sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Carta a Luciano Oliveira - Parte II


Por Luis Augusto Sarmento Cavalcanti de Gusmão

  Vejamos mais uma questão levantada em suas “Notas de leitura”. Eu faria, diz você, “malabarismo verbal” ao distinguir as luminosas generalizações acerca dos seres humanos e suas interações duráveis, encontradas na grande literatura e na melhor filosofia, das “teorias que os sociólogos prezam”. Eu estou convencido de que as generalizações de Tchekhov e Stendhal, citadas em O Fetichismo do Conceito, constituem um sofisticado e valioso conhecimento do geral em assuntos humanos. Diria também que esse saber, formulado exclusivamente com base em conceitos de senso comum expressos na linguagem corrente, apresenta, num contraste vivo com os sistemas filosóficos particulares que buscaram rupturas com o “vulgo”, algumas das características distintivas das ciências mais avançadas: impessoalidade, generalidade e indubitável conteúdo empírico. Isso não significa dizer, claro, que toda generalização formulada por literatos de gênio possua essas características. Estou apenas buscando mostrar que a capacidade de produzir generalizações sumamente inteligentes e verdadeiras em assuntos humanos não constitui, ao contrário do que ocorre em relação ao conhecimento da natureza, um privilégio epistêmico profissional, não requer a iniciação prévia num saber especializado. Contudo, não estou contrapondo, em termos gerais, “a teoria que os sociólogos prezam” às generalizações já disponíveis na chamada grande cultura humanista. Podemos localizar, sim, conclusões gerais de inegável valor cognitivo nas obras dos mais importantes teóricos sociais. Em O Fetichismo do Conceito, admito esse fato da forma mais clara e explícita possível. Com efeito, logo depois de fazer o elogio das geniais observações de Stendhal sobre a paixão de poder, escrevo: “essas lúcidas generalizações de Stendhal poderiam ser combinadas, numa mesma análise, com algumas generalizações de Weber, não menos lúcidas, formuladas contra um implausível reducionismo economicista em sociologia política”. E mais adiante, numa demonstração inequívoca de que não se trata de negar a importância do conhecimento teórico para as investigações sociais, mas sim de, rejeitando um injustificável cientificismo, ampliar as bases teóricas dessas investigações:

“se, abrindo mão da ideia de imaginárias rupturas com a sabedoria de senso comum, entendermos, sensata e realisticamente, por ‘base teórica’ da investigação social apenas uma boa coleção – das mais distintas procedências – de conclusões gerais, inteligentes, plausíveis e bem documentadas acerca dos seres humanos e suas relações duráveis, então, cabe reconhecer, as generalizações de Stendhal e Weber podem sim funcionar perfeitamente como tal” (p. 102-103).

  Não temos aqui, obviamente, a desqualificação dogmática das generalizações formuladas pelos grandes teóricos sociais em seu conjunto. Na realidade, para todos eles vale a observação feita sobre Marx: “a rejeição completa e dogmática de um grande autor soa tão pouco inteligente e sensata quanto sua acolhida incondicional, e Marx, sem dúvida, é um grande autor” (p. 64). Por outro lado, vale a pena sublinhar, a crítica de dispensáveis e problemáticos jargões sociológicos não implica, em absoluto, a rejeição de toda generalização formulada pelos teóricos sociais. Cabe lembrar que algumas das melhores generalizações sociológicas foram expressas na linguagem corrente, sem o recurso a nenhum vocabulário “técnico”. Eis duas delas, mencionadas no livro: 1) as condições materiais da vida coletiva influenciam os aspectos políticos, morais e intelectuais dessa vida (Marx); 2) a  política não  pode ser invariavelmente  deduzida da economia, pois “o homem não luta pelo poder apenas para enriquecer economicamente” (Weber). Temos aqui duas inteligentes e verdadeiras generalizações empíricas que são, aliás, perfeitamente compatíveis entre si, desde  que não interpretemos a primeira como uma “lei geral”, pois, nesse caso, não seria muito difícil desmenti-la. Como podemos ver, ambas dispensam completamente a utilização afetada de esotéricos jargões sociológicos. A insistência em usar esse tipo de vocabulário “técnico” evidencia apenas um ingênuo e infundado cientificismo. Nada mais.

