segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Aceleração tecnológica, consumismo e sofrimento


 Jonatas Ferreira
 Há alguns anos não pesquisava, nem discutia temas relacionados aos desenvolvimentos da nanotecnologia no Brasil e no mundo. O convite simpático de Wilson Engelmann, a partir de uma sugestão de Paulo Martins, creio, para participar deste XI Seminário Internacional Nanotecnologia, Sociedade e Meio Ambiente foi uma oportunidade de revisitar um tema que me é caro, como o é a nanotecnologia na contemporaneidade, relacionando-o à aceleração tecnológica e ao sofrimento que dela decorre. Participar deste Seminário, portanto, é uma forma de me reapropriar um pouco deste tema importante que mobiliza a todos aqui, aprendendo com as contribuições daqueles que a ele lhe devotaram uma atenção mais fiel que a minha. É também uma oportunidade de rever amigos. Agradeço, por tudo isso, a Wilson Engelmann e aos organizadores deste evento.
Deixem-me começar falando brevemente sobre o tema da aceleração. Diversos autores, com interesses variados que vão da sociologia, à antropologia, filosofia e teoria da técnica têm elegido a aceleração como um dos fenômenos modernos mais significativos na contemporaneidade. Hermínio Martins, por exemplo, tem falado recorrentemente de uma “aceleração da aceleração” - impulsionada pelas tecnologias da informação e pelas nanotecnologias - e dos tristes e inóspitos cenários em que uma adaptação pós-humana se tornaria cada vez mais inevitável. Paul Virilio nos remete a um contexto dromológico no qual já não podemos contar com sujeitos reflexivos capazes de se orientar racionalmente no mundo, um contexto no qual o projeto iluminista de controle sobre a vida humana e a realidade natural de modo amplo se torna impensável. Os aparatos tecnológicos nos fragmentam e recompõem sem que possamos imprimir um mínimo de identidade naquilo que fazemos. Jonathan Crary nos relata as implicações de um assalto ao sono, de um capitalismo que se programa para operar 24 horas por dia, 7 dias por semana. “Um ambiente 24/7 apresenta a aparência de um mundo social quando na verdade ele se reduz a um modelo associal de performance maquínica – uma suspensão da vida que mascara o custo humano de sua eficácia. Não se trata mais disso que Lukács e outros autores identificaram, no começo do século XX, como o tempo vazio e homogêneo da modernidade, tempo métrico ou calendário das nações, das finanças ou da indústria, de onde estavam excluídos tanto as esperanças quantos os projetos individuais. O que há de novo é o abandono a relento da própria ideia de que o tempo possa ser associado a um engajamento qualquer em projetos de longo prazo, incluindo aí fantasmas de ‘progresso’ ou de ‘desenvolvimento’ (Crary, p. 19). O instantâneo cada vez mais parece ser o nosso horizonte temporal, segundo podemos depreender das análise de Crary. O filósofo Peter Sloterdijk, por seu turno, fala-nos acerca dos aspectos niilistas de uma mobilização infinita dos seres que é promovida pelas tecnologias da velocidade. “Eis aí o que nos proporciona a fórmula dos processos de modernização: o progresso é movimento em direção ao movimento, movimento em direção a mais movimento, movimento em direção a uma maior aptidão para o movimento” (La mobilisation infini, p. 35). Nesta mobilização sem sentido de todas as coisas pelo imperativo da velocidade, nós somos capturados. Hartmut Rosa, de uma perspectiva mais sociológica, oferece uma análise interessante das tensões e intensidades entre diferentes âmbitos da aceleração, nomeadamente, no campo tecnológico, social e individual. “Experimentar a vida em todos os seus altos e baixos e em sua inteira complexidade se torna a aspiração central do homem moderno. As opções oferecidas sempre ultrapassam. Mas, ao fim e ao cabo, o mundo sempre parece ter mais a oferecer do que pode ser experienciado em uma vida individual”. E algumas linhas adiante, ele arremata: “A aceleração serve como estratégia para apagar a diferença entre o tempo do mundo e o tempo de nossa vida. A promessa eudemonista da aceleração moderna então parece ser um equivalente funcional das ideias religiosas da eternidade ou vida eterna, e a aceleração do ritmo da vida representa a resposta moderna ao problema da finitude e da morte” (Rosa, 2009, p. 91). Buscamos a intensidade do presente, sua aceleração e múltiplas possibilidades, como há alguns séculos se buscava um futuro, uma vida além da morte, que nos redimisse de nossa perecibilidade.
Esses autores e suas ideias me ajudarão ao longo dessa exposição. Mas gostaria de principiar minha fala me reportando ao livro de Bernard Stiegler, Para uma nova crítica da Economia Política, um livro não diretamente relacionado ao tema aqui em foco, mas que certamente pode contribuir para lançar algumas luzes sobre este contexto amplo que nos interessa, ou seja, a aceleração da produção científica e tecnológica no plano nanométrico. O objetivo filosófico inicial de Stiegler nesta pequena é reclamar para a filosofia o campo da economia política para dali, não atualizar uma crítica marxista ao capitalismo contemporâneo, mas proceder a deconstrução - aqui no sentido que Derrida outorga a esse termo - de algumas das ideias fundamentais do velho pensador alemão. Mediante esse recurso, ele pretende analisar o papel fundamental que o consumo tem para entendermos a dinâmica acelerada do capitalismo contemporâneo.
