quarta-feira, 28 de maio de 2014

terça-feira, 20 de maio de 2014

Um apêndice artesanal: notas sobre a nova volta de Charles Wright Mills


                           
Mills, o easy rider da sociologia norteamericana. A partir de foto de Pete Seeger.
                                           

Tâmara de Oliveira – UFS/DCS/PIBID (CAPES)


Outro dia estava eu caminhando com uma ex-aluna e atual supervisora do PIBID/UFS - Ciências Sociais, quando lhe disse que estava pensando em inaugurar oficialmente as atividades do novo projeto com uma leitura e discussão coletiva dos dois ensaios mais célebres de Charles Wright Mills publicados em A imaginação sociológica. Sua reação imediata pareceu entusiástica: «Que ótimo! » Mas continuando a falar, minha colega do PIBID largou uma frase que me deixou reflexiva : «Wright Mills vai e volta, vai e volta..»

No tempo em que eu fazia graduação em Campina Grande, Wright Mills tinha ido há tempos. Curso predominantemente levado pelo que chamávamos de «marxistas ocidentais», ali Mills não tinha lugar. Não por se tratar de um adversário teórico-metodológico propriamente dito (mesmo porque C. W. Mills se inseria, como os tais marxistas ocidentais que líamos, numa sociologia crítica e utilizava inclusive conceitos como o de racionalização e o de alienação), mas por ser estranho às referências seletivas – esmagadoramente européias – dos professores mais ativos que nos formavam. O livro era encontrado nas livrarias da época, cheguei a comprá-lo e folheá-lo, mas nunca foi tema de disciplina, conferência, colóquio ou mesmo mesa de bar na graduação. 

Já no mestrado, meu orientador argentino recomendou-me A imaginação sociológica pois, como meu tema era a concepção do individualismo na sociologia de Durkheim e ele havia sido formado com referências norte-americanas como R. Nisbet (1966) e W. Mills ([1959] 2006), considerava (e vi que tinha razão) que esses autores seriam importantes para que eu situasse a obra de Durkheim no que terminei chamando de «reação sociológica» à representação hegemônica do homem no pensamento do século XIX, ou seja, na crítica da sociologia clássica ao individualismo moderno (Dumont, 1985; Béjar, 1990). Depois disso deixei partir Wright Mills mais uma vez – esse sociológo instigante e intrigante, amante de motores alemães e da arte da manutenção das motocicletas (Castro, 2009). E que morreu apenas três anos depois de ter provocado um escarcéu no campo acadêmico sociológico de seu país, com sua tradução sarcástica do que critivava como socspeak (jargão sociológico) da suprema teoria do célebre Talcott Parsons, e, com uma crítica por vezes banhada em fel contra o que chamava ironicamente de «empiricidade liberal» ou método-pelo-método daquele que fôra seu mestre no iníco de carreira, o não menos célebre Paul Larzarsfeld – quem o trouxe para o laboratório de pesquisas que coordenava (Castro, 2009).

Mas ele voltou, o motoqueiro voltou novamente. Na verdade já tinha voltado para mim desde que li o primeiro capítulo daquele ótimo livro de introdução à sociologia que tem Cynthia Hamlim como um do autores (Brym et al, 2009) e pude ver como a noção de imaginação sociológica permite apresentar nossa disciplina com pertinência, criatividade e concretude. Posteriormente, aproximando-me lentamente do universo da volta da sociologia ao ensino básico, conhecendo as Orientações Curriculares Nacionais e sua defesa do papel de estranhamento e desnaturaliação dos fenômenos sociais no ensino básico da sociologia, fui elaborando um novo projeto PIBID em torno daquela noção de Wright Mills.

Foi quando o último congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) teve como tema «A sociologia com artesanato intelectual», objeto do último ensaio de Mills em A imaginação sociológica, aí publicado como apêndice e que pode ser considerado como núcleo da consagração da contribuição «peculiar e não-conformista» de W. Mills para a formação dos estudantes de Ciências Sociais (Martins, 2013). Embora não tenha ido ao congresso da SBS, quis perceber a escolha do tema como um sinal do «espírito do tempo», considerando que não é por acaso a seguinte coincidência temporal: a publicação no Brasil, em 2009, tanto de uma coletânea de textos de Mills intitulada Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios quanto da obra de outro sociólogo norte-americano, Richard Sennet, nomeada O Artífice. Teríamos entrado numa dinâmica de crítica sociológica aos padrões produtivistas e quantitativistas da pesquisa e do ensino? Confesso que me senti pessoalmente confortável, finalmente insight ao utilizar Wright Mills como guia do novo projeto PIBID. 