  Vejamos, agora, as  dificuldades que você aponta em meu elogio do senso comum. Esse elogio, sobretudo por estar associado ao balanço impiedoso do interpretativismo teoricista, incomodou bastante. Alguns − você é um deles − viram aqui a mais injustificável indulgência para com o “vulgo”. Nesse aspecto, os sociólogos lembram muito os filósofos sistemáticos, sempre preocupados em guardar uma boa distância desse “vulgo”, em convencer o seu leitor de que o esoterismo de seus vocabulários “técnicos”, similarmente ao que ocorre no mundo das ciências naturais, é o preço a ser pago para o acesso privilegiado a segredos ocultos do mundo. A substituição da  linguagem corrente, a única empregada pelo “vulgo”, por jargões esotéricos e o acesso a tais segredos, constituiriam, assegura-se, os dois lados de uma mesma moeda. Venho reunindo nos últimos tempos materiais para um novo livro sobre o fetichismo do conceito na filosofia (muito pior do que na sociologia...), no qual tentarei mostrar, com incontáveis exemplos, que essas tentativas de romper com os significados usuais, de senso comum, dos termos da linguagem corrente, forjando jargões esotéricos nos quais esses termos assumem significados “técnicos”, longe de levar, como se pretendia, a enunciados tão impessoais, universais e verdadeiros como os das ciências mais avançadas, acabou produzindo conclusões que só têm em comum com as formulações científicas o esoterismo vocabular. Já na sabedoria fragmentária encontrada na grande literatura e na filosofia assistemática (obras de autores como Montaigne e Pascal, por exemplo), temos a situação exatamente inversa: sem afetadas e infundadas proclamações de ruptura com a linguagem do “vulgo”, sem a retórica das profundezas, sem nenhuma preocupação com definições “exatas”, são formuladas conclusões que só não partilham com as hipóteses gerais da ciência a dimensão sistemática e o esoterismo vocabular. Nesse aspecto, podemos aproximar, sim, Shakespeare de Newton. Temos aqui verdades gerais, sem dono, impessoais, de validade trans-histórica, cujos conteúdos empíricos se colocam, de fato, acima da dúvida razoável. O elogio do conhecimento de senso comum consiste tão somente na afirmação da possibilidade dessas verdades. Não, não se trata apenas de bom senso, como você conjectura. O conhecimento de senso comum é todo conhecimento formulado apenas com base em conceitos cujos significados foram estabelecidos pelo uso padrão nas rotinas da vida cotidiana; é todo conhecimento que não envolve ruptura alguma com esses significados. Como Shakespeare e Montaigne, para tomarmos dois exemplos ilustres, empregam, em suas luminosas observações acerca da condição humana, os termos da linguagem corrente em seus significados usuais, consagrados, não realizando nenhuma ruptura com tais significados, soa perfeitamente legítimo identificar suas observações como um conhecimento de senso comum. Não temos, simplesmente não temos, outro termo tão abrangente para denominá-las. Se eu encontrasse outro, não veria problema em descartá-lo: não estou discutindo palavras, mas sim uma forma de conhecimento cuja realidade não está em discussão. Além disso, não estou sozinho ao entender o conhecimento de senso comum nesses termos: não é outra a postura dos mencionados filósofos sistemáticos. Não é outra também a postura de teóricos sociais como Durkheim e Bourdieu: o conhecimento social de senso comum é neles explicitamente associado ao uso de conceitos sociais cujos significados foram fixados na vida cotidiana, e não no âmbito de um saber teórico especializado. Por outro lado, não nego, obviamente, a realidade da estupidez e do preconceito no âmbito do conhecimento de senso comum, muito pelo contrário. Com efeito, em O Fetichismo do Conceito podemos ler:

"Não estamos sugerindo, naturalmente, que a identificação do conhecimento de senso comum em termos de uma compreensão mais superficial, mais tosca, insuficiente ou simplesmente errada acerca dos seres humanos e do seu mundo seja de toda inaceitável. Isso não seria muito sensato. É bastante provável que Schopenhauer, ecoando aqui uma convicção muito disseminada entre os homens de espírito de todos os tempos, esteja coberto de razão quando observa ter sido a humanidade, no que diz respeito aos seus atributos morais e intelectuais, ‘tristemente dotada pela natureza’. Petrarca, citado com aprovação por Schopenhauer, faz o mesmo ‘registro etnográfico’ quando, num belo e comovente elogio da solidão, informa ao seu leitor ter sempre buscado uma vida solitária para ‘fugir aos espíritos disformes e embotados que perderam o caminho do céu’” (p. 46-47).

   Mas, como esclareço igualmente no livro, “tal admissão não compromete o nosso elogio do conhecimento de senso comum, pois este abriga também o acervo em questão (de observações e análises de indubitável valor cognitivo), e a distinção aqui não é entre conhecimento científico e conhecimento pré-científico, mas sim entre estupidez e sabedoria no âmbito de um mesmo universo intelectual” (p. 47). Na verdade, longe de ser indulgente com os “espíritos disformes e embotados” e seus preconceitos, eu não escondo minha convicção de que, tratando-se de assuntos humanos, como é o caso das investigações sociais, nenhum aprendizado profissional, nenhum iniciação teórica especializada poderá operar milagres: “a leitura mais atenta, mais exaustiva dos grandes teóricos sociais, como, de resto, qualquer outra leitura, não faz milagres, não transforma, como num passe de mágica, pessoas intelectualmente acanhadas em indivíduos de espírito, em inteligências invulgares, e, cabe reconhecer, apenas indivíduos assim são realmente capazes de concluir coisas sumamente inteligentes e profundas sobre a vida social” (p. 45). Em quase três décadas de experiências acadêmicas, tenho encontrado, cotidianamente, evidências empíricas esmagadoras em favor dessa conclusão. Aposto que você também! Minha reflexão epistemológica possui, acredite, uma dimensão estritamente etnográfica...

  Gostaria de concluir esta resposta, que já se alonga demais, analisando os dois exemplos apresentados de superação do senso comum a partir do conhecimento sociológico profissional. No primeiro exemplo, você assegura que pessoas teoricamente “desarmadas”, ou seja,  ainda não familiarizadas com a literatura sociológica, “partindo do pressuposto de que quem comete crime vai preso”, estariam inclinadas a  concluir pela exatidão da crença segundo a qual os pobres delinquem mais, um erro que poderia ter sido evitado se essas pessoas tivessem entrado em contato com as reflexões sociológicas de Howard Becker sobre o etiquetamento. Ficaria claro para elas, então, que os pobres são mais vulneráveis, “estão mais propensos a ser pegos nas malhas da lei do que os bem-nascidos”, e, por conta disso, acabam constituindo a imensa maioria da população carcerária. A sociologia de Becker, “acessando camadas subterrâneas da realidade”, ajudaria a compreender a inexatidão da mencionada crença de senso comum, expressão tão somente de detestáveis preconceitos,  ao evidenciar o quanto ela está baseada numa duvidosa conclusão: não, simplesmente não é verdade que todo criminoso acaba nas prisões, pois nestas estão, sobretudo, os mais “etiquetáveis”, e os ricos e poderosos, ao contrário dos pobres, não são facilmente “etiquetáveis”: dispondo de mais capital, o econômico, o social e o cultural (vamos colocar Bourdieu também no pedaço, multiplicando assim as “armas teóricas”), poderiam escapar de rótulos infamantes, de etiquetas socialmente desqualificadoras.