A sociedade do consumo, ou mais propriamente, o consumismo contemporâneo é uma forma de lidar com as crises crescentes do capitalismo que resultam de uma tendência a diminuição da taxa de lucratividade, já observada por Marx no século XIX. Esta saída - que depende obviamente de uma aceleração no tempo de consumo das mercadorias, na perecibilidade de tudo o que nos cerca - no entanto, constitui uma falsa solução para o problema. Como já observava David Harvey, em A Condição Pós-Moderna, a aceleração proporcionada pelas tecnologias da informação, pela crescente financeirização das relações econômicas, pelo surgimento de modos flexíveis de gestão, constituiriam o conjunto de remédios encontrados pelo capitalismo para gerir crises que este produz inevitavelmente. A inovação sem tréguas e a obsolescência perpétua e programada de bens e serviços - às quais o impulso inovador está associado – apresentam uma afinidade eletiva clara com a propensão crescente ao consumo que conhecemos tão bem e a ação conjunta dessas forças salvaria o capitalismo de sua tendência à crescente diminuição das margens de lucro a que a própria concorrência levaria. Nestes cenários desoladores empregos, lucratividade, crescimento econômico não podem ser sustentados a longo prazo e para o conjunto da economia global. Ao produzir a perecibilidade, e portanto a aceleração do giro dos capitais, a inovação e aceleração da vida constituem uma resposta técnica para o problema político e social mais amplo que diz respeito à sustentabilidade, em sentido amplo, do capitalismo e do mundo em que vivemos.
Para Stiegler, as catástrofes ambientais que se anunciam e se realizam seriam, por exemplo, evidência da insustentabilidade de tal modelo. O desenvolvimentismo sem preocupações ambientais e sociais que conhecemos é uma evidência disto – pensemos na alternativa privada encontrada para o problema da mobilidade urbana que adotamos, para ficarmos num exemplo menos controvertido. Poderíamos falar também das soluções energéticas encontradas para promover nosso crescimento econômico, mas fiquemos por aqui. O consumismo, pois, é a lógica da devastação, do extenuação dos recursos e do próprio ser humano, mas sem ele o capitalismo parece incapaz de mitigar sua crise contemporânea. “´A política de investimento’, que não tem outro objetivo além da reconstituição do modelo consumista, é a tradução de uma ideologia moribunda, tentando desesperadamente prolongar a vida do modelo que se tornou autodestrutivo, negando e ocultando por tanto tempo quanto possível o fato de que o modelo consumista é agora massivamente tóxico" (Stiegler, p.5). O consumismo é necessariamente baseado no curto prazo, no descartável, na especulação, na aceleração da aceleração, tanto da produção como do uso dos bens e serviços, e esta última é intrinsecamente “tóxica”, para voltarmos ao termo usado por Stiegler, tanto para o ser humano quanto para o seu ambiente. Os desastres ambientais, o aumento de doenças relacionadas ao stress da vida contemporânea não são efeitos colaterais da aceleração tecnológica - desajustes que poderiam ser contornados mediante a racionalização dos cálculos de risco -, mas sua própria essência. O consumismo é uma expressão consumada do niilismo ocidental.
Para Stiegler, um elemento fundamental de todo modo tecnológico é constituir uma forma de “gramatização”, isto é, grosso modo, de automatização, formatação e reprodutibilidade da vida social. Sem ela não há propriamente formas sociais previsíveis a partir das quais nós possamos nos relacionar, evidentemente, mas sempre podemos, e é este o caso agora, perguntar a que tipo de gramática submetemo-nos quando aceitamos sem mais este modelo da aceleração e do consumo desenfreado, quais são seus pressupostos. Toda “gramática social” diz-nos sempre o que é importante que retenhamos na memória - que gestos, movimentos e atitudes devemos tomar, em quais circunstâncias - e segundo que tipo de prioridade e acessibilidade devemos preservar um evento do esquecimento. O poder sempre se estabelece como gramática, como memória acessível de algum tipo de comportamento esperado e esquecimento daquilo que compromete sua lógica de reprodução. Um dos pressupostos das tecnologias de aceleração contemporâneas (isto é, da aceleração da aceleração) é, todavia, o fato de promover o esquecimento, isto é, elas promovem o esquecimento do que já sabemos das coisas (o nosso saber-fazer, nosso know-how) e da forma como aprendemos a viver (nosso savoir-vivre). Para conseguir esses objetivos, as tecnologias de aceleração que lastreiam a sociedade do consumo se baseiam em um tipo específico de gramatização, nomeadamente, a de nossos desejos.