Todavia, fazendo há pouco uma busca informal por textos ou comentadores recentes sobre o artesanato intelectual, encontrei uma referência da professora da Escola de Administração da UFBA, Tânia Fischer (APAD – debates e documentos, 2010), em que a recente mas já famosa e polêmica reflexão de Richard Sennet (2009) em torno da habilidade artesanal é apresentada como uma retomada do conceito de artesanato intelectual de Wright Mills (2006). Achei, talvez também apressadamente, que Fischer faz uma identificação demasiado apressada entre esses autores. No mínimo porque, até onde li, as referências de Sennet ao trabalho de Mills são secundárias – seu quadro teórico, empírico, analítico, dialógico-crítico e prescritivo vêm de outras cepas. E, de fato, os pontos de vista de um e do outro autor sobre trabalho artesanal, são, de certa forma, opostos. 

A contribuição de Mills (2006; 2009) parte do trabalho intelectual nas ciências sociais e à sua potencial pertinência para construir um conhecimento que articule problemas pessoais às estruturas sociais, ou seja, Mills propõe a imaginação sociológica como uma espécie de jardim artesanal no meio de florestas de estruturas sociais nas quais o «modelo de habilidade atesanal...tornou-se um anacronismo» (Mills, apud Sennet, 2009, p.135). Melhor dizendo, nos ensaios de Mills o artesanato intelectual implica numa dissociação entre trabalho intelectual das ciências sociais (potencialmente crítico) e trabalho não-intelectual (estruturalmente racionalizado e alienante), onde uma imaginação sociológica aparece como centro irradiador de um novo denominador comum da vida intelectual em geral pois, tendo em sua tradição um conhecimento articulador das dificuldades pessoais às estruturas sociais, pode interferir criticamente sobre o conhecimento racionalizado, instrumental e alienante dos indivíduos ordinários submetidos às estruturas alienantes do trabalho em geral:

Atualmente, o sociólogo tem uma tarefa urgente a cumprir; ela é ao mesmo tempo política e intelectual (porque, no caso, as duas coincidem) e consiste em isolar claramente o que provoca a inquietude e a indiferença no mundo contemporâneo. Todos os trabalhadores da cultura esperam isso dele – os físicos, os artistas e, de maneira geral, toda a comunidade intelectual. É essa tarefa e essa espera que fazem das ciências sociais o denominador comum de nossa era cultural e que tornam a imaginação sociológica tão necessária.  (Mills, 2006, pp. 15-16).

A imaginação sociológica está prestes a se tornar o denominador comum de nossa vida cultural e seu traço distintivo. Esse espírito se desenvolve em sociologia e em psicologia, mas ultrapassa largamente uma e outra no estado atual de sua evolução. Sua aquisição é lenta e dolorosa de se adquirir – para os indivíduos e a comunidade; são numerosos os sociólogos que ignoram sua existência. Eles parecem desconhecer que apenas com essa imaginação eles poderão dar o melhor de si mesmos; que, deixando-a no abandono, eles estão traíndo as expectativas que a cultura exige deles e que as tradições clássicas de suas disciplinas lhe permitiriam realizar. (Ibid.: pp. 16-17). 

Já o ponto de vista de Sennet põe em questão o suposto anacronismo da habilidade artesanal, construindo seu conceito através da comparação entre formas antigas, medievais, modernas e contemporâneas daquela habilidade. Ou seja, na reflexão de Sennet não se trata de uma imaginação sociológica artesanal cujas aplicações culturais seriam cruciais para o enfrentamento da racionalização e a alienação das estruturas sociais, mas da própria perenidade da habilidade artesanal em diversas formas de trabalho ao longo do tempo e do espaço – que deve ser analisada em suas potencialidades e dificuldades de enfrentamento das consequências centrais de uma arquitetura institucional do trabalho que ele chamou em obra anterior (Sennet, 2006) de burocracia MP3. Neste caso, a defesa do artesanato não seria uma prerrogativa do mundo intelectual, mas uma argumentação que, fundamentando-se explicitamente no pragmatismo filosófico, define e sustenta a habilidade artesanal como expressão da indissociabilidade potencial entre trabalho intelectual (homo faber) e trabalho não intelectual (animal laborens):