  Eu seria a última pessoa deste mundo a negar que a leitura de um sociólogo empírico tão inteligente e sensato como o Becker possa ser útil. A sociologia empírica sempre pode ser útil se desejarmos ampliar e aprofundar o nosso conhecimento da realidade social. Não tenho nenhuma dúvida quanto a isso. A leitura de O Fetichismo do Conceito é perfeitamente dispensável para sociólogos de fato envolvidos na pesquisa empírica, que não alimentem ilusões acerca do alcance de simples quadros conceituais. Tudo bem, mesmo estes costumam mencionar um parzinho de conceitos, em geral para não que não sejam incomodados pela cobrança protocolar da utilização de uma adequada “base teórica”, na imensa maioria das vezes feita pelos colegas menos envolvidos no trabalho empírico. Eu ficaria muito contente se o meu livro pudesse ser utilizado contra esse tipo de cobrança despropositada, invertendo assim certa hierarquia acadêmica... Mas voltemos ao seu exemplo. Nesse caso, a leitura de Becker (assim como a de Bourdieu), soa, lamento dizê-lo, em larga medida dispensável. Façamos um experimento mental para mostrar isso. Imagine um indivíduo formado em Direito, cujo único contato com a teoria sociológica foi uma experiência acadêmica traumática: o seu professor de Introdução à Sociologia, um aluno de doutorado absorvido com sua pesquisa, sem muito tempo para preparar aulas, deu o pior dos cursos, faltou a incontáveis aulas e, como se não bastasse, numa demonstração inequívoca de sadismo, aplicou provas dificílimas, reprovando um bom número de alunos. O nosso pobre rapaz escapou, esteve entre os aprovados, mas concluiu a disciplina detestando com toda a sua alma Marx, Weber e Durkheim, os únicos autores que chegou a ler, ainda assim de forma rápida e superficial. Ele não leu, claro, uma linha de Becker e tampouco de Bourdieu. Anos depois, encontramos o nosso personagem desempenhando com sucesso o papel de delegado da Polícia Federal. É agora o responsável por uma dessas investigações que nos últimos anos vem revelando a atuação criminosa de poderosas quadrilhas infiltradas no serviço público brasileiro. Inteligente, íntegro e muitíssimo bem informado, ele já está acostumado a ver, com indignação, com amargura, políticos e funcionários públicos graúdos escapando da prisão, defendidos com êxito pelos melhores advogados, pelos mais caros. Ele sabe também que a criminalidade descoberta não é toda a criminalidade, que muitos outros criminosos desse tipo, bem-nascidos, filhos das elites, donos do poder, ainda não foram descobertos e, provavelmente, jamais virão a sê-lo. Pergunto: você acha realmente que esse delegado tão plausível e representativo, na sua completa ignorância de Becker, levaria a sério a afirmação segundo a qual todo criminoso vai preso? Você acha realmente que ele precisaria conhecer algum teórico particular para descobrir a falsidade dessa afirmação? Na realidade, eu até exagerei na qualificação profissional em meu experimento: não  é necessário ser um bem informado delegado da Polícia Federal à frente de investigações sigilosas para saber que existe, sim, um bom número de criminosos que estão longe de ser pobres, e estes, devido ao seu poder econômico e social, às suas poderosas  influências, “estão menos propensos a ser pegos nas malhas da lei.” Não temos aqui nenhuma revelação cognitiva acessível unicamente aos iniciados na moderna teoria sociológica, mas sim uma sensata, verdadeira e bem fundamentada conclusão do conhecimento social de senso comum ao alcance de qualquer pessoa que lê jornais e acompanha o noticiário da TV. Felizmente, não?

