

Discorreremos com mais vagar sobre a morte do sujeito, que, segundo nossa leitura de Benhabib, é o elemento de intersecção entre os funerais e traz as conseqüências mais impactantes para uma possível articulação entre feminismo e pós-modernismo.

Ao afirmar que o sujeito está morto, deseja-se pôr fim ao essencialismo presente em algumas concepções de ser humano. Para os pós-modernistas, de modo geral, interessa destacar que este sujeito é uma construção histórica, social e lingüística. “O homem está sempre atrelado a redes de significados fictícios, a cadeias de significação, nas quais o sujeito é meramente outra posição na linguagem” (Flax apud Benhabib, 1995, p. 18).

No âmbito do pensamento feminista, essa tese reverberou em uma busca por desmistificar o sujeito masculino da razão. Isto implicou, em suma, apontar que o sujeito cognoscente é situado por vários elementos, entre eles o gênero. A razão ocidental arvora para si o posto de discurso de um sujeito universal, encobrindo a existência daqueles que não se encaixam em suas categorias (Benhabib, 1995, p. 19).

Vejamos os problemas que podem surgir de interpretações mais radicais, que Benhabib chama de fortes, dessas afirmações. Ao considerar o sujeito como posição na linguagem, o pós-modernismo dissolveria o agente numa cadeia de significados, retirando-lhe a reflexividade, a intencionalidade, em suma, a autonomia.
O sujeito, que não é senão outra posição na linguagem, não pode mais dominar e criar essa distância entre si mesmo e a cadeia de significações, em que está imerso, para que possa refletir sobre ela e criativamente alterá-las. Portanto, a tese forte da morte do sujeito não é compatível com os objetivos do feminismo” (Benhabib, 1995, p.20).
Nesse sentido, a questão central na crítica à aliança do feminismo com o pós-modernismo diz respeito à impossibilidade de conciliar ideais emancipatórios com uma concepção de sujeito que é incapaz de se distanciar e refletir criticamente sobre seu contexto com o intuito de modificá-lo.

Afora isso, o enfoque na fragmentação e na diferença em sua crítica à categoria mulher, quando radicalizado, inviabiliza tanto uma análise acurada das relações de gênero (é impossível manter todos os eixos de diferença em foco de uma só vez), quanto a construção de uma coalizão politicamente eficaz entre mulheres com diferentes identidades. “Que as mulheres em diferentes posições sociais podem experimentar o sexismo de maneira diferente, não implica que elas não tenham nada em comum, elas ainda sofrem com o sexismo” (MacKinnon, 2000 apud Anderson, 2011, s/p).

Conclusão

De um modo geral, a principal crítica dirigida às correntes da epistemologia feminista é a de que aquelas corrompem a busca pela verdade, pois misturam fatos e valores. Isso, para os seus críticos, poderia acarretar restrições políticas às conclusões de suas pesquisas.

Além disso, alguns críticos acusam as epistemólogas feministas de cinismo a respeito da ciência, como se suas críticas ao modo como a ciência tem sido pensada e produzida deslegitimasse sua fala nesse campo. Ou pior, como se, com suas críticas, as feministas apenas quisessem entrar no campo científico e impor suas crenças, mas não modificar as regras e paradigmas até então hegemônicos nesta seara.

As epistemólogas feministas refutam tais críticas, afirmando que a sua autoridade cognitiva repousa sobre bases democráticas e igualitárias e, portanto, sobre uma atitude aberta à crítica que é incompatível com esse tipo de manipulação dos resultados. Some-se a isso, o fato de que os debates feitos por suas diversas vertentes lançam questionamentos ao modelo tradicional de ciência, que deixam claro o quão inadequada é uma leitura cínica de tais afirmações.

Por fim, o conceito de conhecimento situado desacredita a possibilidade de uma separação total entre fato e valor em qualquer tipo de pesquisa científica. E, portanto, a mesma acusação feita às pesquisadoras mulheres, pode ser feita aos pesquisadores homens (falando apenas do gênero como um dos inúmeros elementos que situam a produção do conhecimento).

