terça-feira, 3 de junho de 2014

O que é isso que vejo? Reflexões a partir de uma poesia moderna


"Fiero Monstruo". Francisco de Goya 

Por Rodrigo Vieira de Assis (IESP-UERJ) *

O BICHO 
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
(Manuel Bandeira)
O poema do poeta pernambucano Manuel Bandeira, escrito na cidade do Rio de Janeiro às vésperas do natal do ano de 1947, nos sensibiliza em relação à condição humana em sociedade, para a qual, em nossa época especialmente, noções como desigualdade e diferença parecem intrínsecas à própria condição de existência no cerne da convivência em uma coletividade. O forte sentido político contido nas palavras que compõem o escrito do autor recifense, a nosso ver, ganha relevância, sobretudo, pela configuração situacional da cena apresentada poeticamente, em que dois indivíduos socialmente distintos se deparam com suas próprias diferenças, potencializadas, para a percepção, pelo fato do evento ocorrer no período natalino, culturalmente definido como um momento em que sentimentos de solidariedade, esperança, fé, fartura e de expectativa de melhores condições material e espiritual de vida se apresentam de modo significativo no cenário da vida social.

A relevância sociológica de “O bicho” se apresenta ao nos pôr diante da diferença entre dois seres humanos por meio da percepção e da apreciação da desigualdade socialmente produzida com a qual frequentemente nos defrontamos na vida cotidiana. Ao mesmo tempo, ao situar essa relação de diferença, nos permite perceber também um ponto de igualdade entre eles, mesmo situados em distintas posições sociais. Este nível de igualdade nos leva a refletir acerca das aparências que a nossos olhos se mostram como essências definidoras da qualidade do “objeto” percebido. Vejamos isso melhor.

Por um lado, percebemos que a cena é significada pela ação discursiva de um ator situado em uma posição específica no cerne e em relação à própria situação evidenciada, na qual outro indivíduo é observado em um ambiente vulnerável e marcadamente miserável. Por outro lado, a pessoa que “engolia com voracidade”, sem verificar a qualidade de seu alimento devido à fome que sente, não se dá conta de que se tornou, para os olhos de outrem, um ser passível de observação e descrição para além da sua própria existência individual.

O olhar sobre este último toca sensivelmente o observador, uma vez que aquele a quem se observa representa, posto em relação com a vida social, a materialização das diferenças e da hierarquização entre os próprios seres humanos: desigualdades estruturais que se (re)produzem de modo perverso via naturalização da injusta distribuição dos recursos materiais e simbólicos. Nesse sentido, concordamos com Walzer (2003, p. 01), quando, de modo geral – mesmo que pouco preciso –, diz que “a sociedade humana é uma comunidade distributiva. (...) Pode-se dizer que o que tenho é certo ou errado, justo ou injusto; mas, face à extensão das distribuições e ao número de participantes, esses juízos nunca são fáceis”. Acrescentamos a essa citação que a dificuldade que torna ininteligível à percepção imediata e ao senso prático perceber os fenômenos que subjazem às experiências das quais emergem as distintas formas de diferenças entre os homens implica na naturalização das próprias diferenças, vistas, muitas vezes, como princípios de uma razão que atribui às capacidades individuais o mérito ou o descrédito da sua condição social total, isso quer dizer, tornando um problema de ordem social (a desigualdade, por exemplo) como um problema de responsabilidade própria do indivíduo que nela se encontra situado.

No terceiro manuscrito econômico-filosófico de 1844, Marx (2003, p. 135), tratando da questão da natureza humana, nos diz que “a antítese entre a falta de mercadoria e a propriedade é ainda uma antítese diferente, que não se imagina na sua referência ativa com sua relação interna, que ainda não se compreende como incoerência, enquanto não se entender como a antítese entre o trabalho e o capital”. Antítese que, uma vez ofuscada, paulatinamente aliena o próprio ser humano e seu trabalho, isso quer dizer, aliena o indivíduo em seu aspecto ativo e em seu valor como ser humano sensível. Em última instância, consequentemente, o dinheiro, como sabemos, passa a ser a “verdadeira necessidade criada pelo moderno sistema econômico” e é, dessa forma, “a única necessidade que ele produz” (MARX, 2003, p. 149).

