quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Do diferente e do mesmo: manifestações de junho e sociologia da juventude




Tâmara de Oliveira (UFS/DCS e PIBID/UFS-Sociologia)1

Introdução

Há alguns pontos quase pacíficos no campo da sociologia da juventude – apesar da diversidade teórico-metodológica que, como em qualquer campo das ciências sociais, marca a trajetória do olhar sociológico sobre os jovens. Entre esses pontos, tentarei articular aqui dois – um que se refere à construção social da juventude na modernidade e contemporaneidade; outro que se refere ao próprio olhar da disciplina sociológica sobre o mesmo fenômeno.

Não é apenas o sentido biologizante da palavra que provoca representações homogêneas da juventude, desconsiderando, por exemplo, que entre um habitante do Garcia com 18 anos e um habitante da Terra Dura com a mesma idade pode haver mais diferenças do que entre duas pessoas de faixas etárias distantes mas possuindo a mesma profissão, trabalhando na mesma instituição, frequentando os mesmos lugares de moradia e de lazer, comprando bens materiais e simbólicos com preços e marcas semelhantes, etc. Para além da articulação entre juventude no singular e certas condições biológicas semelhantes, a própria dimensão sócio-cultural do que se concebe como juventude também carrega potências homogeneizantes.
Minha fala aqui terá o caráter estrito de exercício reflexivo, porque só recentemente comecei a estudar a sociologia da juventude. Seguirei sobretudo um texto de uma autora brasileira reconhecida no campo, Angelina Peralva (1997). Depois de segui-la em seu état des lieux, estabelecerei um diálogo crítico com sua leitura dos jovens na contemporaneidade, a partir da seguinte pergunta: as manifestações de junho de 2013 no Brasil não seriam uma expressão empírica de que de que a velocidade da dinâmica societária é uma variável em aberto da potencialidade de renovação societária pela tensão entre enteléquias geracionais?
1-Modernidade e juventude: o insustentável equilíbrio entre o futuro como mandato de renovação e o passado como controle do presente
A construção social da juventude ao longo da modernidade, entre o século XIX até os anos 1950 (quando certas vivências e experiências juvenis começam a abalar o sentido da juventude até então predominante), é exemplar quanto a uma compreensão homogênea da juventude, ou seja, a uma representação social (Moscovici, 2004) que percebe, pensa e age sobre indivíduos de uma faixa etária como se todos coubessem numa mesma definição: a juventude como um mesmo “ente”, uma singularidade homogênea à qual todos os jovens seriam reduzidos. Encarnar a transição com vistas a um futuro melhor é um conteúdo nuclear (Abric, 2001) das representações modernas da juventude – que se pronuncia no singular, como “ente” homogêneo, como traço que se inscreve nos corpos e identidades sociais de quaisquer indivíduos de uma certa e mesma faixa etária.
Destinado à mudança sim, mas não sujeito ou agente da mudança: nem de si mesmo (corpo/mente desengonçado, desequilibrado e instável a ser moldado por forças biológicas e institucionais), muito menos da mudança social (já que enquanto corpo/mente instável e sem experiência, a juventude também é representada como fonte de risco – para si mesma e para a sociedade como um todo). Neste sentido, a representação da juventude possui outro conteúdo nuclear, oposto ao primeiro: o de fonte de risco, marcando-a com uma tensão constitutiva, entre promessa de futuro melhor e ameaça de desordem social. Considerando uma argumentação de Peralva (1997), segundo a qual a modernidade é atravessada por uma tensão entre lógica da modernização (orientação para o futuro) e fundamento normativo (orientação pelo passado), eu diria que tal tensão faz convergir juventude e modernidade: os arranjos societais modernos também são atravessados por uma tensão constitutiva entre um mandato de mudança incessante e a ameaça de desordem pela mudança, à medida em que se trata por um lado de uma cultura orientada para a renovação constante, mas, por outro lado e como qualquer arranjo sociocultural, as sociedades modernas não sobrevivem sem mecanismos e dinâmicas de reprodução da ordem – de valores, de poderes, de instituições. Como encarnação de promessa de mudança em corpo/mente instável, logo ameaçante à reprodução da ordem, a juventude torna-se então objeto de controle social.
Bom jovem, nas sociedades modernas até os anos 1950, seria o jovem “bem-criado”, ou seja, aquele cuja socialização (processos de inserção na ordem social protagonizados por agentes e instituições sociais como a família e a escola) o preparou adequadamente para a saída de um estado representado como provisório, perigoso e irresponsável e a entrada num estado estável, seguro e responsável – quando então poderia assumir as rédeas do insustentável equilíbrio entre reprodução e mudança social que marca a modernidade.
2- Socialização e desvio como categorias opostas da mesma ordem sociológica sobre a juventude
Tal quadro simbólico da juventude vai se projetar nos estudos das ciências sociais sobre jovens pois, até o final dos anos 1950 e início dos anos 1960, sob a hegemonia das categorias ordem social e socialização, o olhar da sociologia vai privilegiar os temas do desvio, da marginalidade e da vulnerabilidade da juventude a processos falhos de socialização. Angelina Peralva (1997) descreve com muita pertinência as características comuns do olhar das ciências sociais em geral e da sociologia em particular sobre a juventude até os anos 1950/1960:
Vale dizer, de passagem, que os temas da ordem e da normatividade estão longe de ser um problema exclusivo do funcionalismo. E, embora o interacionismo tenha renovado profundamente as formas de perceber o desvio, sobretudo deslocando uma problemática até então definida em termos motivacionais para uma outra, definida em termos de interação, ele não rompe com a estrutura básica do raciocínio funcionalista, definida pela oposição entre norma e desvio(...).Nessa perspectiva, se o jovem não constitui uma categoria exclusiva dos desviantes, constitui com certeza uma categoria importante, pode-se dizer mesmo central, nas representações sociais do desvio.
Assim, o temor suscitado pelo jovem, o sentimento de insegurança a ele freqüentemente associado no imaginário adulto, constituem a outra face dessa moeda. Já não se trata aí do jovem cujo desvio é necessário prevenir ou mesmo punir, mas daquele que ameaça o adulto indefeso, encarnando tudo aquilo que, em sua vida, este já não consegue controlar. (Peralva, 1997, p. 19)