O velho Marcuse já nos dizia algo parecido em vários de seus livros, em O Homem Unidimensional, por exemplo. No contexto em que vivemos, é preciso não apenas formatar os nossos desejos em direção ao consumo de produtos disponíveis, mas estimular o próprio impulso de desejar. É preciso que desejemos desejar, pois essa é a regra segundo a qual nos tornamos funcionais num mundo acelerado, da instantaneidade. Nossa energia libidinal, portanto, deve ser domada ou, para usarmos o novo sentido que Stiegler dá a esse termo, proletarizada pelos aparatos de produção e consumo capitalistas. A aceleração tecnológica só é concebível nestes termos. Ouçamos Stiegler: “Marx não pôde, entretanto, antecipar o papel da exploração e funcionalização de uma nova energia, que não é a energia do proletário produtor (o labor como pura energia laboral), nem a energia motriz de um novo aparato (tal como óleo ou eletricidade, que são colocados a serviço da indústria do aço e das indústrias da cultura), mas antes a energia do consumidor proletarizado – quer dizer, a energia libidinal do consumidor” (p. 25). Nosso modo de vida é, portanto, vertiginosamente desejante e, por isso mesmo, ansioso, incapaz de gozar a partir das competências cognitivas, estéticas, práticas que conquistamos ao longo do tempo, fundamentalmente destruidor de todo saber viver que eventualmente essas competências ajudam a constituir. Poderíamos neste ponto recordar do livro de Richard Sennett acerca do que ele denomina “corrosão do caráter”, ou seja, como as relações profissionais, humanas são minadas diuturnamente num contexto de aceleração tecnológica e da flexibilização ampla (das relações laborais e entre os seres humanos) que lhe é imprescindível.
Se aceitamos a argumentação de Bernard Stiegler, parece evidente que as nanociências e nanotecnologias desempenham hoje um papel importante na constituição desta gramática da destruição programada, da mobilização e aceleração constantes dos ‘fatores produtivos’, da energia libidinal que predispõem ao consumismo e seus efeitos tóxicos. Esta aceleração pode ser traduzida em números que não podem deixar de ser considerados pelos gestores de ciência, tecnologia e inovação. Entre as poucas informações que oferece sobre nanociências e nanotecnologias, o site do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação traz as seguintes: ““Dados recentes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e empresas de consultoria indicam que o mercado de produtos nanotecnológicos movimenta cerca de US$ 350 bilhões e, em 2020, estima-se que esse valor será superior a US$ 3 trilhões”[1]. Em termos mais concretos e atuais, a nanotecnologia já aparece em um número considerável de produtos comercializados em todo o mundo, que vão de protetores solares, a componentes de computadores ou implementos agrícolas.
“Ao menos 1.600 produtos para o consumo entraram o mercado apenas nos últimos, e isso é apenas uma fragmento dos produtos e processo já em uso e em desenvolvimento – todos medidos em unidades 90.000 vezes menores que a largura de um cabelo humano. Por volta de 2020, seis milhões de pessoas ao redor do mundo podem trabalhar com nanomateriais, revolucionando o tratamento da saúde, tecnologia da informação, sistemas de energia e outros campos. As corporações agora contribuem com metade dos fundos para pesquisa em fronteiras nano, alcançando os governos, liderados pelos Estados Unidos (com U$ 21 bilhões investidos desde 2001) e 60 outros países, mais proeminentemente a Alemanha, França, Japão, Coreia e China) (Nanotechnology and the S&P 500: Small Sizes, Big Questions, By Susan L. Williams)
Que não existam marcos de regulação da produção e comercialização destes produtos a partir de pesquisas robustas de impacto ambiental e de saúde significa apenas isto: o investimento maciço em inovação realizado pelas companhias precisa ser traduzida em lucros que realimentem as condições de competitividade e reinvestimento . O tempo aqui, por tudo o que dissemos, é uma questão vital. Em outras palavras, assim como a indústria de armas não pode subsistir sem produzir guerras e uso cotidiano de armas de fogo, os US$ 21 bilhões investidos pelo governo estadunidense, somados aos outros tantos bilhões que foram investidos por empresas daquele país, de 2001 a 2013, precisam se traduzir em produtos que gerem receitas capazes ao menos de recuperar aqueles aportes. Para as companhias, a diferença entre o curtíssimo e o curto prazo pode significar prejuízos consideráveis, donde a pressão pela aceleração. Por isso mesmo: “Uma crítica recente feita pelo National Research Council (NRC) concluiu que ‘esforços de investigação ambiental, de saúde e segurança não etão conseguindo acompanhar as aplicações de nanotecnologia, em seu crescimento e desenvolvimento, e os potenciais efeitos destes materiais sobre os humanos e ecossistemas não são ainda completamente entendidos” (Ibid, p. 26). Não repisarei o óbvio para vocês: as propriedades da matéria em nanoescala e sua interação com o mundo que conhecemos estão longe de serem compreendidas satisfatoriamente. Acrescentarei apenas que a desmaterialização a realidade, o fato de que nossas intervenções tecnológicas ganhem o nível molecular em áreas como a física, química e biologia guarda uma afinidade clara com a aceleração sobre as quais falamos. A lógica parece ser: se a matéria resiste, podemos desmaterializá-la e reconfigurá-la de acordo com as necessidades cinéticas de nosso modo de vida.