Notas

[1] Alguns teóricos defendem a existência de estilos cognitivos diferentes para sexos e gêneros diferentes (Belenky et al 1986; Gilligan, 1982 apud Anderson, 2011). Independente de concordarmos ou não com isso, sabemos que estilos cognitivos, frequentemente, são simbolizados por meio de metáforas e associações com o gênero. Os elementos dedutivos, analíticos, atomísticos, acontextuais e quantitativos são rotulados como "masculinos", enquanto os elementos intuitivos, sintéticos, holísticos, contextuais e qualitativos são rotulados como "femininos" (Anderson, 2011, s/p).

[2] A teoria feminista define uma representação como androcêntrica quando esta descreve o mundo de acordo com os interesses, valores, emoções do gênero masculino apenas (Anderson, 2011, s/p).

[3] Anderson (2011, s/p) afirma, ao discutir as críticas sofridas pelo empirismo feminista, que o debate sobre conhecedor situado já foi incorporado a esta tradição.

[4] “Eu acredito, pelo contrário, que não há força ou realidade “fora” de nossas relações sociais e atividades (por ex. história, razão, ciência, alguma essência transcendental) que nos livrará da parcialidade e diferenças. (...) as teorias feministas, como outras formas de pós-modernismo, deviam nos estimular a tolerar e interpretar a ambivalência, a ambigüidade e a multiplicidade, bem como a expor a origens de nossas necessidades de impor ordem e estrutura, não importa quão arbitrária e opressivas essas necessidades possam ser” (Flax, 1991, p.250).

[5] A História, tal como pensada até então, é vista como precondição para e justificação da visão do sujeito cognoscente universal. Ainda mais, quando atrelada ao conceito de progresso. Essa concepção de História estaria fundada em idéias como unidade, homogeneidade, totalidade e fechamento. Essa crítica no âmbito do pensamento feminista foi incorporada de forma a destacar que o sujeito da História é o homem, branco, chefe de família, proprietário e cristão. Portanto, a História como narrada até o presente resumir-se-ia à sua estória, excluindo a todos os seus Outros (Benhabib, 1995).

[6] Funda-se na crítica a uma metafísica da presença. Os pós-modernistas afirmam que a busca por conhecer o real e o verdadeiro, na verdade, esconde o desejo dos filósofos ocidentais de dominar e controlar o mundo, encerrando-o em um sistema total. A versão feminista desta crítica é conhecida como o ceticismo feminista com relação às reivindicações da razão transcendental. Ou seja, se o sujeito da razão não é um ser supra-histórico, sua produção teórica, suas práticas e etc. estão imbuídas de interesses e marcadas, por assim dizer, pelas relações de gênero (Benhabib, 1995).

Referências Bibliográficas

Anderson, Elizabeth. Feminist Epistemology and Philosophy of Science. In The Stanford Encyclopedia of Philosophy. 2011. Disponível em: http://plato.stanford.edu/entries/feminism-epistemology/
Beauvoir, Simone. O Segundo Sexo: Fatos e Mitos. Vol. I. São Paulo: Difusão Européia do livro, 1970.
Benhabib, Seyla. Feminism and Postmodernism: an uneasy alliance. In Feminist Contentions: a philosophical exchange. Nova York e Londres: Routledge, 1995.
Code, Lorraine. Feminist Interpretations of Hans-Georg Gadamer. Pennsylvania: The Pennsylvania State Press, 2003.  
Flax, Jane. Pós-Modernismo e Relações de Gênero na Teoria Feminista. In Pós-Modernismo e Política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
Hamlin, Cynthia Lins. Ontologia e Gênero: Realismo e o método das explicações contrastivas. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol.23, Nº 67, 2008, pp. 71-81.
__________________. Realismo, Feminismo e a Negatividade da experiência Hermenêutica. 2009. Disponível em: http://www.quecazzo.blogspot.com/2009/06/realismo-feminismo-e-negatividade-na_30.html
___________________. O que é Epistemologia Feminista?. 2007. Disponível em: http://www.quecazzo.blogspot.com/2007/09/o-que-epistemologia-feminista.html
Harding, Sandra. Gender and Science: two problematic concepts. The Science Question in Feminism. Ithaca e Londres: Cornell University Press, 1986.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

O Humor Politicamente Incorreto e o Humor Incorretamente Político


Outro dia postei por aqui os links para a Revista Pittacos e para o blog do Igor Machado, O Chihuahua Anão. Abaixo, reproduzo um texto do Igor publicado na Pittacos. Combinação explosiva.