3- A geração 1960/1970 como ruptura social e sociológica
Há uma anedota sobre o general De Gaulle que é exemplar para a compreensão das mudanças sociais e sociológicas sobre a juventude, a partir da segunda metado do século XX. Conta-se que, atordoado pelos acontecimentos de maio de 1968 na França, quando um processo iniciado ainda nos anos 1950 explodiu nas ruas de Paris e outras cidades mundo afora, De Gaulle fôra assim informado sobre a causa dos protestos juvenis: “tudo começou porque um universitário quis entrar no quarto de uma universitária”. E o velho herói de guerra, naquele momento presidindo mais uma vez La République, teria respondido: “que um rapaz queira entrar no quarto de uma moça é coisa que qualquer um pode compreender; mas que se ateie fogo no país por causa disso?!”
Continuo seguindo a hipótese de que um dos pontos quase pacíficos na sociologia da juventude contemporânea é a de interpretar que essa concepção da juventude entre promessa de futuro melhor/ameaça de desordem – tornando-a objeto de controle pela ordem social e de socialização ou desvio para a sociologia – começa e ser desconstruída pelos próprios jovens a partir dos anos 1950. Uma conexão geracional, como escreveu muito antes Karl Mannheim, parecia dar seus primeiros passos, mas o quadro social e sociológico em torno da juventude parecia permanecer o mesmo. Foi Maio de 68 que se apresentou ao mundo como o que estudiosos contemporâneos podem chamar de acontecimento (conceito elaborado por Deleuse e que tem sido atualmente articulado por estudiosos num sentido mais sociológico e/ou para a abordagem dos movimentos sociais):
Adotando um olhar mais sociológico, Louis Quéré (2005) também se preocupa com o conceito de acontecimento, buscando destituir a idéia de um sujeito onipotente, que significa o mundo de acordo com suas visões e valores. Quéré afirma que o acontecimento tem um poder hermenêutico capaz de revelar, simultaneamente, passados e futuros. Baseando-se nas idéias de Hannah Arendt, ele lembra que o acontecimento tem um caráter inaugural: ao emergir, ele tem "poder de abertura e fecho, de iniciação e de esclarecimento, de revelação e de interpelação" (2005, p. 60). O autor defende que o acontecimento introduz uma descontinuidade, excedendo as possibilidades do previamente calculado. No entanto, tão logo ele surge, os sujeitos buscam restabelecer a continuidade do mundo, procurando, no passado, anúncios de sua ocorrência. Esse passado não existia, todavia, antes do acontecimento: ele é revelado e esclarecido pelo próprio acontecimento.(...) (Mendonça, 2007, pp. 3-4)
Pois bem, inspirando-me no que Mendonça coloca sobre o conceito de acontecimento, eu diria que Maio de 68 instituiu Charles de Gaulle no passado (foram descontinuidades provocadas por ele que fizeram o velho general sair voluntariamente do poder. Dois anos depois, em novembro de 1970, ele morreria recolhido em seu vilarejo natal). Ao mesmo tempo, a juventude aparecia como sujeito de si mesma, no plano político-econômico, cultural, moral, artístico, enfim, em diversas dimensões do viver em sociedade, como se quisesse virar o mundo de ponta-cabeça e como se os jovens concretos que protestavam nas ruas, enfrentavam polícias, instituiam-se como grupos (hoje em dia diríamos “tribos”) políticos ou comunitários (hippies), inauguravam os posteriormente chamados novos movimentos sociais (mulheres, homossexuais, negros, etc.), construíam seus valores estéticos, políticos, morais no espaço público, fosse de fato um ente homogêneo incorporado em todos os jovens reais e estivesse realizando a ameaça à ordem social com a qual a sociedade moderna lhe representava e controlara.
Evidentemente, essa juventude-ente, esse mesmo simbólico encarnado em milhões de corpos diferentes, continuava representação social redutora da diversidade das experiências dos jovens da época. Não só daqueles que participaram concretamente de diferentes tipos de protesto, mobilização, grupo e visão inovadora de mundo (às vezes estranhos ou conflitantes entre si, como por exemplo jovens militantes de esquerda pregando luta armada e jovens vivendo em comunidades, hippies e outros grupos adeptos de uma cultura “paz e amor”), mas também redutora das experiências e vivências de jovens que nunca participaram de nenhum protesto, movimento, grupo ou visão inovadora de mundo e que viviam todavia no mesmo contexto temporal – como a maioria dos jovens operários ou camponeses que continuavam orientando seus passos para as usinas e roças, mais reproduzindo do que propondo uma ordem social diferente da de seus pais.
4- “O problema das gerações” e as manifestações de junho: um olhar do passado como fonte de renovação dialógica
Se inspirando no funcionalismo, no interacionismo ou no chamado construtivismo estrutural de Pierre Bourdieu, já afirmamos aqui com A. Peralva (1997) que a sociologia da juventude movera-se sob a polarização socialização/desvio juvenis. A chamada corrente “classista” provocou mudanças sociológicas importantes no sentido de desnaturalizar a representação homogeneizante do conceito de juventude e impor a consideração analítica da diversidade de experiências sociais de ser jovem, bem como dos diferentes modos e intensidades de vigiar/controlar o desvio juvenil segundo a classe social dos jovens concretos. Mas essa diversidade era abordada a partir de um quadro conceitual estrito, o da estrutura e dinâmica construtiva das classes sociais, enquanto que as mudanças a partir dos anos 1950 e principalmente o acontecimento de Maio de 68 revelavam dimensões múltiplas da diversidade dos jovens (de valores, de comportamento, de engajamento ou não, políticas, morais, artístico-culturais, etc.).
Por outro lado, Maio de 68 manifestava que representações sociais não significam ilusão ou falsa consciência, mas componente construtivo das dinâmicas societárias. Sendo assim, como o acontecimento de Maio de 68 inaugurara uma presença concreta de práticas, valores, comportamentos e mobilizações protagonizados por indivíduos e grupos cuja faixa etária correspondia à classificação na categoria “juventude”, esta deixa de ser encarada apenas como uma das categorias centrais do desvio social e/ou mero caso particular da reprodução das classes e adquire status de tema importante da sociologia do conhecimento. Mas o texto considerado fundador dessa perspectiva fôra escrito muito antes, em 1928, pelo sociólogo húngaro Karl Mannheim. Nos anos 1960/1970 começou a ser resgatado e a chamada escola geracionista desenvolveu-se a partir desse texto.
Embora construindo-se como crítica a uma concepção cronológica e quantitativa das idades (para ele positivista) e sob a influência da sociologia compreensiva de Dilthey e mesmo de Heidgger, sua teoria das gerações não deve ser identificada com abordagens culturalistas no sentido forte, posto que, segundo Weller (2005), Mannheim considere o ritmo biológico na existência humana e social, prevenindo-se contra o que chama de “espiritualismo extremo” de certas abordagens não positivistas das relações geracionais. Para Mannheim não se pode tratar sociologicamente o problema das gerações sem se levar em conta a influência de condições biológicas na construção social de grupos etários. Assim, embora não devamos pensar tal influência à moda positivista (onde uma classificação quantitativa e mecânica reduz a constituição de grupos etários a uma mística delimitação precisa e cronológica de idades do ciclo biológico de vida), devemos considerar a significação antropológica (no sentido filosófico) de que os humanos crescem juntos daqueles que nasceram num mesmo período cronológico, logo, têm o mesmo ritmo biológico e experimentam influências sociais similares e que isso os torna potencialmente próximos entre si e distantes daqueles que cresceram em período anterior - mas com os quais partilham um mesmo período cronológico.