Aqui, evidentemente, não se trata de fazer uma análise das nanociências e nanotecnolgias in abstracto, mas no contexto dos compromissos político e econômicos que a pesquisa científica nessa área não pode deixar de estabelecer com essas forças mais amplas. Qualquer cientista que se dedique a uma pesquisa pela produção de novos materiais, a partir de sua manipulação em escala manométrica, terá necessariamente que se confrontar com essa realidade. Há alguns anos, quando entrevistei investigadores brasileiros da Rede Nacional de Nanobiotecnologia, o depoimento de uma cientista mineira me chamou a atenção precisamente por evidenciar as pressões dromológicas com as quais a pesquisa em nanotecnologia convive. Ora, existe em toda pesquisa que objetiva desenvolver novos fármacos uma restrição com a qual os laboratórios têm de conviver, se essa pesquisa se destina a promover a saúde humana. Todos sabemos que neste campo a inovação é particularmente demorada. Mesmo quando um fármaco teoricamente mostrou sua eficácia, ainda é necessário um período considerável com testes com seres humanos para dimensionar seus possíveis efeitos colaterais. Parte do grupo que se dedica a nanobiotecnologia em Minas Gerais havia decidido dedicar suas atividades de pesquisa à promoção da saúde animal precisamente porque ali o processo poderia ser acelerado sem as restrições éticas que encontramos quando tratamos de testes de medicamentos em seres humanos. Segundo a mesma cientista, a decisão de pesquisar cosméticos também teria esse como um fator importante: controles biológicos de segurança mais brandos no campo dos cosméticos, se o comparamos aos medicamentos, naquele momento, hoje já não saberia dizer, distintamente da produção de medicamentos para seres humanos, significavam uma aceleração do processo inovador.
Nos dois casos, obviamente outros fatores estavam em jogo: dedicar-se a um nicho de mercado onde teríamos condições de competição privilegiadas, por exemplo. Nos dois casos, havia na época em que realizei as entrevistas uma discussão acalorada sobre o controle do percurso de nanopartículas na natureza e organismo humano, quer esse percurso principie no organismo de um animal, ou na pele de alguém que comprou um protetor solar com componentes nanoestruturados. O fato é que os desafios para a ciência realizada em países em desenvolvimento, como o Brasil, no que concerne à velocidade são ainda mais radicais e contraditórios. A lógica é a seguinte: se não quisermos pagar por uma tecnologia que vai ser mesmo hegemônica, precisamos acelerar mais que os países desenvolvidos e, no processo, abandonando alguns cuidados que retardam o desenvolvimento. As discussões sobre a produção e energia no Brasil aqui se colocam numa lugar político e econômico particularmente tenso. O fato é que, se pensarmos no que havia de conhecimento acumulado no campo das nanociências no Brasil há vinte anos e hoje, é impossível não perceber a velocidade com que a pesquisa nessa área se tem desenvolvido no Brasil, em especial nas áreas de química, farmácia e medicina e física.
“O último levantamento da PINTEC, feito em 2008, reporta que existiam 608 empresas envolvidas com nanotecnologia. No entanto, não diferenciou aquelas que apenas incorporaram a tecnologia daquelas que fizeram P,D&I. Levantamento conduzido pela CGNT mostra que aproximadamente 130 empresas desenvolvem P&D em nanotecnologia. Foram contabilizadas as empresas contempladas nas Chamadas Públicas à Subvenção Econômica de 2006 a 2010, RHAE – Pesquisador na Empresa de 2007 a 2009 e ICT–Empresas de 2006 e 2009”. (http://nano.mct.gov.br/a-nanotecnologia-no-brasil/)
Se considerarmos as empresas que receberam ou recebem algum tipo de benefício econômico em nanotecnologia, ainda parece expressivo o impulso que setores como fármacos, saúde e odontologia recebeu: 27% dos investimentos nas 130 empresas que desenvolvem pesquisa e desenvolvimento em nanotecnologia tiveram esses destinos. No âmbito do turbocapitalismo, a aceleração tecnológica, em cujo âmbito as nanociências e nanotecnologias desempenham um papel destacado, entretanto, age na contramão dos interesses pela saúde humana ou animal. As estatísticas de aumento de doenças psíquicas, como depressão, síndrome de burnout, diversas formas de ansiedade, dão bem uma ideia das demandas a que somos submetidos pelos intensificação dos ritmos sob a égide do consumo. Para esse novo quadro, evidentemente, o capitalismo tem também a sua solução, e ele significa medicalização. Pais sem tempo para dedicar aos seus filhos tendem a medicá-los, como comprovam as estatísticas de consumo de Ritalina nos Estados Unidos da América e na Alemanha. Entre cientistas, músicos, entre os nossos estudantes, também parece haver uma tendência crescente ao uso de antidepressivos e ansiolíticos como forma de lidar com as pressões crescentes a que somos submetidos. Os números de consumo desses produtos no Brasil, quando são divulgados, são preocupantes. Esses produtos permitem que continuemos em nosso ritmo vertiginoso sem nos perguntarmos acerca do sentido de acelerar tanto, sem nos indagarmos acerca dos pressupostos da gramática mais geral a que somos submetidos.
Ao cientista, todavia, não deve ser dada a concessão da ingenuidade do não exercício da crítica. Falar sobre inovação tecnológica, e especificamente sobre nanotecnologias, cujas perspectivas são tão revolucionárias, hoje significa nos indagarmos sobre os compromissos mais amplos dentro dos quais exercemos nossa atividade.
 
