quinta-feira, 20 de junho de 2013

Estranho, Inquietante, Esquisito


















Jonatas Ferreira
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Aprendi a ler sob a atenção bondosa de Dona Zuleide, de olhos azuis celeste, e é uma pena não me recordar de seus vários sobrenomes - embora não o saiba de fato, estou certo que uma pessoa tão importante quanto ela, deve tê-los em maior quantidade que a Princesa Isabel. Minha alfabetização ocorreu há muitas décadas, no modestíssimo Grupo Escolar João XXIII – que ainda existe, vi-o recentemente! Numa manhã ensolarada, ao descobrir que eu já tateava de alguma forma o mundo das palavras escritas, Dona Zuleide levou-me até a secretaria do “Grupo”, como chamávamos nossa escola, e apresentou-me à sua Diretora. “Ele já sabe ler”, disse com enorme sorriso. Tendo isso ocorrido por volta dos meus seis anos, não era qualquer forma de precocidade que a impressionara, mas a simples entrada de um aluno no mundo das letras que merecia celebração. Sua alegria, e o discreto ceticismo da Diretora, deram-me a certeza de que fizera alguma coisa importante. Provei minha competência recém adquirida lendo trechos de algum volume prosaico, algo como uma lista telefônica, não lembro ao certo, e talvez tenha recebido felicitações. Certo mesmo é ter contado o tempo todo com a alegria boa e comovida de minha professora.

Esse evento proporcionou-me, todavia, também a oportunidade de experimentar uma frustração considerável. Supervalorizei o alcance do que havia realizado. Julguei que o mero fato de saber ler palavras, iria me abrir de imediato os significados das palavras que formam o idioma português. Caso eu pudesse ler no papel a palavra “prosódia”, que ouvira na rua em certa ocasião, de pronto o seu sentido se abriria como mágica para mim. Dona Zuleide ponderou que a leitura leitura me abriria portas para conhecer tais significados, mas que o simples fato de poder ler a palavra “vastidão”, ou o nome “Alcebíades”, em si, nada esclarecia sobre os horizontes amplos do mundo, ou sobre a vida do famoso general ateniense, aliás, espartano, digo, persa. Ora, de que serve essa tal leitura, se as palavras que eu já sabia, continuo sabendo, e o que eu ainda não sabia, continuo ignorando – perguntei-me ? Creio que essa foi minha primeira experiência filosófica de estranhamento, ou seja, de autoprodução que retorna como algo que não nos pertence, que não nos diz respeito. Sabia ler, mas essa habilidade não me poupava das duras tarefas do aprendizado, antes pressupunha uma carga de novas tarefas com as quais me envolvo até hoje. Pra que aquilo, então? Pra que isso, hoje, portanto?

É precisamente a autoprodução como característica essencial ao processo de humanização, mas que pode sempre retornar como estranheza, como algo impróprio, que constitui um tema recorrente das investigações do jovem Marx. Creio que a tradução dos Manuscritos Econômicos e Filosóficos que a Boitempo lançou em 2004 oferecem ao leitor uma distinção conceitual importante para nós que nos envolvemos durante tanto tempo com a ideia marxiana de alienação - hoje traduzida como “estranhamento”. Há ali claramente definida uma diferença importante entre exteriorização e estranhamento, entre Entäusserung e Entfremdung, que nunca percebi nas traduções anteriores – e, como não sou cuidadoso, há aqui simplesmente a possibilidade de ter eu negligenciado isso que já era sabido por todos. É importante perceber como Marx se debruça sobre um conceito claramente romântico, como o é Entfremdung (estranhamento ou alienação, dependendo da tradução), para dali retirar conclusões muito particulares. Desde Fichte, uma discussão sobre a essência do ser humano esteve relacionada ao ato de exteriorização de si, à produção de objetos, instrumentos, mediante os quais o ser humano se torna outro, ou seja, exterioriza-se (entäussert sich) e, assim, tanto materializa quanto amplia suas possibilidades no mundo. Em outras palavras, se é bem verdade que a escrita deste texto é uma possibilidade minha, ela me é externa e, num certo sentido, não se confunde comigo. A essência do ser humano, para Fichte, é esse agir. O sujeito nega-se nos objetos, na objetividade, que produz e, no entanto, esse ato é sua quintessência. Hegel fala sobre essa exteriorização, esse autoproduzir-se do ser humano, nos escritos de Jena – no Sistema da Vida Ética, por exemplo. Ali já fica claro que esse processo é fundamentalmente técnico, ele requer trabalho, instrumentos, e que, enquanto tal, confere ao ser humano uma condição intermediada. O ser humano humaniza-se quando coloca entre desejo e fruição, entre a vontade de comer uma fruta e o ato de comê-la, um intermediário: o trabalho e os meios técnicos que o tornam possível. E isso implica que esse 'autoproduzir-se' é, ao mesmo tempo, exteriorização e estranhamento (alienação). A alienação humana é, aliás, um motivo religioso e Hegel tinha plena consciência disso. O homem que, com o “suor de seu rosto ganha o seu pão”, é aquele mesmo que conheceu a Queda, o estranhamento de sua própria essência como consequência do pecado original.