O mundo social se apresenta então como uma simultaneidade do não-simultâneo, posto que diferentes grupos geracionais partilham um mesmo tempo cronológico, mas podem disputar a formação ou a transformação do “espírito do tempo” de acordo com os conteúdos políticos, sociais e culturais de seus diferentes tempos interiores. É por isso que a dinâmica societária pode ser centralmente afetada por diferenças geracionais. Para Mannheim (apud Weller, 2005), um problema das gerações, ou seja, a realidade empírica de um conflito geracional contendo potências do novo na sociedade, tem relação direta com seu conceito de enteléquia geracional (uma enteléquia sendo a articulação entre o tempo interior de uma geração e “metas íntimas” que ela pode constituir a respeito dos conteúdos socioculturais e políticos do “espírito do tempo”). Uma enteléquia geracional pode se apresentar empiricamente como potência do novo se e quando um grupo etário salta de sua posição geracional (ou seja, partilha de mesmas condições sociais, culturais e políticas permitindo que a geração acumule um estoque de experiências comuns) para uma conexão geracional (quando não apenas se partilha experiências comuns, mas se estabelece participação em uma prática coletiva orientada pelos conteúdos da enteléquia geracional). Em uma palavra, uma conexão geracional tem caráter político, é ativa sociopolítica e culturalmente, enquanto uma posição geracional constitui apenas condições socioculturais similares possibilitando o acúmulo de experiências comuns.
Mas a teoria de Mannheim nos previne quanto a uma concepção homogeneizante do conceito de conexão geracional (ou seja, pensada enquanto vínculo simbólico e prático unificado de uma geração, nos moldes da teoria marxista das classes, na qual uma classe em si e para si aparece como sujeito potencial de uma transformação societária com conteúdos sociais, culturais e políticos unitários). Isso porque uma mesma conexão geracional pode constituir grupos ou unidades geracionais diversas e mesmo conflitantes. Além disso, articulando seus conceitos principais ao fluxo das dinâmicas societárias, o sociólogo húngaro acrescenta variáveis temporais para compreender os diferentes modos e consequências históricas de conexões geracionais concretas: quando o ritmo da dinâmica societária é muito lento (como em sociedades tradicionais), as enteléquias geracionais não são suficientemente distintas para que surja uma conexão geracional capaz de transformar o espírito do tempo; mas quando o ritmo da dinâmica societária é demasiadamente acelerado, isso pode levar a uma superposição de conteúdos de enteléquias intergeracionais, impedindo que uma geração nova constitua “metas íntimas” claras e suficientemente distintas e estabeleça conexão e unidades geracionais politicamente ativas – mobilizadas praticamente e contestatórias da ordem social. Diríamos que, segundo a leitura de Peralva 1997), para Karl Mannheim o ritmo da dinâmica societária precisa estar entre excesso de lentidão e excesso de velocidade para que uma conexão geracional seja portadora do novo, como teria sido o caso da geração 1960/1970.
Conclusões
Utilizando essas variáveis temporais de Mannheim e articulando-as ao trabalho de Margaret Mead sobre juventude e engajamento político para compreender as gerações posteriores a dos anos 1960/1970, Angelina Peralva (1997) desenvolve a seguinte hipótese: o excesso de aceleração da dinâmica societária depois dos anos 1980 teria dissolvido a tensão potencial entre gerações pela “dissolução da oposição entre o passado e o futuro. O futuro se torna presente e absorve o passado” (Peralva, 1997, p. 21), provocando uma juvenização do mundo: ser jovem transforma-se em modelo cultural para todas as faixas etárias. Esse modelo, que também é um potente mecanismo de constituição de mercados de consumo em torno de uma promessa de “eterna juventude”, não significa que se valorize os jovens em sua concretude e diversidade, mas valores e estilos de vida simbolicamente associados ao que se representa como juventude, tais como beleza física, saúde, capacidade de adaptação constante.
Estamos de fato num mundo societal hiper acelerado, mas as manifestações de junho de 2013 no Brasil parecem por em questão a validade da hipótese de Peralva a respeito das variáveis temporais estabelecidas por Karl Mannheim. Não apenas porque elas tiveram uma maioria nitidamente jovem, mas também porque evidenciaram a existência de uma heterogeneidade de unidades geracionais concretas ou virtuais. Além disso, a observação de traços comuns entre nossas manifestações de junho e outras mobilizações com maioria juvenil pelo mundo – Primavera Árabe, Occupy Wall-Street, Indignados, etc. – pode ser um indicador empírico de que a própria hiper-aceleração da dinâmica societária, em escala globalizada ou globalizável, é atualmente um componente potencial dos conteúdos do espírito do tempo em disputa inter e intra-geracional. Com efeito, se pensarmos que por trás do Movimento Passe-Livre há uma colocação em questão dos parâmetros institucionais e simbólicos da distribuição social do solo e da mobilidade urbanas sob a lógica de um mercado capitalista que tem fundas afinidades com certas condições de vida que atingem negativamente a faixa etária jovem, podemos perceber que estamos num periódo cronológico em que a posição geracional dessa faixa etária tem dado passos importantes na direção de uma conexão geracional que ainda vai ocupar o mundo social e sociológico por algum tempo.
Penso aqui no desemprego e/ou na precariedade no mundo do trabalho que atinge particularmente os jovens; na vulnerabilidade à violência na qual, em países como o Brasil, os jovens são protagonistas...Em suma, num espírito do tempo articulado a um novo capitalismo (Sennet, 2006) hiper-acelerado, nas democracias invadidas por sentidos plutocráticos de poder, nas desigualdades que se complexificam em meio a uma cultura problemática do consumo – fazendo das aspirações crescentes de jovens cada vez mais escolarizados, uma fonte constante de frustração...Sob o olhar de Mannheim, esses fenômenos implicariam na partilha de condições sociais, culturais e políticas, ou seja em uma posição geracional problemática, logo, com potência para gerar uma conexão geracional portadora do novo.
O que resultará de tudo isso, não é possível saber ainda. Mas, desde que não confundamos o conceito de conexão geracional com uma representação homogeneizante dos jovens, não busquemos no problema das gerações um substituto da teleológica concepção de classe revolucionária marxista e que não pretendamos pensar a geração de 1960/1970 como modelo transistórico de potencialidades tranformadoras geracionais, devemos reconhecer que os jovens concretos, heterogêneos, portadores de unidades geracionais com metas diferentes ou conflitantes entre si e que foram às ruas em junho de 2013, carregam forças de mudança societal, de disputa e/ou reorientação do espírito do tempo.
Bibliografia básica
ABRIC. C. J.-C. Pratiques Sociales et Représentations. Paris : PUF, 2001.
MANNHEIM, K. “ O problema sociológico das gerações.” II Sociologia do conhecimento. Porto: Rés. Pp. 115-174.exto: Mannheim (geracionista criador da teoria das gerações)
MENDONÇA, R. S. “Movimentos sociais como acontecimentos: linguagem e espaço público. Lua Nova, nº 72. São Paulo, 2007.
MOSCOVICI, S. Representações sociais – investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes, 2004.
PERALVA, A. “O jovem como modelo cultural.” Revista Brasileira de Educação. Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez Nº 6, pp. 15-24.
SENNET, R. A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record. 2006.

