segunda-feira, 25 de março de 2013

Um sociólogo discreto – Robert Castel morreu



 

Por Tâmara de Oliveira (UFS/DCS)

Conheci Robert Castel em Marselha no ano de 2008, num evento de uma instituição escolar para adolescentes que fracassaram no sistema de ensino regular – L’École de la deuxième chance. Vi um velhinho gripado e frágil, extremamente diminuído fisicamente. Mas quando falou no evento, com sua voz baixa e mal calibrada, manifestou-se um grande sociólogo, aquele capaz de falar, a um público não universitário, com a imaginação sociológica do/no mundo.

Na hora do coquetel, aproximei-me, apresentei-me e manifestei-me fã. Ele ficou constrangidissímo; não era homem de espetáculo, mas da vida do pesquisar, pensar e agir (por isso estava naquele evento). Que uma brasileira socióloga venha lhe falar do quanto o admirava, isso o deixava cabreiro, tipo, “essa moça pensa que sociologia é show business?” É uma de minhas vergonhas intransponíveis: ter me aproximado de Robert Castel com o comportamento de uma adolescente fã de Justin Bieber.

No início de sua carreira Castel foi muito aproximado ao que Bourdieu fazia, mas, quando se concentrou num domínio específico da sociologia, o do mundo do trabalho assalariado e de suas relações com o Estado e com o capital, Castel desenvolveu um trabalho autônomo, cada vez mais independente de quaisquer modelos teórico-metodológicos; cada vez mais se apropriando do saber histórico, descritivo e analítico para construir sua sociologia do trabalho e da questão social de ontem e de hoje; cada vez mais preocupado com uma sociologia que renda à sociedade o que a esta, parece-me, é devido: a restituição do que a sociologia consegue lhe entender e propor.

Numa de suas entrevistas dos últimos anos de vida, lá entre 2008/2010, Castel esclareceu o que fazia com que, apesar de sua extrema fragilidade física, ele continuasse a estudar, descrever e tentar intervir sobre as questões sociais contemporâneas que, para ele, eram resultado da “degradação da sociedade salarial” – esta sociedade de interação entre o Estado do Bem-Estar Social e o regime fordista de acumulação, em que um “compromisso social” se construiu em nome de uma relativa redistribuição das riquezas socialmente produzidas. Essas questões seriam três: socioeconômica, urbana e étnica, todas globalizadas ou “globalizáveis”, abordadas a partir de suas dinâmicas articuladas mais visíveis: precariação do mundo do trabalho; recrudescimento e complexificação das desigualdades sociais; segregações urbanas; etnicização dos conflitos sociais.

Castel se preocupava muito com a juventude vivendo nesse admirável mundo novo, de “degradação da sociedade salarial”, no qual a socialização de quem nasce nos lados negativamente segregados significa, em geral, pouquíssimas chances de sucesso escolar e de inserção regular no mundo do trabalho globalizado (precário, flexível e hipercompetititvo). No caso da França, Castel se preocupava também com a parte da juventude que tinha ascendência imigrante nas ex-colônias que, segundo ele, além de crescerem em espaços urbanos socioeconômicamente desfavoráveis, viviam sob o estigma de uma marca indelével de “estrangeiros”, “naturalmente” incompatíveis com a escola, o trabalho, a cidadania, etc. Jovens que nascem e crescem com tudo contra eles, mas sobre os quais, sócio-cultural e politicamente, ergue-se a perversa responsabilização de sua própria sorte – responsabilização resultante de uma lógica societal individualista, ou seja, dissimuladora das articulações entre fracasso individual e estruturas sociais.

E era porque tinha essas preocupações que Robert Castel enfrentou sua gripe de homem velho e viajou até Marselha, para dialogar com jovens franceses que fracassaram no sistema francês de ensino regular, mas que insistiam em aproveitar as migalhas de um Estado do Bem-estar Social degradado: a chance de voltar à escolarização, numa escola de segunda chance. Minha chance, também, de conhecer um grande sociólogo – um que sabia exercer a imaginação sociológica.

Robert Castel morreu no dia 12 de março de 2013, às vésperas de completar 80 anos de idade. Morte discreta, pouco divulgada até no mundo acadêmico, e, ironia inevitável do mundo do espetáculo e das redes sociais, alardeada nos facebooks ou twitters da vida como se tivesse sido um falso anúncio da morte de um ator francês (que não sei de onde saiu). Admirável mundo novo...Pequeno imenso Robert Castel.