Na poesia que nos anima, o ator individual na situação de miserabilidade age em prol da sua própria sobrevivência, sem levar em conta e sem se ater às regras e aos costumes que regem a alimentação à mesa, pois sua necessidade não se produz por estilo, mas pela própria necessidade de se alcançar o necessário para não perecer. A condição em que se encontra é tal que sua vida social pode ser confundida ou percebida como próxima da vida de uma espécie animal não-humana, tal como um cão de rua. O objetivo do “bicho-homem”, que não possui nada além do seu próprio corpo, é tão somente um: matar a fome antes que ela o devore. O observador, por sua vez, consciente da miséria do observado, não se sente, por não ser “miserável”, superior àquele homem, mas o nota, o percebe, o enxerga como um ser humano igual a si mesmo, mas vítima das condições sociais que os circundam, que permite a alguns uma vida humana digna e a outros a supressão da própria dignidade humana potencializada pela constante busca pelo necessário. Assim, “para o homem que morre sob a fome, não existe a forma humana do alimento, mas só o seu caráter abstrato como alimento; poderia igualmente existir na sua forma mais crua e é impossível dizer em que medida esta atividade alimentar se diferenciaria da atividade alimentar animal” (MARX, 2003, p. 144). Com Marx (1977, p. 209) ainda vamos mais além e percebemos que “a fome é a fome, mas a fome que se satisfaz com carne cozinhada, comida com faca e garfo, não é a mesma fome que come a carne crua, servindo-se das mãos, das unhas, dos dentes”.

Há entre os dois indivíduos presentes na cena diferenças socialmente produzidas que se repercutem nas ordens objetiva e subjetiva das suas existências, que atuam nos modos pelos quais cada um percebe a si mesmo e aos outros. Eles veem a sociedade a partir de um ponto de vista, constituído sob os condicionamentos que os produziram, e por meio das situações e experiências vivenciadas em sua história biográfica, isso quer dizer, a maneira pela qual percebem o mundo social se produz na relação constante entre as ordens sincrônica e diacrônica da sua vivência particular em sociedade. Contudo, para objetivar a dimensão humana dos seres que são assim qualificados é preciso perceber as especificidades dos sentidos, ou melhor, “humanizar os sentidos e criar a sensibilidade humana correspondente a toda riqueza do ser humano e natural” (MARX, 2003, p. 144).

No caso poético com o qual refletimos, há nitidamente um ponto em comum entre os dois atores presentes na cena, que independe das suas especificidades socialmente produzidas, que é posto em evidência pelo modo que o observador vê e interpreta o outro sem julgá-lo por si mesmo, mas realizando uma crítica política sobre a desigualdade e as injustiças sociais: com efeito, ambos são seres humanos, vivem numa mesma sociedade e fazem parte de uma mesma espécie animal, qualificada, sobremaneira, por suas capacidades facultativas de pensar, sentir, perceber e reconhecer (de modo prático e apreciativo) o mundo que os circundam, que os produziram enquanto indivíduos.

Contudo, como pensar a percepção do outro para além da imediaticidade do olhar, compreendendo o social como fundamento do humano e como ordem produtora das aparências que distinguem os indivíduos entre si? Essa é uma indagação complexa e todas as respostas possíveis podem ser questionadas e acusadas como arguições insuficientes para o nível da questão. Todavia, tal reflexão se apresenta a nós, independente de nossas identificações teóricas, como uma questão de ordem filosófica, mas, a nosso ver, não se limita à filosofia, mesmo que nela se situem as principais fontes necessárias para precisar a questão sobre o humano. Como nos disse MacIntyre (2004, p. 343), “qualquer tentativa contemporânea de considerar cada vida humana como um todo, como uma unidade, cujo caráter proporciona às virtudes um telos adequado, se depara com duas espécies de obstáculo, um social e um filosófico”. Pensar a dimensão humana implica, a priori, em considerações fundadas na filosofia, mas também em reflexões sociológicas acerca dos modos pelos quais o mundo social é apreendido e vivido pelos indivíduos que são produzidos pela ordem social que herdam e produzem.