WELLER, W. “A atualidade do conceito de gerações de Karl Mannheim: perspectivas para a análise das relações entre educação e trabalho. XXIX Encontro Anual da ANPOCS - GT Educação e Sociedade: Educação, Identidades, Hierarquias. Caxambu, 25 a 29 de outubro de 2005. Acessível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69922010000200004

1Este texto é uma versão reduzida de um paper para uma mesa-redonda, a ser publicado nos anais do III SECIRI (III Seminário de Estudos Culturais, Identidades e Relações Interétnicas), ocorrida no dia 11 de novembro de 2013 na UFS ( Universidade Federal de Sergipe)­

domingo, 3 de novembro de 2013

Um pacto pela reforma da Segurança Pública



Por Renato Sérgio de Lima[1]Claudio Beato[2]José Luiz Ratton[3]Luiz Eduardo Soares[4]Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo[5]. Publicado originalmente na Folha de São Paulo, em 03/11/2013. Cedido ao Cazzo pelos autores.

Em meio à comemoração dos 25 anos da Constituição Federal de 1988, no momento em que os governos e as polícias estão administrando as demandas difusas geradas pelas manifestações que tomaram as ruas desde junho deste ano e, ainda, no contexto da definição dos contornos da disputa eleitoral de 2014, segurança pública continua sendo um tema tabu no Brasil.

O fato é que falar sobre a atual estrutura da Segurança Pública no país implica reconhecer que conseguimos avançar na construção de discursos baseados em princípios de Direitos Humanos e de cidadania, mas que ainda convivemos com um modelo em que a ausência de reformas estruturais obstrui – em termos práticos e políticos – a garantia da segurança pública verdadeiramente para todos.

Os dados publicados na edição 2013 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública reforçam a sensação de que vivemos em uma sociedade fraturada e com medo; aflita diante da possibilidade cotidiana de ser vítima e refém do crime e da violência.

Não bastasse isso, nosso sistema de justiça e segurança é ineficiente, paga mal aos policiais e convive com padrões operacionais inaceitáveis de letalidade e vitimização policial, e com baixa taxa de esclarecimento de delitos, sem falar nas precárias condições de encarceramento. Não conseguimos oferecer serviços de qualidade, reduzir a insegurança e aumentar a confiança da população nas instituições.

No plano da gestão, paradoxalmente, várias iniciativas têm sido tentadas: sistemas de informação, integração das polícias estaduais, modernização tecnológica, mudança no currículo de ensino policial, entre outras. Porém, a história recente da segurança pública tem sido marcada por mudanças incompletas. Ganhos, como a reversão do medo provocada pela implantação das UPPs, no Rio de Janeiro, tendem a perder força, na medida em que não são capazes, sozinhos, de modificar culturas organizacionais anacrônicas.

As instituições policiais não experimentaram reformas significativas nas suas estruturas. Num exemplo, o Congresso há 25 anos tem dificuldades para fazer avançar uma agenda de reformas imposta pela Constituição de 1988 e até hoje possui diversos artigos sem a devida regulação, abrindo margem para enormes zonas de sombra e insegurança jurídica.

Para a Segurança Pública, o efeito dessa postura pode ser constatado na não regulamentação do art. 23 da Constituição, que trata das atribuições concorrentes entre os entes, ou do parágrafo sétimo, do artigo 144, que dispõe sobre as atribuições das instituições encarregadas em prover segurança e ordem pública.

Ou seja, há uma enorme dificuldade de se assumir segurança pública como um tema prioritário da agenda política brasileira. Ao contrário de ser objeto de jogo de empurra que tem sido travado, com União, Estados e Municípios brigando para saber quem paga a conta e/ou quem manda em quem, segurança pública exige superarmos antagonismos e corporativismos e pactuarmos um projeto de uma nova polícia.

Isso significa que resultados de longo prazo só poderão ser obtidos mediante reformas estruturais que enfrentem alguns temas sensíveis, tais como: a distribuição e a articulação de competências entre União, Estados e Municípios e a criação de mecanismos efetivos de cooperação entre eles e demais Poderes; a reforma do modelo policial estabelecido pela Constituição de modo a promover a sua maior eficiência; e o estabelecimento de requisitos mínimos nacionais para as instituições de segurança pública no que diz respeito à formação dos profissionais, transparência e prestação de contas, uso da força e controle externo.

Tais iniciativas devem conduzir à necessária desmilitarização das estruturas policiais, com a adoção do ciclo completo de policiamento e a instituição de uma carreira única de polícia, que valorize o policial. Necessário também consolidar o sistema de garantias processuais e oferecer adequadas condições de cumprimento de penas. Até porque não podemos deixar brechas para o crime organizado.