Marx compara constantemente o homem e o animal em vários de seus textos de juventude, inclusive, e muito particularmente, nos Manuscritos – essa oposição é, aliás, muito importante para entendermos uma dimensão importante da dialética hegeliana, como argumenta Agamben em O Aberto, e seu sentido religioso. Em sua 'inocência', o animal nada interpõe entre si próprio e sua necessidade, ele é um com ela e, por esse motivo, vive de certo modo na plenitude de sua essência. Mas precisamente por esse motivo jamais poderá se tornar um ser universal – cujo destino seria o controle do mundo físico. Com o ser humano, por outro lado, algo distinto ocorre: ele é essencialmente um autoproduzir-se. E, a partir daqui, Marx se diferencia de Hegel. Se a exteriorização de si é fundamental à própria condição humana, a alienação (estranhamento) que dali decorre não é necessária, mas uma 'contingência' histórica. O sentimento de não se reconhecer naquilo que se faz diz respeito, deste modo, a condições sociais específicas do processo de exteriorização humana, nomeadamente, à existência de um regime de propriadade privada e, de modo muito mais radical, à existência do modo burguês de exploração do trabalho. Na página 81 de minha tradução dos Manuscritos, leio a esse respeito:

quanto mais o trabalhador se desgasta trabalhando (ausarbeitet), tanto mais poderoso se torna o mundo objetivo, alheio (fremd) que ele cria diante de si, tanto mais pobre se torna ele mesmo, seu mundo interior, [e] tanto menos [o trabalhador] pertence a si próprio”.


Nos Grundrisse, ao tentar explicar o processo implícito na compra e venda da mercadoria trabalho - curioso processo no qual o comprador não compra um valor de uso, mas um valor que será transformado em capital -, Marx recorre mais uma vez ao conceito de estranhamento para perceber este processo da perspectiva do trabalhador. Na edição inglesa desta obra, coleção Peguin Classics, lemos a seguinte passagem, que roubo do excelente Prefácio de Martin Nicolau, e traduzo livremente:

É claro portanto que o trabalhador não pode ficar rico nessa troca, posto que, em troca por sua capacidade de trabalho, concebida como uma magnitude fixa, disponível, ele submete seu poder criativo, como Esaú vendeu sua liberdade por uma sopa de batatas. Pelo contrário, ele necessariamente empobrece a si mesmo, como veremos adiante, porque o poder criativo de seu trabalho se estabelece como poder do capital, como um poder alheio que o confronta... Assim, todo o progresso da civilização, ou, em outras palavras, cada aumento nos poderes da produção social, … nos poderes produtivos do próprio trabalho – tais como resultam da ciência, invenções, divisão e combinação do trabalho, meios de comunicação aperfeiçoados, criação do mundo do mercado, maquinas etc. - enriquece não o trabalhador, mas, antes, o capital; aumenta apenas o poder criativo do capital. Posto que o capital é a antítese do trabalhador, isso apenas aumenta o poder objetivo que paira sobre o trabalho” (Marx, op.cit., pp. 307-8)
O retorno da exteriorização, da produção humana como algo estranho, alheio, como algo inquietante é um tema recorrente do romantismo alemão, assim como o é a busca de alguma estratégia de superação desta fragmentação no seio da subjetividade moderna. A imaginação artística em Friedrich Schlegel e Novalis foi concebida, por exemplo, como um remédio para esse mal – Hegel pensará no progresso da Razão e Marx na vitória do proletariado. No âmbito do romantismo como um todo, diga-se, há de se destacar uma vertente literária fantástica que depõe de forma interessantíssima sobre a alienação, sobre o estranhamento - Marx também fala de cadeiras que, a partir de um modo fetichista de ver o mundo, saem trotando com suas quatro pernas. Para a imaginação romântica, frequentemente, é o próprio corpo humano que, desmembrado pela lógica científica, pela dinâmica da vida urbana, retorna como algo alheio. Ocorre-me, por exemplo, um delicioso conto de Gogól: O Nariz. Nesta pequena obra-prima, o assessor de colegiatura Kovalióv, vê com desespero suas pretensões de ascensão social objetivarem-se fisicamente quando perde seu nariz, e, que achado, teima em ganhar vida autônoma, em seguir carreira solo. Aqui não se trata apenas de reconhecer como seu algo ao mesmo tempo íntimo e público, um nariz, mas de convencer essa parte rebelada de seus compromissos com a coerência do todo, do cidadão Kovalióv. O embaraço com o qual Kovalióv se dirige ao seu próprio nariz, que ele encontra em uma igreja de Moscou é antológico.
Como explicar?!”, pensou Kovalióv, e, recobrando o ânimo, recomeçou. “Bem, é claro que eu...aliás, eu sou major. O senhor há de convir que é incoveniente que ande sem nariz. Qualquer vendedora de laranjas descascadas na cponte Voskresênski pode ficar ali sentada sem nariz, mas um rosto que aspira ao cargo de governador, sem dúvida alguma... imagine o senhor mesmo... não sei, excelentíssimo senhor... (então o major Kovalióv encolheu os ombros)... me desculpe... mas se considerar isto de acordo com as regras do dever e da honra... o senhor mesmo poderá compreender...”