9 comentários:

Tâmara disse...

Faço um esclarecimento sobre algo que escrevi em meu texto: dei a entender que a ESCOLA DA SEGUNDA CHANCE seria uma instituição do sistema de ensino estatal francês. Não é isso: trata-se de um projeto da Comunidade Europeia,cujo financiamento é diversificado,contando com alguma ajuda estatal regional também. Daí ter falado em "migalhas do Estado do Bem-Estar Social degradado". Pelo que sei, Marselha foi a primeira cidade e instituir sua ESCOLA, dirigida a jovens de 19 a 25 anos, onde refazem percursos escolares fracassados ao lado de cursos profissionalizantes e atividades culturais. Foi instalada num bairro popular, num antigo matadouro de bois...Virou um lugar bonito, de possível renascimento de moças e rapazes. De fato, é visível o contraste entre a apatia de secundaristas das escolas periféricas do sistema regular de ensino francês e a motivação participativa dos jovens da ESCOLA DA SEGUNDA CHANCE.

Cynthia disse...

Que belo texto, Tâmara! De uma sensibilidade ímpar.

Tâmara disse...

Cyntia,
Fico confortada por alguém como você ter gostado do texto. É que senti realmente necessidade de homenagear um sociólogo que considero muito competente e decente, mas hesitei porque não tinha tempo de reler seus principais trabalhos, pesquisar melhor sobre sua trajetória profissional... Escrevi apenas o que reverbera em minha memória (de meu rápido encontro com Castel e do pouco que já utilizei de seus trabalhos em minha pesquisa exploratória pós-doutoral). Mais uma vez, obrigada demais a vocês do Cazzo pela abertura do espaço.
Se você achou que meu texto possui sensibilidade ímpar, eu achei o seu, o que está abaixo, de uma competência ímpar: um verdadeiro curso de articulação entre arte e conhecimento científico-social, ao mesmo tempo sofisticado, criativo e claro. Aguardo a continuação!Beijo

Luciano Oliveira disse...

Tâmara, querida,

Também tive a oportunidade de conhecer Robert Castel, quando era doutorando da Escola de Altos Estudos, em Paris, e ele dava ali seus seminários. O que dele sabia era quase nada: que foi gente de Michel Foucault, figurando no livro coletivo sobre Pierre Rivière... Só muito depois li o seu magnífico "As Metamorfoses da Questão Social", onde ele trata do tema da "desafiliação", tão fundamental, a meu ver, para compreendermos o mundo que estamos vivendo. Inclusive, no que me diz respeito, para minhas reflexões sobre o que chamo de "sociedade indisciplinar", um "clin d´oeuil" à obra de Foucualt. É um velho projeto que venho cultivando e adiando sobre a violência na sociedade pós-moderna, que se alimenta, entre outras coisas, disso: da desafiliação. Para me reportar a um debate e a um termo que rendeu muito no "Cazzo", Castel é um dos meus "marcos teóricos" nessa empreitada. Perdi a oportunidade. Mas é isso mesmo. Parodiando Vinícius, a vida é a arte do desencontro, embora haja tanto encontro pela vida!
Trata-se de um daqueles franceses de boa cepa, daqueles que a gente lê e entende, daqueles que juntam clareza, erudição e indignação, daqueles, enfim, herdeiros do iluminismo tão maltratado nos últimos tempos. Que bom saber que você também o admirava!
Abração afetuoso,
Luciano (vulgo Cibalena)

Gabriel Peters disse...

Olá, Tâmara! Bela e merecida homenagem. Pensei com os meus botões: a combinação singular entre densidade intelectual e discrição pessoal que marcava a personalidade de Castel tinha um paralelismo na maneira como a sobriedade controlada da sua prosa deixava transparecer, paradoxalmente e de maneira mais poderosa do que qualquer alarde sentimentalista, uma comovente (e contagiante) sensibilidade para com os destinos dos personagens históricos de que ele tratava – pelo menos nesse livro “magnífico” (Luciano) que é Metaformoses. Sem querer fazer (e desavergonhadamente já fazendo) psicanálise selvagem, é como se seu caráter discreto aparecesse, no papel, sob a forma de uma profunda compaixão que não era neutralizada, mas sublimada por todo o aparato de informação histórica e sociológica que recheava o seu texto.
Enfim, tudo isso só torna completamente compreensível seu momento de “Bieber Fever” diante do homem. Abraço


Tâmara disse...