Seja como for, não precisamos partir do zero. Já existe uma série de projetos em tramitação no Congresso Nacional, como a PEC 51, e que podem ajudar no diálogo sobre o que seriam os principais pontos dessa reforma.

O mais importante é que estamos aqui propondo um pacto suprapartidário em defesa da democracia e da cidadania. E, como ponto de partida, os autores deste artigo, reconhecem que se encontram em diferentes posições do quadro político brasileiro e que a nossa união objetiva reiterar que a reforma do modelo de segurança pública não pode ser mais adiada. Se conseguirmos fazer isso, quem ganha são os policiais brasileiros e, sobretudo, ganha a sociedade, que terá a garantia do direito à segurança como um direito de todos.

[1] Membro de Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública;
[2] Professor Titular do Departamento de Sociologia da UFMG.
[3] Professor do Departamento de Sociologia da UFPE.
[4] Ex-Secretário Nacional de Segurança Pública.
[5] Professor da Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUC/RS.

sábado, 2 de novembro de 2013

Sonho, psicose, morte: o senso da realidade e suas ameaças marginais


Gabriel Peters (IESP/UERJ)

O escudo nosso de cada dia contra a psicose nos dai hoje

Ao caracterizarem o mundo prático da vida cotidiana em que o indivíduo passa a parte mais substancial de seu tempo e coexiste com a maioria de seus semelhantes como a “realidade suprema” (Paramount Reality), os sociólogos de inspiração fenomenológica quiseram ressaltar que essa esfera de experiência constitui o referencial primeiro com base no qual o mesmo indivíduo distingue entre o que é mais e o que é menos real (Schutz, 1967: 231; Giddens, 2002: 45). A existência objetiva desse mundo partilhado com outros não é, na maior parte dos casos, reclamada conscientemente, mas simplesmente pressuposta como absolutamente evidente. Como viu Wittgenstein (1969: 18), não se trata de um mundo cuja existência sustentamos por termos sido convencidos de sua realidade, mas de um mundo cuja existência, tida como dada, nos fornece o parâmetro mesmo com base no qual decidimos entre o que é verdadeiro e o que é falso.  
A experiência da realidade suprema do mundo da vida cotidiana é pontilhada, entretanto, por incursões a domínios fronteiriços à vivência prática do universo social ordinário, isto é, a outras esferas vivenciais para as quais o sujeito emigra momentaneamente e que adquirem a atmosfera de realidade apenas enquanto dura a permanência do indivíduo nelas: uma trama romanesca na qual a leitora se perde, esquecendo quaisquer preocupações relativas ao mundo real do seu trabalho ou das suas relações familiares; um sonho intensamente vivenciado e apenas revelado como tal após o despertar (possivelmente com algum sinal de que o corpo do sonhador respondeu à experiência onírica como responderia a uma experiência real); um cálculo complexo que leva um matemático apaixonado pelo seu ofício a esquecer-se de si e do mundo. 
            Embora todas essas experiências marquem um escape momentâneo aos contornos da realidade suprema devido à entrada em outros mundos experienciais, as vivências nesses “subuniversos” (na expressão de William James) obviamente diferem entre si em uma série de aspectos. Há, por exemplo, um continuum de graus distintos de emigração em relação à realidade suprema da vida cotidiana que vai desde o escape total próprio ao sonho, passa pela imersão consciente no mundo fantasioso de uma peça teatral, até chegar às pequenas irrupções do cômico na experiência ordinária (como bem mostrou Cynthia Hamlin).            
Segundo Peter Berger (1972: 164-165; 2003: 35-36), o caráter de “escudo” ou “casulo” existencial protetor que a ordem social adquire para o animal humano pode ser mais agudamente vislumbrado nas situações de significativa perturbação da distinção entre a experiência na realidade suprema e as vivências alternativas em relação a essa realidade. Por exemplo, filósofos céticos de todas as eras já sublinharam que, no mais das vezes, não experimentamos nossos sonhos como tais, mas sim com o mesmo assentimento ingênuo que conferimos às nossas experiências na “verdadeira realidade”. É somente com o despertar que podemos retrospectivamente compreender o sonho recém-vivenciado como uma fantasia privada. A pergunta que os céticos extraem dessa transição, largamente explorada em filmes de ficção científica como A origem, é: se fomos capazes de adquirir consciência de que estávamos imersos em uma fantasia onírica apenas a posteriori, o que nos garante que não continuamos sonhando agora, nesse exato momento?
Há uma diferença crucial entre acalentar tais dúvidas céticas em um plano estritamente intelectual e vivê-las efetivamente na nossa experiência do mundo (Giddens, 2002: 41). Esta pode ser a diferença mesma que separa o filósofo cético do psicótico. Trazendo os instrumentos da inteligência fenomenológica para o âmbito de investigação das doenças mentais, mas sem romantizar indevidamente a condição esquizofrênica, o jovem Ronald Laing (1974) reconheceu que certas formas de esquizofrenia tinham uma espécie de componente filosófico vivido, com a “insegurança ontológica” de determinados pacientes derivando justamente do fato de que levavam visceralmente a sério, em sua existência cotidiana e trato com os outros, algumas dúvidas céticas que os filósofos se acostumaram a colocar tranquilamente em seus gabinetes: em que medida a existência dos objetos materiais e de outras pessoas depende da representação que faço deles em minha mente? Como posso estar seguro de conhecer os conteúdos das mentes de outros indivíduos? Que garantia tenho da existência do meu próprio corpo?
O enfraquecimento ou perda “cética” dos referenciais cognitivos que conferiam o mínimo indispensável de segurança e estabilidade psíquica ao caminho prático e experiencial do indivíduo pelo mundo engendram uma terrível sensação de que se está lançado em um palco de ameaças iminentes, porém difusas e incompreensíveis. Espero não soar como psicanalista de boteco se sublinhar que o pânico adulto advindo de uma extrema desorientação cognitiva em face de um cenário a que se está inescapavelmente exposto não é assim tão diferente, em seus contornos fenomenológicos, do medo da escuridão entre as crianças (ver mais abaixo).
            Com efeito, um achado estatístico frequente na literatura sobre a esquizofrenia aponta que é o estado ansioso de dúvida radical quanto à confiabilidade última das impressões que o sujeito têm de si, dos outros e do mundo (o “Trema” psicótico) que acaba empurrando o indivíduo na direção de projetos delirantes de conquista da certeza. Assim, por exemplo, as ilusões persecutórias que caracterizam um retrato paranoico que o indivíduo faz de sua posição no mundo social, apesar de todos os seus custos psíquicos, não deixa de ser uma espécie de resposta à incerteza cheia de pânico quanto aos pensamentos e sentimentos que correm nas mentes de outras pessoas:

80% das esquizofrenias começam com os sintomas negativos. Delírio e alucinação chamam mais a atenção. Já os sintomas negativos ocorrem mais no íntimo das pessoas e causam menos impacto nos outros. É o caso do indivíduo que, certo dia, não vai trabalhar, não avisa ninguém e passa o dia todo deitado, tomando café e fumando. (...) Geralmente, esses sintomas marcam o começo da doença, a fase chamada trema psicótico, marcada por tensão e ansiedade muito grande. A pessoa sente que algo está acontecendo, mas não sabe dizer o que é...Em determinado momento, porém, ele fala – “Estou sem forças, porque estão tramando algo contra mim e colocaram veneno na minha comida”.  Essa explicação delirante é suficiente para diminuir o nível de tensão e ansiedade. É como se a pessoa tivesse uma dor de causa desconhecida e, de repente, chegasse a um diagnóstico que, de algum modo, a tranquilizasse” (Gattaz/Varela, 2013)

            A contraparte da definição freudiana do sonho como “psicose normal”, dotada de “todos os absurdos, delírios e ilusões de uma psicose” (Freud, 1975: 199), consiste, nesse sentido, em uma fenomenologia da psicose como intrusão das províncias privadas do sonho e da imaginação no próprio domínio experiencial público da vida cotidiana. Quanto mais coesas são as representações do real compartilhadas em tal ou qual cenário sócio-histórico, mais essa intrusão socialmente inapropriada de significados e representações privadas não será coletivamente percebida como experiência desviante guiada por uma “visão alternativa do mundo”, mas como simples perda de contato com a realidade em si – ou seja, psicose.

A criança a sós com a noite

O anseio existencial humano por experimentar seus ambientes de ação e experiência como confiáveis e seguros manifesta-se desde a mais tenra infância na relação com as figuras parentais. As interações com os agentes primários de socialização dão início ao cultivo de um “sistema de segurança básica” (Giddens, 2003: 66), um senso de que a realidade dos objetos, das pessoas e de si próprio está solidamente fundada. Combinando as investigações de Piaget acerca da descoberta infantil da “constância dos objetos” àquelas de Erikson sobre o florescimento da crença de que as ausências das figuras parentais são provisórias e não impedirão o seu retorno, James Morley (2003) mostrou que ambos são partes de um processo global e difuso, inseparavelmente cognitivo e emocional, de aquisição de confiança na facticidade e continuidade, organização e previsibilidade, inteligibilidade e acessibilidade do mundo.
Piaget investigou circunstanciadamente o estágio de desenvolvimento cognitivo em que a criança, lá por volta da compleição do primeiro semestre de vida, dá todos os indícios comportamentais de crer que os objetos materiais que a circundam continuam a existir quando retirados do seu campo de atenção. Complementarmente, Erikson e Winnicott postularam que um dos principais desafios na caminhada desenvolvimental do bebê é a aquisição da crença de que suas figuras parentais continuam a subsistir quando estão ausentes e, portanto, da expectativa afetivamente carregada de que elas retornarão à sua esfera de experiência (Giddens, 2002: 42). O laço cognitivo e emocional com a mãe e/ou o pai (como papéis sociais – não necessariamente os pais biológicos, não necessariamente um casal heterossexual etc.) é gradativamente tecido em experiências intensas e com instrumentos comunicativos pré-verbais como o sorriso e o choro.
            A maleabilidade cognitiva que possibilitará à criança o aprendizado de um imenso conjunto de possibilidades de orientação intelectual e prática nas suas relações com o mundo cobra seu preço existencial sob a forma de uma experiência (gradualmente mitigada, porém durável) de extremada desorientação, complementada por sua extraordinária vulnerabilidade física e emocional. É por isso que Peter Berger vê no gesto da mãe que consola e apazigua o choro aterrorizado de seu bebê uma espécie de cena originária dos esforços humanos de construção social e simbólica de ordem:

Uma criancinha acorda dentro da noite, talvez de um mau sonho, e se acha cercada pela escuridão, sozinha, assaltada por ameaças indescritíveis. Em tal momento, os contornos da realidade em que confiava estão obscurecidos ou invisíveis, e no terror do caos que começa, a criança grita por sua mãe. Dificilmente se exageraria em dizer que, neste momento, a mãe está sendo invocada como suma sacerdotisa da ordem protetora. É ela (e em muitos casos somente ela) que tem o poder de banir o caos e restaurar a forma benigna do mundo. E, é claro, qualquer boa mãe fará exatamente isto. Ela pegará a criança, a embalará no gesto atemporal da Magna Mater que se tornou nossa Madonna. Talvez ela acenda a luz que circundará o cenário com um brilho quente de luz tranqüilizadora. Ela falará e cantará para o filhinho e o conteúdo desta comunicação será invariavelmente o mesmo – “não fique com medo – tudo está em ordem – tudo está certo”. Se tudo correr bem, a criança se tranquilizará, readquirirá confiança na realidade e nesta confiança voltará a adormecer” (Berger, 1973: 76-77)
             
            Considerando o caráter difuso e global do terror da criança diante das ameaças que a realidade parece lhe impor, as quais são sentidas de modo ao mesmo tempo confuso e extraordinariamente intenso, Berger sustenta que a oferta de conforto, proteção e segurança que a mãe oferece em resposta ao seu choro angustiado é sentida pelo bebê de modo igualmente difuso e global: “‘Tudo está em ordem, tudo está certo’ – está é a fórmula básica da confiança da mãe e do pai. (...)A fórmula poderia...ser traduzida numa afirmação de alcance cósmico: - ‘Tenha confiança no ser’” (op.cit.: 78). Os retornos contínuos das figuras parentais protetoras instilam e reforçam essa confiança na ordem e inteligibilidade do real, bem como na disposição afetuosa dos principais personagens na existência social da criança, disposições sem as quais o desenrolar mesmo da formação da personalidade seria impedido ou severamente prejudicado.
            Mas Berger, como bom sociólogo doublé de teólogo, vai além: a concepção da realidade implicada no gesto protetor e carinhoso da mãe é válida? Segundo ele, tal concepção só não será ilusória ou mentirosa caso a existência natural revelada por nossa visão de mundo racional e científica não seja a única existência que existe (se me permitem a repetitividade heideggeriana da formulação). Caso contrário, a criança estará absolutamente certa em achar que a realidade irá destruí-la, não importa o quanto chore e esperneie:

Se a realidade for coextensiva à realidade ‘natural’ que nossa razão empírica pode apreender, então a experiência é uma ilusão e o papel que a corporifica é uma mentira. Pois então é perfeitamente claro que tudo não está em ordem, não está certo. O mundo no qual se diz para a criança confiar é o mesmo mundo no qual ela eventualmente morrerá. Se não houver outro mundo, então a verdade última sobre este mundo é que eventualmente ele matará a criança bem como sua mãe. Isto, seguramente, não diminuiria a presença real do amor e seu consolo muito real; daria mesmo a este amor uma qualidade de trágico heroísmo. Todavia, a verdade final não seria amor, mas terror, não luz, mas trevas. O pesadelo do caos, não a segurança transitória da ordem, seria a realidade final da situação humana. Pois, no fim, todos temos de nos achar nas trevas, sozinhos com a noite que nos tragará. A face do amor confiante, dobrando-se sobre nosso terror, será então nada mais que uma imagem da ilusão misericordiosa. Neste caso, a última palavra sobre a religião é a palavra de Freud. A religião é a fantasia infantil de que nossos pais governam o universo para nosso bem...” (Berger, 1973: 78-79).      

O argumento de Berger acerca do caráter ilusório ou “mentiroso” das crenças implicadas nos atos protetores de mães e pais diante dos terrores infantis obviamente não se identifica à denúncia moral, mas possui caráter metafísico. O autor, naturalmente, também não teve qualquer intenção de discutir “o direito dos ateus de serem pais” (idem), ainda que tenha julgado interessante sublinhar a existência de ateus que, em face de considerações similares, julgaram que ter filhos – ou “transmitir a uma criatura o legado da nossa miséria” (Machado de Assis) - seria imoral. Pais ateus poderiam replicar, de qualquer modo, que a concepção da realidade implicada no seu gesto carinhoso é menos abrangente do ponto de vista metafísico, pressupondo apenas um “Tudo está bem agora”, o qual permitirá que a criança avance na direção de uma fase adulta em que possa aceitar sua própria morte com uma dose maior de equanimidade de algum tipo: heroísmo trágico, resignação estóica, imortalidade vicária ou ocupação em tarefas que a distraiam do seu destino último.
Seja como for, o que é certo é que tanto o fervoroso fiel empenhado em garantir a salvação de sua alma pelo bom comportamento neste mundo quanto o escritor ateu devotado à produção de uma obra literária que influencie gerações futuras de leitores buscarão integrar suas mortes individualíssimas em um retrato mais abrangente de uma existência partilhada com outros. Cada um luta por fazer com que o sentido de sua morte não seja, pura e simplesmente, a morte do sentido. Dessa forma, eles justificam seus esforços e ocupações em termos socialmente inteligíveis e, ademais, podem antecipar a própria aniquilação física com o mínimo possível de terror. (Vale dizer, no entanto, que a expectativa de alcançar a imortalidade pela glória não é suficiente para alguns artistas ateus, a julgar pela cândida confissão de Woody Allen: “Não quero alcançar a imortalidade pela minha obra. Quero alcançá-la não morrendo”). 
     
Ocupar-se antes de morrer

 Como Pierre Bourdieu (Bourdieu, 2001; Peters, 2012) e Alfred Schutz (1967), Berger se faz herdeiro sociológico de uma tese anteriormente sustentada por filósofos como Pascal e Heidegger, qual seja, a ideia de que o mergulho nos “jogos” (Bourdieu) e na “tagarelice” (Heidegger) da vida social cotidiana nos desvia ou “diverte” (Pascal) da contemplação aberta e aterrorizada de nossa mortalidade:

Nada é mais insuportável ao homem do que ficar em absoluto repouso, sem paixões, sem negócios, sem divertimento, sem aplicação. Sente então sua inanidade, seu abandono, sua insuficiência, sua dependência, sua impotência, seu vazio. (...)...[a] infelicidade natural de nossa condição débil e mortal...[é] tão miserável que nada nos pode consolar quando refletimos a fundo sobre ela. (...)...os homens que sentem naturalmente a sua condição evitam acima de tudo o repouso e procuram por todos os meios os motivos de preocupação” (Pascal, 2003: 94-95; 97).  