A expressão «habilidade artesanal» pode dar a entender um estilo de vida que desapareceu com o advento da sociedade industrial – o que, no entanto, é enganoso. Habilidade artesanal designa um impulso humano básico e permanente, o desejo de um trabalho benfeito por si mesmo. Abrange um espectro muito mais amplo que o trabalho derivado de habilidades manuais; diz respeito ao programa de computador, ao médico e ao artista; os cuidados paternos podem melhorar quando são praticados como uma atividade bem capacitada, assim como a cidadania. Em todos esses terrenos, a habilidade artesanal está centrada em padrões objetivos, na coisa em si mesma. As condições sociais e econômicas, contudo, muitas vezes se interpõem no caminho da disciplina e no empenho do artesão. (Sennet, 2009, p. 19).
A civilização ocidental caracteriza-se por uma arraigada dificuldade de estabelecer ligações entre a cabeça e a mão, de reconhecer e estimular o impulso artesanal. (Ibid.: p. 20) 
São tão grandes as mudanças necessárias para modificar a maneira como a humanidade lida com o mundo físico que só essa sensação de deslocamento e de estranhamento pode impulsionar efetivas práticas de mudança e reduzir nossos desejos de consumo; em minha opinião, o sonho de viver em equilíbrio e em paz com o mundo pode levar-nos a tentar nos refugiar numa Natureza idealizada, em vez de encarar o território autodestrutivo que construímos. (Ibid.: p. 24) 
A cultura material, em suma, traça um quadro do que os seres humanos são capazes de fazer. Essa visão aparentemente ilimitada vem a ser tolhida pelos impulsos autodestrutivos, sejam involuntários, intencionais ou acidentais. Refugiar-se nos valores espirituais dificilmente representaria grande ajuda no trato com Pandora. A natureza pode ser uma guia melhor, se entendermos nosso labor como parte do seu ser. (Ibid.: p. 26)


Essa diferença de pontos de vista não significa que as visões de Wright Mills e R. Sennet sobre o artesanato intelectual não sejam articuláveis: ambos escreveram articulando dimensão cognitiva e dimensão prescritiva do conhecimento nas ciências sociais, como intelectuais «mannheimianos»; ambos tinham como pano-de-fundo de suas crítivas propositivas a pregnânica de padrões burocráticos e de consumo na experiência social cotidiana e em suas consequências problemáticas e destrutivas; ambos, principalmente, buscaram reabilitar sociologicamente um sentido artesanal do trabalho intelectual. 

Mas fiquei cabreira com a aproximação ao meu ver apressada e vaga entre esses autores (que, aliás, situam-se em contextos temporais muito diferentes), pensando se as crescentes invocações do artesanato intelectual no meio acadêmico não estariam se transformando rapidamente em crítica convencional do mundo do trabalho em geral e científico-social em particular, em uma espécie de upgrade da tradição crítica da sociologia «para inglês ver», consumível tanto em pequenos colóquios interdisciplinares quanto em mega-congressos, mas inofensiva quanto ao «patrão nosso de cada dia, dia após dia» - mergulhados que muitos estamos na sensação de que «a grande esperança das ciências sociais» em se transformar no denominador intelectual comum de que falava Mills pareceu realizar-se pouco depois de sua morte (anos 1960/1970), para depois morrer mais do que ele no bojo das transformações societais que não pararam de acelerar desde os anos 1980. 

A propósito, essa tal de «grande esperança» não trairia um traço que, também sendo clássico na sociologia, é entretanto pretensioso e anacrônico? Falo da pretensão em se apresentar e se legitimar como ciência social totalizadora e, mais do que isso, como denominador intelectual comum de uma época histórica. Embora Wright Mills manifestasse pouquíssimas afinidades com Auguste Comte, confesso que quando leio certas passagens do primeiro ensaio de A imaginação sociológica minha cabeça desenha a imagem de um Comte delirante, ou de um comedido Durkheim, pretendendo que a sociologia fosse a ciência das ciências, a responsável maior pela redenção dos problemas sociais, econômicos e culturais do homem moderno...

Além disso, há de se constatar que o contexto temporal dos ensaios de Mills implica em certos anacronismos, recaindo sobretudo, ao meu ver, sobre A grande esperança das ciências sociais, por conta de sua dimensão mais socialmente prescritiva (ou política, como em seu tempo se preferia dizer). Ou seja, esse ensaio é mais enviesado por certas questões sociais e acadêmico-científicas (Mills, 2006) que não são as mesmas de hoje em dia: guerra fria; domínio, nos EUA, de correntes sociológicas que não têm mais a hegemonia que tinham no final dos anos 1950, etc. Enfim, nunca se deve esquecer que A grande esperança das ciências sociais foi escrito antes dos longuíssimos anos 1960 e todas as mudanças que eles construíram e ainda constróem na sociedade e nas ciências, sociais ou não.