A semana passada, meu computador, que julgo ser algo como o nariz de Kovalióv, também se rebelou ao ser invadido por um vírus. Senti-me igualmente desamparado.

O que dizer da “mão encantada”, de que nos fala Nerval, cuja vontade própria termina por levar ao cadafalso Eustache Bouteroue?! Aqui, temos a curiosa situação em que, não apenas uma parte do corpo ganha autonomia em relação ao indivíduo: ela sobrevive à execução do desafortunado Bouteroue. Poderíamos ainda mencionar as inúmeras sombras que se desgarram de seus corpos na literatura do século XIX, entre as quais Italo Calvino seleciona em sua coletânea de literatura fantástica do século XIX um conto de Hans Christian Andersen de 1847? No começo do século XX, um pequeno e curioso filme foi produzido a partir desse mesmo tipo de questão, A Mão Ladra, que lincamos abaixo.


Se em Marx há um depoimento acerca do sentido social do estranhamento, da inquietação (Unheimlichkeit) que marcam a vida moderna, Freud, no começo do século XX, ao se debruçar sobre um conhecido conto de Hoffmann, O Homem de Areia, apresenta uma dimensão mais psicológica e mesmo trágica desse fenômeno. Acho que as duas leituras se complementam, embora possa ver tensões claras entre as duas. Acerca de Freud e seu célebre texto é preciso esclarecer: a questão “estética” com a qual Freud se debruça em O Inquietante (Das Unheimliche), de 1918, coloca-se nessa longa história de reflexão sobre a alienação, sobre o estranhamento, na qual figuram os românticos, Hegel, Marx. É a vida moderna que apresenta aquilo que nos diz respeito mais intimamente como algo estranho e vice-versa – Simmel, por exemplo, falará da estranha intimidade que a compartilha dos serviços de transporte urbano implica. Concentrando-se na sensação de inquietude, em seu sentido estético (tenho em mente aqui a origem etimológica dessa palavra, ou seja, aesthesis: sentir), Freud vai contemplar aquilo que parece escapar às articulações racionais sobre a alienação, às articulações discursivas. Sua intenção é iluminista: recuperar parte desse conteúdo que recusa a simbolização para um terreno simbólico.

Para Freud, o sentimento de inquietude diz respeito a uma série de ambiguidades: entre o que é próximo e o que é mais distante, entre o doméstico, o particular e público, por exemplo. A questão sempre é que aquilo que se nos apresenta como distante, toque-nos tão intimamente, diga-nos respeito de modo tão essencial. Mediante uma exegese de O Homem de Areia, de Ernst Theodor Amadeus Hoffmann, ícone do romantismo alemão, Freud pretende ter acesso a essas e ambiguidades e, através delas, compreender melhor o que há de inquitante em sensações de “déjà vu”, extraordinárias coincidências núméricas, seres inanimados que nos parecem mecânicos e vice-versa, situações familiares que nos parecem estranhas etc. No conto de Hoffmann esses elementos aparecem em profusão: uma boneca mecânica por quem Natanael, personagem central da narrativa, apaixona-se, julgando-a humana, o retorno de um personagem demoníaco sob diversos disfarses, dando a sensação de que o real de alguma forma estagnou etc. A estratégia hermenêutica de Freud não surpreende os seus leitores: desencavar as ambivalências dos sentimentos do personagem central para com sua amada e seu pai e verificar, na impossibilidade de ele aceitar tais ambivalências, colocando seus sentimentos em perspectiva, o motivo para o surto psicótico ao qual ele sucumbe.