Aristóteles, na sua Política, já afirmara que o homem – não em gênero, mas em sentido de ser humano – é, por natureza, um animal social, axioma clássico apropriado por Marx na famosa introdução à crítica da economia política, retrabalhando-a, porém, via pressupostos do materialismo histórico, concebendo o homem igualmente como um animal político (zoon politikon), que tem na dialética intrínseca às relações sociais os fundamentos da sua própria consolidação e determinação à vida societária. A humanidade de um indivíduo, assim, pode ser pensada como fruto do cultivo entre o si mesmo e a sociedade (RICOUER, 1992), no processo interativo entre os próprios atores individuais permeados pelas heranças moral, sociopolítica e cultural produzidas em momentos precedentes – que são atualizadas constantemente pela própria vivência em sociedade. Como bem nos disse Hannah Arendt (2012), o indivíduo não está no mundo, ele é do mundo, uma vez que ele e o mundo partilham afinidades e traços característicos que se identificam mutuamente em sua própria pluralidade.

De maneira sintética, consideramos, a partir da reflexão sobre a poesia de Manuel Bandeira e da literatura sociofilosófica, que uma propriedade fundamental do ser humano se expressa na determinação do seu modo de vida, que se constitui com e entre outros homens dotados da capacidade de reconhecimento e identificação mútua por aspectos subjetivos e objetivos, isso quer dizer, por partilharem uma ordem moral e social comum que os condiciona para uma vida de relacionamento e interação (seja associativo ou conflitivo). “O homem produz o homem e se produz a si mesmo e aos outros homens; como o objeto, que constitui a atividade direta da sua personalidade, é ao mesmo tempo a sua existência para os outros homens e a sua existência para si” (MARX, 2003, p. 139). Em outras palavras, defendemos que a condição da vida em sociedade é o crivo pelo qual a dimensão humana do indivíduo se fundamenta, na medida em que é com e entre os outros que se apreende a si mesmo como semelhante e dotado de qualidades que não se reduzem unicamente às aparências, mas que compartilha de uma determinada maneira de existir: nessa lógica a dimensão humana é também um produto coletivo, mesmo que se expresse individualmente em cada ser, pois requer, para se fundamentar, das dimensões compartilhadas e herdadas de uma sociedade de indivíduos humanos.

Desse modo, o social produz o ser humano que produz o social, pois é nessa ordem de mão dupla que podemos perceber os fenômenos segundo os quais os próprios atores adquirem as capacidades de reconhecer, sentir, pensar que os diferenciam das outras espécies animais no modo pelo qual essas capacidades se expressam. Além disso, o sentir, o identificar e o reconhecer pressupõem uma vinculação com algo que escapa às vontades individuais, por serem socialmente condicionadas, que pode ser posta em concretude pelas noções de moral e cultura (em sentido antropológico) que operam conjuntamente na produção do significado da própria vida em sociedade, influindo nos sentidos da percepção e do pensamento que permite ao homem a sua própria compreensão.

Na Metafísica (livro I), Aristóteles (1973, p. 211) nos diz que “todos os homens tem, por natureza, desejo de conhecer” e que “uma prova viva disso é o prazer das sensações, pois, fora até da sua utilidade, elas nos agradam por si mesmas”. E continua: “por natureza, seguramente, os animais são dotados de sensação, mas, nuns, da sensação não se gera memória, e noutros, gera-se. Por isso, estes são mais inteligentes e mais aptos para aprender do que os que são incapazes de recordar”.

A memória pressupõe a vivência de situações e experiências que sejam, em algum momento, recordadas, na medida em que nelas os indivíduos apreendem elementos que a eles surgem e se apresentam enquanto relevantes a serem percebidos. A memória social expressa dessa forma uma abstração sobre momentos significativos vivenciados pelo ser dotado da faculdade de abstração que o permite reviver simbolicamente as sensações passadas. Nesse sentido, em vista da qualidade e do tipo de conhecimento que os seres humanos estão aptos a adquirir e explorar pressupomos que os indivíduos, independentemente do nível dos seus capitais, possuem a faculdade de pensar e apreciar o mundo que habitam (GADAMER, 1999). Nesse sentido, o indivíduo é percebido como unidade reflexiva por usa própria condição. Do pensar é possível derivar uma série de elementos próprios à qualidade humana do homem (ARENDT, 2012), uma vez que o pensamento está diretamente relacionado à produção do significado que, como tal, produz sentido e permite o compartilhamento das propriedades mesmas que definem a vida em sociedade e as atitudes em relação ao mundo.