Bibliografia
 
Crary, Jonathan. 2014. 24/17. Le capitalism à l’assault du sommeil. Paris, Zones.
 
Gasman, Lawrence. 2006. Nanotechnology applications and markets. London, Artech House.
 
Martins, Hermínio. 2003. “Aceleração, progresso e experimentum humanum”. In Hermínio Matins e José Luís Garcia (coord.), Dilemas da Civilização Tecnológica. Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais.
 
Rosa, Hartmut. 2009. “Social acceleration: ethical and political consequences of a desynchronized high-speed society”. In Harmut Rosa e William E. Scheuerman (org.) High-Speed Society: social acceleration, power, and modernity. Pennsylvania, Pennsylvania University Press.
---------------------. 2005. Accélération. Une critique social du temps. Paris, Éditions La Découverte.
 
 
Sloterdijk, Peter. 1999. Ensaio sobre a Intoxicação Voluntária: conversa com Carlos Oliveira. Lisboa, Fenda.
---------------------. 2000. La mobilisations infini. Vers une critique de la cinétique politique. France, Christian Bourgois Éditor.
---------------------. Cólera e Tempo. Ensaio político-psicológico. Lisboa, Relógio D’Água.
 
STIEGLER, B. 1994. La techique et le temps. T. 1, La faute d’Epimethée, Paris, Galilée.
---------------. 2010. For a new critique of political economy. Cambridge, Polity Press.
 
Virilio, Paul. 2001. Velocidade e Política. São Paulo, Estação Liberdade.
 