Num sentido bem restrito, poderíamos dizer que a leitura de Freud de um processo de estranhamento retorna ao sentido que Hegel confere a esse processo: ontologicamente fundamental, impossível de ser transcendido pelo ser humano como tal. O estranho é decorrente de um retorno dos indivíduos a uma fase de sua estruturação psíquica em que projetavam o mundo como extensões de seus desejos. Se o amadurecimento psíquico nos faz sair do narcisismo primário de nossa existência, ele continua pulsando dentro de nós, aguardando um momento propício para eclodir. Natanael não precisaria ter o destino que teve se alguns eventos propícios o tivessem poupado, ou resgatado. No entanto, sob as condições da vida moderna, os indivíduos estão sempre confrontados com uma realidade cujo sentido lhes escapa precisamente quando procuram dominá-la de forma categórica. Neste sentido, a dimensão psicológica que Freud elabora acerca do estranhamento humano não contradiz o pensamento marxiano, antes abre possibilidades analíticas para as quais Marx não poderia estar atento.

Mas pode ser que tudo isso que vi como forma de elaboração de uma questão moderna central, seja apenas projeção de meu narcisismo primário. É possível que não haja qualquer relação entre Marx, Freud, Hegel, Hoffmann, Gogól e minha professora. Neste caso, todavia, voltaria a sensação de estranheza, de inquietação. Seria possível superá-la estudando um pouco mais?

4 comentários:

Anônimo disse...

Belo texto professor. Possa ser que o texto, seja tanto sua projeção narcísica, quanto uma chave de interpretação de uma questão moderna. Ou seja, possa ser que seja possível lançar luz sobre processo sociais mediante uma projeção narcísica.... Afinal, comum a todos.

Josias.

Le Cazzo disse...

Professor Josias (o pai de Tomé!),

Muito obrigado. O senhor é sempre muito gentil comigo.

E, afinal, de onde provém o dito autocentramento do narcisismo?

Coloquei no texto mais algumas linhas - uma citação dos Grundrisse. Gostaria de ter colocado um outro vídeo, abrindo o post, mas o Youtube não permitiu. Aproveito o seu comentário para apontar um link para este pequeno curta, do qual gosto muito. Chama-se O Homem de Areia e é baseada na fábula, que gerou o conto, que gerou o texto de Freud, sobre os quais me debruço.

Aí vai:

http://www.youtube.com/watch?v=UjgHbRrnjhU

Anônimo disse...

Dizem que a luta é vã, Prof. Jonatas. Mas Josias, nosso amigo, com sua costumeira benevolência, aponta-nos uma possibilidade calcada em algo comum a todos. Pena que venha D. Zuleide, zelosa qual personagem de vídeo, colocar-nos em risco de cegueira com uma perguntinha, inocente que nem malandro em delegacia: mas, afinal, “de onde provém o dito autocentramento do narcisismo?” Inspirado pelo cazzo, sem dar a mínima para o conselho de pessoas mais experientes que eu, e volúvel como sou, Jonatas, não resisto à tentação de voltar, pela milionésima quinta vez, à tentativa de entender o quê diacho seria a tal de apercepção transcendental de Kant... Taí uma coisa que minha professora não me ensinou! Para mim, Prof., a origem de tudo deve ter algo a ver com isso, não sei. Ou talvez tenha a ver com o significado da palavra “cuidado”, tb não sei. Só sei que alguém está dormindo, agora, e que é preciso estar atento... Adorei o texto. Um abraço.
Mauro Mesquita

Le Cazzo disse...

Mauro Mesquita, garoto bom,

Obrigado pelo comentário. Acho que a apercepção transcendental já é sintoma, assim como todo o problema relacionado ao julgamento que Kant expõe na CRP é sintoma. Mais que isso, as aporias kantianas - como sei que meus conceitos correspondem aos objetos? como encontrarei uma unidade entre o eu absoluto e eu objetivo? - já falam de uma sociedade cuja dinâmica depende da constante revolução técnica, do impulso por dominar o real que afinal termina por nos dominar. Aristóteles dava sua solução para o problema do julgamento: experiência, ver muitas vezes o sol girar em torno da terra. Mas o que vale a experiência num contexto de constante transformação? Para mim, o sujeito é sintoma, condição de racionalização mínima da vida quando a autoridade da tradição foi pro espaço. O que é a categoria subjetividade fora de um contexto de modernidade? Minha pergunta sobre narcisismo ia nessa direção. Ou seja, reafirmava o que Josias já havia depreendido do texto que publiquei sobre alienação.

E quando apareces no Recife? Abraço, Jonatas