  No segundo e último exemplo de uma possível superação do senso comum com base no conhecimento sociológico especializado, você mobiliza Gilberto Freyre, autor a quem admiro muitíssimo, embora não o tenha citado uma única vez em todo o meu livro – não queria, entre outras coisas, que o elogio entusiasta de Freyre levasse a tolas interpretações do meu trabalho: já bastava o elogio do pernambucano Evaldo Cabral... Na sua opinião, o contato com a antropologia de Franz Boas teria viabilizado Casa Grande & Senzala, pois no meio social em que Freyre nasceu não seria possível encontrar a clara distinção entre raça e cultura, tão decisiva em seu grande livro. Estou inclinado a concordar quase inteiramente com a sua conclusão. Com efeito, as elites sociais nordestinas eram, nas primeiras décadas do século XX, certamente racistas, confundiam raça e cultura, e se Freyre tivesse permanecido entre elas, em vez de viajar para os Estados Unidos e se tornar antropólogo, poderia, sim, ter acolhido suas crenças e preconceitos, e jamais teríamos Casa Grande & Senzala. Digo “quase”, porém, porque não podemos simplesmente deduzir essa plausível hipótese, dispensando o estudo empírico biográfico: é que jovens brilhantes podem, afinal, em certas circunstâncias, desafiar as crenças vigentes em seu meio social e descobrir bons argumentos para justificar sua rebeldia nos livros mais antigos. As elites nordestinas em questão também eram sexistas, confundiam sexo e cultura, mas não podemos excluir, de forma dedutivista, a efetiva possibilidade de uma “menina de engenho” feminista, capaz de, sem sair de Pernambuco nem virar antropóloga com tese sobre Sexo e Temperamento, de Mead, colocar papai e maninhos em apuros recorrendo a argumentos feministas já disponíveis nas Cartas Persas, do melhor Montesquieu.

  Contudo, deixando de lado essa possibilidade, estou inclinado, repito, a concordar com você: não, não foi de fato baseado nos preconceitos de senso comum, predominantes no mundo em que nasceu, que Freyre escreveu Casa Grande & Senzala. Só não vejo nisso um efetivo contra-exemplo das minhas principais conclusões epistemológicas, entre as quais não está, asseguro, a de que grandes autores, incluindo-se ai teóricos sociais, não podem contribuir, com suas ideias e argumentos, para a superação de erros e preconceitos historicamente datados. Admito isso sem nenhum problema. Diria apenas que tais contribuições não constituem privilégio epistêmico de nenhum grupo profissional, nem resultam exatamente de avanços científicos. Na realidade, a crítica inteligente e bem fundamentada dos preconceitos racistas, sexistas, etnocêntricos etc. já pode ser encontrada, pelo menos, em grandes pensadores dos séculos XVI, XVII e XVIII (que não podemos rotular de “cientistas” sem inflacionar demais o conceito de ciência), ou seja, muito antes do advento da moderna teoria social. As inspiradas passagens de Montaigne contra o eurocentrismo de seus contemporâneos, sua bela e comovente denúncia da conquista da América pelos europeus, são muito conhecidas e até hoje merecidamente festejadas. Os exemplos poderiam facilmente ser multiplicados.

Por outro lado, devemos evitar o erro, tão frequente entre intelectuais, emblematicamente expresso na interpretação da obra de Kant por Heine, de superestimar a força das ideias, a influência do pensamento articulado e sistemático nas mudanças culturais e morais mais abrangentes e duráveis. No caso do relativo enfraquecimento dos preconceitos racistas nos Estados Unidos, é bastante provável que interesses de Estado, associados à política externa americana, assim como a emergência de uma nova classe média negra, tenham sido mais importantes do que a possível divulgação, entre os americanos, das conclusões teóricas da antropologia antirracista do século XX. Infelizmente (apenas para nós, claro), não somos tão influentes assim. Bem, com isso eu concluo minha resposta propriamente dita às suas “Notas de leitura”.