Correção: Ao contrário do que disse, o autor do texto não é o Igor Machado, autor do Chihuahua Anão, mas Igor Suzano Machado, que não conheço, mas que também escreve bem pra burro. [Cynthia]

Os excessos do chamado “politicamente correto” enchem o saco. A facilidade que as pessoas têm tido para se sentirem ofendidas com qualquer coisa, numa vida que cismaram não poder ter mais nem dores nem frustrações, também anda insuportável. Sob essa encruzilhada da patrulha moral e do diagnóstico do bullying, uma vítima sempre com potencial de ser atingida mortalmente é o humor. Afinal, nada mais normal do que uma piada rebaixar ao ridículo seus personagens e esses personagens serem representantes de todo um grupo social. O escárnio é parte integrante do humor e quanto mais inofensiva for uma manifestação humorística, provavelmente mais sem graça ela também será.

Tentando “salvar” o humor dos riscos da patrulha do politicamente correto, um grupo de “comediantes rebeldes” teve a “brilhante” ideia de criar um show “proibidão”, no qual poderiam ficar à vontade para fazer um humor sem limites, amparado, inclusive, pela assinatura de um termo de compromisso firmado por aqueles que iriam assistir à apresentação. Nesse termo de compromisso, a audiência do espetáculo faria um exercício básico de previsão do futuro e realização de uma jornada de profundo autoconhecimento psicológico para garantir que não se sentiria ofendida pelas piadas contadas. O resultado ficou amplamente conhecido: um dos humoristas achou que seria superengraçado comparar um dos músicos da banda que acompanhava a apresentação, e que era negro, a um macaco.

O músico, que não havia assinado o termo de compromisso, sentiu-se, obviamente, ofendido e chamou a polícia contra o ato de desrespeito do humorista. O caso ganhou visibilidade midiática e gerou uma série de manifestações, incluindo as de outros humoristas, como o global Bruno Mazzeo – filho do, também humorista, recentemente falecido, Chico Anysio – que fez questão de ressaltar que a brincadeira feita no show nada tinha a ver com humor, se resumindo à mera ofensa. Por outro lado, o arauto dos humoristas rebelados contra o politicamente correto, Rafinha Bastos, também fez questão de se manifestar, ridicularizando Mazzeo, em defesa do autor da piada, em nome da liberdade de expressão, e destacando que o humor depende do contexto, e que só quem estava presente poderia julgar o contexto daquela piada e se, assim, teria sido uma piada boa ou não.

Que o humor depende do contexto eu concordo plenamente, e, nessa específica questão, sou obrigado a endossar as palavras de Rafinha Bastos. Mas o que me chama atenção é a correção da observação feita por alguém que tem se destacado, justamente, pela falta de inteligência e sensibilidade para compreender os contextos em que são feitas as piadas. Afinal, Rafinha Bastos é aquele homem que, inserido no contexto de uma sociedade machista e violenta e que coordena essas suas duas características das formas mais escrotas possíveis, achou que seria engraçadão dizer que uma mulher vítima de estupro deveria agradecer pela violência sexual sofrida. Agora, Rafinha é aquele branco que, inserido no contexto de uma sociedade racista, que nivela a humanidade de seus cidadãos com base na cor da pele, acha que chamar um negro de macaco é exercício regular da liberdade de expressão.

O contexto não é o apanágio das gracinhas “politicamente incorretas” de Rafinha Bastos e companhia. Pelo contrário, é o que tira delas toda a sua graça. O problema não está em ofender alguém; o problema está em achar que reproduzir ofensas que perpetuam uma ordem social discriminatória tem alguma graça. Quando a chacota tem uma dimensão subversiva, quando o humor rebaixa quem está no alto, igualando-o aos comuns, ridicularizando a afetação dos ricos, ou a incompetência dos governantes, ou ignorância dos famosos, por exemplo, ela pode ofender pessoas pertencentes a esses grupos. Mas, ainda assim, terá graça, pois faz do humor um campo de batalha entre iguais, em que o dinheiro, o poder ou a fama, que podem proteger de outros julgamentos, não permitem a completa blindagem dessas pessoas contra a ridicularização humorística.