Por outro lado, seria uma impostura reduzir a volta de Wright Mills a uma moda acadêmica, a um sentido publicitário da tradição crítica da sociologia. Como nas ciências sociais em geral, há muita inquietude ou indiferença diante de problemas importantes de nosso tempo e de nosso ofício (ou profissão?): a perda crescente da autonomia do campo intelectual e a correlata institucionalização estrita das ciências sociais, o que, segundo Mª Arminda do Nascimento Arruda, gera grandes dificuldades de enquadramento das ciências sociais por critérios de avaliação provenientes de outras áreas (de fragmentação, empiria, imediatismo e prisão a detalhes do conhecimento), modela a natureza do discurso, circunscreve-o a certos nichos e impede que o intelectual exerça a função de formular um projeto de sociedade, diante de um processo de mudança e de rediscussão do mundo que deixa perplexos os cientistas sociais (Arruda, 2006, pp. 367 e 371) ; uma massificação precipitada do ensino superior e uma ampliação complexa e confusa do mercado de trabalho que faz sociólogos experientes como Heraldo Souto Maior se/nos perguntar se não estamos dando demasiada ênfase à formação acadêmica e devêssemos nos ocupar mais em ensinar para o exercício da nova realidade profissional (Souto Maior, 2013, p. 66). E, de fato, assistimos a um aquecimento da abertura de mestrados profissionais, nos perguntando se eles poderão romper com os critérios de avaliação que tanto têm nos inquietado e/ou nos arrastado. 

Neste sentido, há alguns meses atrás ouvi de uma colega que «a sociologia perdeu sua pertinência». Fiquei chocada! Principalmente por me ter ouvido concordar imediatamente e ainda por cima rindo! Logo depois isso me deu uma tristeza quase infinita que pretendo combater. 

E com isso volto ao apêndice de A imaginação sociológica, ao ensaio dedicado à sociologia como artesanato intelectual. É um texto que oferece caminhos concretos para a formação do aprendiz sociólogo. E Mills faz isso descrevendo detalhadamente os passos que deu na construção de seu trabalho sobre as elites e o poder nos EUA. Trata-se de trabalho no qual se vê e se sente empiricamente os traços da definição e da defesa ponderada de Sennet da habilidade artesanal. Talvez a professora Fischer da EA/UFBA quizesse dizer isso: o apêndice de Wright Mills é um testamento do trabalho artesanal em sociologia, seguindo as características conceitualmente isoladas por Sennet (2009). Trabalho imaginado/realizado para ser transmitido, para ensinar como e porque fazer. Deve ser por isso que o texto fica reverberando no leitor à medida que o tempo passa, como que iluminando práticas e movimentos entre pensar/fazer que interiorizamos e muitas vezes não nos damos conta. O apêndice de Wright Mills motiva.

Penso que a volta de Mills já se justifica por essa reverberação de seu apelo motivante ao ensino de um fazer sociológico existencialmente engajado: um fazer que articula vida e trabalho, cuja motivação é a satisfação de fazer bem feito e que, tendo em vista que seu trabalho é com o social, não pode prescindir de posições e proposições reflexivas sobre o estado do mundo humano. Sendo assim, não é verdade que concordo que a sociologia perdeu pertinência social. A perplexidade com que observamos as mudanças e a rediscussão do mundo pede, realmente, uma volta a Wright Mills e à sua inquietação concreta e prescritiva sobre o fazer ciências sociais. Ou seja, a sociologia, o meio de vida dos sociólogos, como Souto Maior (2013) costuma provocar seus alunos de graduação, é também um meio de trabalho e de olhar reflexivo sobre o mundo social.

No mais, eu deveria agora começar a descrever como a A imaginação sociológica entra concretamente em nosso projeto de atuação nas escolas conveniadas ao PIBID/UFS-Ciências Sociais. Mas fica para outra vez: agora, minha imaginação está esgotada, que ninguém é de ferro! 

REFERÊNCIAS

ARRUDA, Mª Arminda N. Maria Arminda do Nascimento Arruda. In: Bastos/Abrucio/LOureiro/Rego (orgs.). Conversas com Sociólogos Brasileiros. São Paulo: Editora 34, 2006. Pp. 353-374.
BÉJAR, H. El ámbito íntimo. Privacidad, individualismo y modernidad. Madrid: Alianza Editorial, S. A., 1990.
BRYM, R. et al. Sociologia. Sua bússola para um novo mundo. São Paulo: Cengage Learning, 2009. 
CASTRO, C. Introdução. MILLS, W. C. Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. Pp. 7-19.
DUMONT. L. O individualismo. Uma perspectiva antropológica da modernidade. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1985.
MARTINS, J. S. O artesanato intelectual na sociologia. In: Revista Brasileira de Sociologia-RBS, v. 1, nº 02: jul. dez. 2013. Pp. 13-48. 
MILLS, C. W. L'imagination sociologique. Paris: La Découverte/Poche, 2006.
NISBET. R. La formation del pensamiento sociológico. Buenos aires, Amorrutu Editores, 1966.
SENNET, R. O artífice. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2013.
SOUTO MAIOR, H. O ofício de sociólogo. In: Revista Brasileira de Sociologia-RBS, v. 1, nº 02: jul. dez. 2013. Pp. 49-68