  Gostaria agora de abordar, alongando um pouco mais esse diálogo, um ponto que não foi tratado de forma explícita em meu livro, mas tem suscitado questionamentos. Refiro-me ao que entendo por teoria em termos mais gerais. Cabe esclarecer o seguinte: se queremos com seriedade, para valer mesmo, evitar uma visão discutível de teoria, incapaz de contemplar formas de conhecimento identificadas, sem maiores discussões filosóficas, como teoria, não podemos acolher crédula e dogmaticamente nenhuma ideia particular e controversa de teoria, sustentada tão somente pelo teórico A ou B, e passar a defendê-la como a mais exata e abrangente, desqualificando todas as outras sob a espantosa alegação de que são limitadas ou erradas simplesmente porque não correspondem à ideia de teoria que você acolheu. Agir assim é inviabilizar de saída o debate racional e fecundo, pois as pessoas criticadas poderão, claro, responder na mesma moeda: cada uma protestará assegurando ser ela, e apenas ela, a portadora da verdadeira ideia de teoria, e desqualificará todas as rivais utilizando como critério de verdade a sua própria ideia. Com isso, instala-se um estéril diálogo de surdos que não leva a nada, exceto a uma afirmação de egos. Esse tipo de polêmica inútil pode ser evitado, contudo, se lembrarmos do seguinte: ao contrário de termos como “elétron”, “gene” ou “mitose”, “teoria” não é um termo técnico cujo significado tenha sido fixado de forma unívoca e exata no âmbito de um saber especializado, permanecendo, em decorrência disso, inacessível, de todo inacessível aos não iniciados nesse saber. Isso decididamente não ocorre. De fato, o termo “teoria” pertence por inteiro à linguagem natural empregada nas rotinas da vida cotidiana e tem o seu significado estabelecido, como o dos demais termos dessa linguagem, por um uso social padrão no dia a dia das pessoas. Assim, qualquer usuário fluente na língua portuguesa encontra-se familiarizado com o significado do termo “teoria” e oferecerá provas desse domínio ao usá-lo com sucesso na comunicação diária, sem provocar reações de estranheza ou perplexidade em seus interlocutores. Ele não será capaz, naturalmente, de defini-lo com exatidão, assinalando as condições necessárias e suficientes para o seu emprego correto, mas isso, sabemos todos, não compromete em absoluto o uso bem-sucedido de um termo da linguagem corrente e, a acreditar em Thomas Kuhn, nem mesmo da linguagem técnica das ciências naturais.