Logo, o problema das piadas do “proibidão” não reside num humor politicamente incorreto, mas sim num humor incorretamente político, que, em vez de se arriscar na contestação dos valores vigentes, escancarando suas inconsistências e o que têm de ridículo, se protege na zona de conforto de exaltar como quem está por cima mantém os demais abaixo. Para escancarar o quanto as mulheres são colocadas em situação de inferioridade e de sujeição à violência por parte dos homens, ou o quanto os negros são discriminados por brancos, não faz sentido recorrer ao escárnio; para isso já temos todas as outras coisas sem a menor graça que fazem questão de cuspir isso na nossa cara, o tempo todo, como estatísticas de empregabilidade e violência, notícias de jornal, etc.

Ou seja: o problema de “piadas” como essa feita com o músico negro, não é que possam ofender alguém – há boas piadas que também podem ofender muita gente. O grande problema dessas piadas é que elas são profundamente sem graça, por lhes faltar sagacidade na compreensão do contexto em que estão inseridas e da potencialidade do humor não para reproduzir e manter esse contexto, mas para denunciar o que ele tem de inconsistente e o quanto sua caricaturização escancara o seu ridículo. Exemplo dessa interação entre piada, contexto e subversão são as brincadeiras com o ex-presidente Lula que, quando ridicularizam alguém que foi presidente do país, focando tal característica, podem ser engraçadas, mas quando usam a figura pública do ex-presidente apenas para representar um analfabeto, ridicularizando uma situação já socialmente rotineiramente rebaixada, são sempre bobas, recheadas de preconceito e profundamente sem graça.

Aproveitando a referência ao ex-presidente, vejamos outro caso relativamente recente que exemplifica bem as dimensões da ofensa e do contexto no humor. Lula foi um dos responsáveis direto pelo Sistema Único de Saúde do país durante os oito anos em que foi presidente. No ano passado, ele ficou doente e alguém disse que ele deveria se tratar pelo SUS. Muita gente ficou chateada com a piada, se sentindo de alguma forma ofendida, tomando as dores do presidente. Mas isso, por si só, não tira da brincadeira a sua graça. Sem entrar no mérito das qualidades do SUS, ou de quanto é infinitamente melhor tê-lo do jeito que ele é do que não tê-lo de jeito nenhum, o fato é que o SUS não “beira à perfeição”, como afirmara o ex-presidente, e que é de extremo mau-gosto com quem sofre algum tipo de problema de saúde fazer uma gracinha, como ele fez pouco antes de descobrir sua doença, dizendo que até gostaria de ficar doente só para fazer uso das convidativas instalações da unidade de saúde que acabara de inaugurar. A brincadeira de que Lula deveria tratar sua doença no SUS, escancarando a falta de consistência e sensibilidade no discurso presidencial serve bem para mostrar que, independentemente do status ou poder, no erro, na insensibilidade, nos exageros retóricos, etc., o ex-presidente não conseguia estar acima dos “comuns” e podia ser exposto ao ridículo como qualquer um.

Ou seja, o humor tem de interessante exatamente poder fazer com que ex-presidentes e demais poderosos, aparentemente tão acima dos “normais”, tenham exploradas as suas falhas, deixando claro como, nos erros e no ridículo, disputamos todos em situação de igualdade. Para fazer, num sentido contrário, com que negros, mulheres, gays, gordos e demais discriminados, colocados tantas vezes abaixo dos padrões branco, masculino, hetero e magro, continuem tendo destaque justamente nessa posição subalterna não é necessário humor. Não é necessário nada. É só deixar tudo como está. E é a isso que tem servido o suposto “humor” desses humoristas, em tese, “rebeldes”, que, por mais ofensivo que seja, não tem na agressividade seu maior problema, pois muito mais grave, em se tratando de humor, é a sua completa falta de graça.

terça-feira, 3 de abril de 2012