Vê-se que Heidegger e Sartre não foram os primeiros a explorar certos estados de humor como fontes de insights sobre o “ser-no-mundo” humano. Depois de Pascal, tanto Schopenhauer quanto Nietzsche também emprestariam ao tédio uma espécie de dignidade filosófica ao concebê-lo como desagradável intuição da vacuidade de nossa condição. E o psicanalista Sándor Ferenczi se inscreveu nessa linhagem intelectual ao cunhar sua categoria diagnóstica de “neurose de domingo”, em referência ao dia da semana em que os sentimentos de vazio e depressão tornavam-se mais intensos entre os seus pacientes – e olha que ainda nem existia o Domingão do Faustão para exacerbar o problema.  
Mas nos centremos no que Pascal disse sobre a mortalidade. Todos os investimentos de tempo, energia, recursos e competências que caracterizam o movimento da vida social em seus mais diversos cenários ou “jogos” só fazem sentido contra o pano de fundo da transitoriedade da existência, da “pressão da finitude” (como disse Viktor Frankl). Schutz reconheceu esse ponto quando fez remontar os mais variados sistemas socioculturais de “relevância”, isto é, as questões e assuntos que propelem nossas práticas porque importam para nós, a uma intuição última que chamou de “ansiedade fundamental”, o senso simultaneamente perturbador e motivador de que nosso tempo no mundo é escasso, de que é melhor ocupar-se, pois o tic-tac da morte está tocando (Schutz, 1967: 228).
O pensamento filosófico ocidental sempre foi enamorado do ensinamento socrático-platônico de que a filosofia é um aprendizado preparatório para a morte, ensinamento eloquentemente apresentado no Fédon (2003). É sintomático que esta visão segundo a qual “filosofar é aprender a morrer” (Montaigne) tenha brotado da pena do mesmo autor que tanto insistiu na diferença entre o rigor da episteme filosófica e os preconceitos irrefletidos da opinião (doxa) corrente (Platão, 2003: 28). As estruturas que envolvem a existência social cotidiana parecem estar radicadas na premissa de que refletir sobre o morrer só valeria a pena se impedisse de morrer - o que, de certa forma, as reflexões que desembocam em crenças quanto à própria imortalidade buscam fazer ao seu modo, pois é o próprio Sócrates quem diz: “sem a convicção de que vou me encontrar primeiramente junto de outros deuses, sábios e bons, e depois de homens mortos que valem mais do que os daqui, eu cometeria um grande erro não me irritando com a morte” (op.cit.: 25). 
Ora, do ponto de vista da opinião corrente (que não deixa de ser filosoficamente sagaz à sua maneira), a obsessão com a própria morte, embora não impeça de morrer, pode muito bem “impedir” de viver – ao menos de viver tal como o concebe a doxa cotidiana, isto é, de ocupar-se com projetos, tarefas, trabalhos, obrigações, funções, missões e assim por diante. Ao criar uma ordem de atividade significativa que interpela os atores a dela participarem com os seus investimentos de tempo, energia e habilidades, o mundo social não apenas oferece a tais atores um senso de que sua existência é justificada (Bourdieu, 1988: 56-58) como neutraliza, pelo menos parcialmente, a consciência da aniquilação que inevitavelmente o espera.
As rotinas da vida societária fornecem um abrigo mundano aos agentes ao enraizá-los em um mundo de sentidos e respostas já estabelecidos, protegendo tais indivíduos do confronto direto e solitário com a Angst metafísica, em particular no que toca à sua condição inescapável (e inescapavelmente solitária) de “ser-para-a-morte” (Heidegger) ou “cadáver adiado” (Pessoa). Por vezes, é claro, a situação-limite entre as situações-limite irrompe sem aviso prévio na vida social cotidiana, revelando a falibilidade ou, mais ainda, a precariedade ontológica última de todas aquelas estruturas que o mundo social havia provido para garantir alguma segurança, tranquilidade e previsibilidade aos seus membros. Um acidente ou doença mata uma pessoa conhecida e, de repente, o sujeito é como que chacoalhado pela lembrança daquilo que supostamente já sabia em algum nível de (semi)consciência: o que aconteceu com o outro pode acontecer com ele a qualquer momento e vai certamente ocorrer a ele em algum momento. Se tudo correr bem, no entanto, após algum tempo de meditatio mortis depressiva ou aterrorizada, os assuntos da vida cotidiana lhe emprestarão a sanidade de volta: 

Suponhamos um homem que desperte de noite, de um desses pesadelos em que se perde todo senso de identidade e localização. (...) A pessoa jaz na cama numa espécie de paralisia metafísica...Durante alguns momentos de consciência dolorosamente clara, pode quase sentir o cheiro da lenta aproximação da morte e, com ela, do nada. E então estende a mão para pegar um cigarro e...‘volta à realidade’. A pessoa se lembra de seu nome, endereço e ocupação, bem como dos planos para o dia seguinte. Caminha pela casa, cheia de provas do passado e da presente identidade. Escuta os ruídos da cidade. Talvez desperte a mulher e as crianças, reconfortando-se com seus irritados protestos. Logo acha graça da tolice...e volta a dormir resolvido a sonhar com a próxima promoção (...) As paredes da sociedade são uma autêntica aldeia Potemkin levantada diante do abismo do ser; têm a função de proteger-nos do terror, de organizar para nós um cosmo de significado dentro do qual nossa vida tenha sentido” (Berger, 1972:164-165).  

Peter Berger: apologia pro sociologia sua

            Poucas figuras na teoria social do século XX produziram reflexões sociológicas tão sensíveis a questões existenciais, tão tensionadas por preocupações últimas com o sentido da vida e da morte, quanto Peter Berger. Isto é tanto mais impressionante considerando-se que não se trata de um existencialista mórbido (embora suas citações sugiram que sofre de terror noturno), mas de um dos prosadores mais leves e espirituosos de nossa venerabilíssima disciplina. Por isso, quis fazer com que esse texto soasse também como uma “apologia pro sociologia sua”, para tomar de empréstimo a expressão de Gilberto Freyre (que, de modo honesto e nada atípico, utilizou-a em referência à sociologia de Gilberto Freyre [1968: 23]).
           De qualquer modo, paro por aqui, pois toda essa conversa sobre a morte começou a ficar deprimente, e acho que a novela começa daqui a pouco. Pascal tinha toda a razão.       
    
Referências

Berger, Peter. Perspectivas sociológicas. Petrópolis, Vozes, 1972.
________Um rumor de anjos. Petrópolis, Vozes, 1973.
________O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo, Paulus, 2003.
BERGER, Peter & LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Petrópolis, Vozes, 1985.
Bourdieu, Pierre. Lições da aula. São Paulo, Ática, 1988.
________Meditações pascalianas. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2001a.
Frankl, Viktor. Man’s search for meaning. Boston, Beacon Press, 1992.
Freud, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XXIII (1937-1939): Moisés e o monoteísmo, Esboço de psicanálise e outros trabalhos. Rio de Janeiro, Imago, 1975.
Freyre, Gilberto. Como e por que sou e não sociólogo. Brasília, Universidade de Brasília, 1968.
Gattaz,Wagner; Varella, Drauzio. “Esquizofrenia”.   http://drauziovarella.com.br/letras/e/esquizofrenia/
Giddens, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002.
________A constituição da sociedade. São Paulo, Martins Fontes, 2003.
Laing, Ronald. The divided self: an existential study in sanity and madness. Harmondsworth, Penguin, 1974. 
Morley, James. “The texture of the real: Merleau-Ponty on imagination and psychopathology”. In: Philips, James; Morley, James (Org.). Imagination and its pathologies. Cambridge, MIT Press, 2003.
Pascal, Blaise. Pensamentos. São Paulo, Martin Claret, 2003.
Peters, Gabriel. (2012). “O social entre o céu e o inferno: a antropologia filosófica de Pierre Bourdieu”. Tempo Social, 24, 1, 229-261. Link: http://www.fflch.usp.br/sociologia/temposocial/site/images/stories/edicoes/v241/v24n1a12.pdf
Platão. Fédon: diálogo sobre a alma e a morte de Sócrates. São Paulo, Martin Claret, 2003. 
Schutz, Alfred. Collected papers I: the problem of social reality. The Hague, Martinus Nijhoff, 1967.
______Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro, Zahar Editora, 1979.

Wittgenstein, Ludwig. On certainty. Oxford, Basil Blackwell, 1969.