  Em seus significados usuais, de senso comum, o termo “teoria” costuma ser empregado para referir coisas diversas, e apenas o contexto de uso permitirá identificá-las com a possível exatidão. Assim, por exemplo, podemos falar da “teoria” que alguém formulou para tornar inteligível um dado evento, digamos, o sumiço de um dedicado pai de família que aparentemente não tinha nenhuma razão para sumir. O delegado maledicente poderá dizer que tem uma “teoria” para explicar o triste fato: “o  pilantra fugiu com outra!”. Nesse caso, o termo estará sendo empregado corretamente como sinônimo de explicação causal. Podemos também usar o termo “teoria” para denominar um conjunto de ideias mais ou menos gerais e abstratas formuladas por um certo autor. Isso ocorre quando falamos nas teorias, digamos, de Rousseau ou Marx. Nesse caso, o termo aparece como equivalente de conhecimento do geral, sem maiores especificações: tanto a física de Newton como a sociologia de Durkheim podem ser identificadas corretamente em termos de um conhecimento do geral. Weber fala em teoria exatamente nessa acepção. Em seus textos metodológicos, teoria e conhecimento do geral são, com frequência, intercambiados. Em The Max Weber Dictionary, key words and central concepts, Richard Swedberg, numa demonstração de bom-senso, não se dá ao trabalho de incluir a termo “teoria”, pois sabe que Weber acolhe, sem maiores discussões, um dos significados usuais desse termo. Ao contrário de muitos teóricos sociais contemporâneos, compulsivamente preocupados em inventar uma nova ideia de teoria capaz de assegurar o status científico da sociologia, numa inequívoca demonstração de cientificismo enrustido, Weber não perde tempo com essas coisas. Os filósofos da ciência, embora às vezes costumem afetar o domínio de um vocabulário “técnico” similar ao encontrado nas ciências naturais (um  cientificismo injustificável, pois o projeto de substituição da velha epistemologia normativa e fundacionista, tão bem expressa no empirismo positivista, por uma genuína “ciência da ciência” não deu em nada, pelo menos até agora), não se encontram numa situação muito distinta. Com efeito, também esses filósofos operam com os termos da linguagem corrente em seus significados usuais e consagrados. Com notável honestidade, Ernest Nagel admite explicitamente esse fato. Referindo-se ao conceito de leis da natureza, ele escreve: “o rótulo ‘leis da natureza’ (ou rótulos similares tais como ‘leis científicas’, ‘lei natural’ ou simplesmente ‘lei’) não é uma expressão técnica definida em alguma ciência empírica. Frequentemente é usado, especialmente na linguagem comum, com um forte sentido honorífico, sem um conteúdo preciso” (Nagel, 1989: 57). Algo parecido  pode ser dito do termo “teoria”. Se tivéssemos aqui “uma expressão técnica definida em alguma ciência empírica”, simplesmente já não seria possível levar adiante intermináveis e estéreis discussões sobre o que é afinal uma teoria, nem faria nenhum sentido apresentar pontos de vista particulares e controversos como se fossem a última e definitiva palavra nessa discussão. Em face de alguma dúvida, bastaria uma rápida consulta a um credenciado especialista ou a um simples manual. Não existem, lembremos, maiores discussões acerca do que é afinal um “gene” ou um “neutrino”. Na realidade, insistir em buscar o significado unívoco e exato do termo “teoria” revela apenas um infundado cientificismo, pois, como diz com razão Stegmüller, “é um empreendimento desesperado apegar-se às maneiras de falar cotidianas e, sem deixar seu nível, querer tirar delas mais precisão do que elas contêm” (apud Veyne, 1998: 147). Acrescentaríamos: além de desesperado, totalmente dispensável, pois a exatidão será atingida aqui tão somente com base em esclarecimentos circunstanciados, conteudísticos, acerca dos contextos de uso. Assim, por exemplo, o termo “ateórico” em meu livro, longe de significar a exclusão de todo conhecimento do geral, um evidente absurdo, refere-se apenas a investigações sociais que não empregam exclusivamente conceitos e generalizações do teórico social A ou B, não possuem uma ideia tão particular de teoria social, ampliando assim a sua “base teórica”. Como o termo “teoria” costuma geralmente ser usado, entre os sociólogos, como sinônimo desses conceitos e generalizações particulares, e nas investigações em questão tal “teoria” não é obrigatória nem exclusiva, podemos chamá-las de “ateóricas”. Além disso, nessas investigações não encontraremos ilações dedutivistas a partir de simples conteúdos conceituais, pois são empíricas. O contexto de uso torna tudo isso perfeitamente claro, dispensando maiores esclarecimentos.