Cibalena e
Gabriel
Eu lembro de você (Cibalena) já ter tocado aqui nessa "sociedade indisciplinar". Poderia recomeçar exatamente escrevendo sobre "desafiliação" de Castel, pra afinar seus "marcos teóricos": seria um encontro com Castel, com o "iluminismo tão maltratado" (é verdade), com a indignação;seria um monte de encontro na vida. Lembro, acho que no prefácio de "La montée des incertitudes", que Castel fez um balanço de seu percurso, lembrava a era feliz do que acho chamarei aqui de encontro freudo-marxista pela vida, da evervescência dessa era de um fazer intelectual sério, indignado, "afiliado". Ele achava, se entendi e lembro, que "herdeiros do iluminsmo" como ele estavam constrangidos atualmente a um reformismo sério. Mas continuava caminhando, como você disse, com clareza, erudição e indignação.
E aí chego a Gabriel. Compaixão discreta: concluamos assim essa psicanálise selvagem. Selvagem mas respeitosa. Como respeitosa e competente foi a trajetória de Castel. Li numa homenagem muito mais detalhada e conhecedora do trabalo de Castel do que a minha, que uma vez ele assim se pronunciou sobre a loucura: "não há nada de divertido em ser louco; é antes uma desgraça". Não sei se você concorda, Gabriel, mas vejo aí a profunda compaixão sem alarde sentimentalista de que você fala, para com os destinos de quem ele tratava - como sociólogo e como homem público.
Um iluminista maltratado, mas competente e decente, Robert Castel.
Obrigada aos dois e grande abraço

Alyson Freire disse...

Belo e comovente texto-homenagem!

Robert Castel é daqueles autores que há tempos guardo entre os meus projetos de leitura. Está lá, discreto, esperando, ano à após ano. Quando penso que vou começar finalmente a lê-lo, vem as urgências das disciplinas, das pesquisas, dissertação, das modas intelectuais, e acabo adiando.

Existem sociólogos que são como cavaleiros solitários, Norbert Elias e Richard Sennett são dois exemplos. Tenho a mesma impressão acerca de Castel. Como aqueles, penso que se trata, também, de um sociólogo a quem não se dá a devida importância. Talvez seja isso o que me atrai em Castel, esse desejo de estudá-lo e entrar em contato com sua obra. Abraços,

Alyson Freire

Tâmara disse...

Alyson,
Embora "cavaleiros solitários" me pareça imagem muito medieval para homens tão mergulahdos na modernidade (até por vício de ofício), gosto dela porque exprime bem a independência ao mesmo tempo serena e ativa do fazer sociológico de pessoas como as que você cita. Mas discordo sobre Elias: acho que este é mais reconhecido do que un Sennet ou um Castel - pelo menos no Brasil...Por outro lado, acho que tanto Castel quanto Sennet nunca se interessaram muito em reconhecimento espetacular: daí passarem meio em branco, sem que se dê a devida importância ao trabalho de artesão sociológico que um fez e outro ainda faz.
E eu também nunca li Castel suficientemente; escrevi essa homenagem modesta porque conhecê-lo pessoalmente e utilizar alguns de seus argumentos límpidos e lúcidos em meu trabalho de pós-doutorado deixaram-me triste com sua morte.
Espero que minha motivação, mais respeitosa do que competente, sirva para que muitos além de você arregacem as mangas e leiam pelo menos As Metamorfoses da Questão Social e La montée des incertitudes: Castel ajuda muito a compreender a sociedade contemporânea de forma clara e comprometida, sem nenhum prejuízo para o rigor.
Obrigada pelo comentário. Abraço

Alyson Freire disse...

Olá, Tâmara

É uma analogia bem medieval mesmo, rs, talvez fosse mais adequado a imagem poética dos "heróis anônimos" da cidade moderna de que nos narra Baudelaire em seus poemas.

Sobre Elias, de fato, nas últimas décadas ele alcançou a devida notoriedade e reconhecimento que sua obra merece. Mas durante muito tempo foi um autor relegado a um segundo plano no mainstream sociológico. Obras como o processo civilizador e estabelecido & outsiders não lograram uma grande repercussão na época de seus lançamentos. Além do mais, como você notou, a expressão "cavalheiro solitário" tem um significado de independência, e no sentido também da não formação de uma escola de discípulos. Parece-me que tanto Elias, Sennett e Castel foram autores meio avessos à escolas e confrarias, ao contrário do que ocorreu com Parsons, Pierre Bourdieu e outros mais... Abraços,

Alyson Freire