A descoberta de Kant (2002) no que tange o “escândalo da razão”, isso quer dizer, de que o espírito não possui os meios para um conhecimento verossímil em relação às questões sobre a quais o próprio espírito não se impede de pensar, parece poder ser encaminhada para uma mínima saída quando deixamos o terreno transcendental no qual a noção de razão, nessa tradição, esta situada. Sabemos que, como bem nos ensinou a hermenêutica e a fenomenologia, a interpretação da vida humana é uma propriedade, como dissemos, que todos os homens possuem independentemente da sua própria vontade, que os faz, desde logo, ser um ser-no-mundo que percebe o seu próprio mundo como ser pensável. É desse modo que o observador na poesia que abriu nossa proposição reflete sobre as condições de existência do ator observado. Ele pensa e argumenta sobre o que vê, pois sente, em seu interior, o estranhamento ao confundir a vida de um indivíduo humano com as práticas instintivas das espécies animais não-humanas. O autor interpreta e nos põe diante da cena pelo seu trabalho criativo de composição, emitindo a nós, leitores, o sentimento de identificação e angústia ao pensar na condição do outro ser que vive naquela condição.

Podemos, desse modo, ainda nos perguntar: a vida social é aquilo que vemos? Para a percepção imediata tudo se passa como se o que captamos pelo olhar em nosso cotidiano fosse, em si mesmo, o mundo social em sua essência e totalidade. Mas o mundo se constitui por uma variedade significativa de elementos que, em seu conjunto, antes mesmo de todas as suas variações, possuem uma única propriedade em comum: são próprios para serem percebidos, pois aparecem para nós, isso quer dizer, podem ser visualizados, tocados, ouvidos, cheirados e sentidos (ARENDT, 2012). Não há nada mais familiar a nós mesmos – e nós, sociólogos, temos a certeza disso quando, em nosso ofício, trabalhos para perceber os elementos aos quais nos debruçamos para além das concepções socialmente construídas e compartilhadas pelo senso comum – do que a vida entre as coisas que vemos e sentimos, pelas quais transitamos e que nos transitam, uma vez que somos parte do mundo social desde que nascemos até a finitude de nossa existência individual.

Maurice Merleau-Ponty (2009, p. 17) nos invoca a pensar melhor questões dessa natureza, quando nos diz que: “pois se é certo que vejo minha mesa, que minha visão termina nela, que ela fixa e detém meu olhar com sua densidade insuperável, como também é certo que eu, sentado diante de minha mesa, ao pensar na ponte da Concórdia, não mais estou em meus pensamentos, mas na ponte da Concórdia; e que, finalmente, no horizonte de todas essas visões ou quase-visões está o próprio mundo que habito, o mundo natural e o mundo histórico, com todos os vestígios humanos de que é feito – é certo também que esta certeza é combatida, desde que atento para ela, porquanto se trata de uma visão minha”.

Essa minha visão particular, se entendida tão somente como uma propriedade individualizada tende a ofuscar a produção social dessa visão, pois ela é, para além da qualidade da abstração imaginativa, uma experiência constituída e condicionada socialmente pelas experiências vividas no social. Percebemos o mundo tal qual ele se apresenta aos nossos olhos, mas, como nos disse Pierre Bourdieu (2008), o olho também é um produto da história.


* Este texto é uma versão reduzida de um artigo que será publicado no próximo número dos Cadernos do Sociofilo, especificamente no número Sociologia e Filosofia II. No processo de adaptação para o “Cazzo” subtraímos algumas passagens, em especial sobre as questões filosóficas do humano. Contudo, a versão aqui publicada conserva a essência e o norte da reflexão desenvolvida na versão mais extensa. A publicação completa poderá ser acessada em breve por meio do seguinte link: http://sociofilo.iesp.uerj.br/

Referências

ARENDT, Hannah. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Abril Cultural, 1973a, p. 205-235. (Coleção Os pensadores).
BOURDIEU, Pierre. A distinção: critica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2008.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I - Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edição 70, 2002.
MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude. Bauru: Edusc, 2004.
MARX, Karl. Contribuição a critica da economia política. São Paulo: Martins Fontes, 1977.
__________. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Editora Martin Claret, 2003.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2009.
RICOEUR, Paul. Oneself as another. Chicago: The University of Chicago Press, 1992.
WALZER, Michael. Esferas da justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2003.