  Por outro lado, lembrar que em suas origens o termo “teoria” assumiu um determinado significado não muda nada, pois não transformamos termos da linguagem corrente num vocabulário técnico fazendo etimologia. Com isso, unicamente ampliamos o inventário dos usos sociais com base na erudição histórica. Esclarecer, por exemplo, que entre os antigos, ou entre os europeus do século XVII, o termo “liberdade” possuía tais e tais significados não é, obviamente, incluí-lo no vocabulário técnico de uma ciência empírica particular. A mesmíssima coisa pode ser dita do termo “teoria”. Pior ainda seria apelar para os significados idiossincráticos, particulares, exclusivos, assumidos no sistema do filósofo A ou B. Com efeito, esse tipo de esclarecimento conceitual só interessa a especialistas em autores, em textos que, distanciados da  pesquisa empírica, pouco ou nada têm a dizer de interessante e novo, pelo menos na primeira pessoa, sobre o mundo, natural ou social. Na melhor das hipóteses, não saímos aqui de uma história dos sistemas filosóficos. Não faria nenhum sentido, soaria absurdo e ridículo, por exemplo, censurar um usuário fluente na linguagem natural porque ele assegurou aos colegas de farras que tinha uma ótima ideia para o próximo final de semana, lembrando que Kant, inspirado em Platão, não autorizaria o uso que os farristas estavam fazendo do termo “ideia”. Os significados dos termos da linguagem corrente não podem ser buscados em autores particulares, mas sim, como já sabia Wittgenstein, num inventário dos seus usos sociais e consagrados, os quais também estão, aprendemos com os historiadores da cultura (Rorty tem razão: cabe a eles, e não a filósofos afastados da pesquisa empírica, inventariar significados), submetidos aos estragos do tempo: destacados de seus contextos originais de uso e introduzidos em novos ambientes sociais, os termos da linguagem corrente sofrem modificações, ganham novos significados, às vezes totalmente distintos. Essas considerações valem, convém lembrar,  para o significado do termo “ciência”, o qual também não é uma expressão técnica, definida com relativa univocidade e exatidão no âmbito de uma disciplina científica, tratando-se antes tão somente do vocábulo consagrado pelo uso social padrão para referir as bem-sucedidas investigações da natureza a partir do século 17 (Hume ainda empregava, sem problemas, o termo “filósofo” ao mencionar Newton e Galileu: para ele, esses dois grandes físicos eram simplesmente os maiores filósofos da história!). A explicação  da extensão do uso do termo “ciência” para outros tipos de investigação, os quais só partilhavam às vezes com a física moderna o hermetismo vocabular, como é o caso de alguns sistemas filosóficos, deve ser buscada em fatores sociais e psicológicos, associados ao enorme prestígio atingido pelo conhecimento científico no mundo moderno, e não em razões propriamente epistemológicas. Com isso, o termo “ciência” acabou assumindo muitas vezes um significado puramente honorífico, e não mais empírico. Hoje em dia, fala-se até em religião “científica”! Como J. Searle com toda razão disse em algum lugar, uma pista segura para alguém descobrir que está lidando com ciências imaginárias, e não reais, consiste  exatamente na insistência de seus praticantes em usar o rótulo “ciência”. Acrescentaríamos: e no tempo que perdem tentando, de todo modo, justificá-lo. Nesse tipo de esclarecimento histórico, a análise de conteúdos conceituais assume, certamente, o formato de um empreendimento empiricamente orientado. Fora disso, possui de fato duvidosa utilidade. Numa disciplina empírica como a sociologia, que não foi constituída para fazer a exegese de autores particulares e controversos, nem inventariar ressignificações de conceitos no tempo, esse tipo de discussão soa, é supérfluo dizê-lo, completamente inútil.

  Quanto à ideia de teoria acolhida em meu livro, não é nada complicada, muito pelo contrário. Seguindo o bom exemplo de Weber, um sociólogo que sensatamente nunca buscou romper com os significados usuais dos termos da linguagem corrente empregados em seu trabalho, como mostro com exemplos concretos em O Fetichismo do Conceito, entendo por teoria apenas o conhecimento do geral, ou seja, um tipo de conhecimento que mobiliza conceitos e enunciados mais gerais e abstratos. Simples, não? Isso é tão abrangente que pode ser usado para referir não só boas generalizações, mas igualmente incontáveis asneiras: também podemos, convenhamos, falar de teorias implausíveis, tolas e fantasiosas. Como já sabia Montaigne, o espírito humano “constrói tão bem no vazio como no pleno e tanto com a inanidade como com a matéria”. Impossível negá-lo.
Uma última observação: suspeito que as nossas convergências intelectuais são, em verdade, bem maiores do que você imagina. Fico feliz com essa constatação. Sugiro, para aprofundá-las, algumas rodadas de caipirinha em Recife, no segundo semestre de 2013.

Um grande abraço,

Gusmão

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