 

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

A concepção de individualidade em Georg Simmel

"Crepúsculo", obra de George Grosz, 1922

Por Ana Rodrigues - Doutoranda no PPGS/UFPE

É possível afirmar que o surgimento da sociologia é concomitante ao nascimento do indivíduo da modernidade, que se caracteriza por uma transformação fundamental na relação entre indivíduo e sociedade e por um maior espaço conferido àquele nas relações sociais. Assim, muito embora a consolidação da sociologia como disciplina autônoma tenha sido marcada por um esforço em desvendar as determinações sociais na explicação da vida social, sempre houve um interesse, por parte de seus melhores teóricos, pela análise das dimensões individuais (Martucelli, 2007b).
A análise do indivíduo nunca esteve completamente ausente da sociologia clássica. Mesmo Durkheim, que é considerado um autor holista, reconheceu que as sociedades modernas outorgam um espaço mais amplo ao indivíduo, chegando a afirmar que este havia se convertido na religião da modernidade. Em 1898, Durkheim publicou um texto – “O individualismo e os intelectuais” – em que em que apresenta duas concepções de individualismo: uma negativa, que rende homenagem ao indivíduo particular (egoísmo), e uma positiva, que considera cada indivíduo como representante da humanidade e da razão e rende homenagem à pessoa humana. O autor defende essa segunda concepção, denominada como “individualismo abstrato” por Martucelli e Singly (2012, p. 16).
Mas é sobretudo Simmel que destaca a crescente liberação do indivíduo das antigas dependências históricas nas sociedades modernas, buscando desenvolver uma teoria sociológica do individualismo de maneira menos maniqueísta que seu contemporâneo, Durkheim. Em O indivíduo e a liberdade, Simmel identifica dois tipos de individualismo desenvolvidos na cultura europeia a partir do século XVIII, fundamentados em duas concepções distintas de liberdade. De acordo com Martucelli e Singly (2012, p. 20), o interesse da obra de Simmel é que, diferentemente de Durkheim, ele não estabelece nenhuma hierarquia entre esses dois individualismos e desloca os termos do problema, tentando compreender de que maneira essas duas concepções opostas se articulam.
A primeira noção de individualismo desenvolve-se a partir do século XVIII e tem na liberdade a sua motivação mais íntima. Segundo Simmel (2005, p. 108), a liberdade se torna a bandeira universal por meio da qual o indivíduo protege seus mais variados desconfortos e tenta se autoafirmar perante a sociedade. O ideal da liberdade individual defende a liberação do indivíduo das instituições religiosas, políticas e econômicas que constrangem os potenciais da personalidade de maneira não-natural. É necessário, portanto, libertá-lo de todas essas influências e das desigualdades artificialmente produzidas para que o indivíduo possa desenvolver todos os valores internos e externos de sua personalidade.
Essa concepção de individualismo tinha como fundamento a igualdade universal, seja esta fundada na natureza, seja na razão ou na humanidade. O centro do interesse dessa época é o homem abstrato, que constitui a essência de qualquer pessoa particular, ao contrário do homem historicamente situado, singularizado e diferenciado pelos seus pertencimentos sociais. Com isso, Simmel (2005, p. 109) aponta um contexto de pertencimento prévio e mútuo entre direito, liberdade e igualdade, uma vez que o homem genérico, que representa o núcleo essencial do homem individualizado, aparece em cada indivíduo particular sempre que este seja libertado das forças sociais e desvios históricos que violentam sua essência mais profunda. Para Martucelli e Singly (2012, p. 19), a concepção de individualismo como independência individual, apresentada por Simmel, corresponde ao “individualismo abstrato” de Durkheim.
Simmel (2005, p. 111) também destaca que “esse conceito de individualidade implica, em sentido prático, o laissez faire, laissez aller”, uma vez que se em todos os homens é possível encontrar o homem abstrato como sua essência e se pressupõe o seu desenvolvimento perfeito, então as relações humanas não necessitariam de intervenções reguladoras especiais. No entanto, o autor afirma que não se conseguiu eliminar totalmente as sombras da liberdade nos indivíduos, uma vez que a igualdade manifestava-se de maneira muito imperfeita na realidade.  Ademais, a própria suposição de que após a conquista da liberdade, seguiriam-se novas iniquidades e opressões impulsionou o acréscimo da exigência da fraternidade ao de liberdade e de igualdade, pois “apenas a renúncia eticamente voluntária que esse conceito expressa pode evitar que a liberdade fosse acompanhada do oposto da igualdade” (Simmel, 2005, p. 111).
De acordo com Simmel (2005, p.111), se a consciência geral daquela época sobre a essência da individualidade escondeu essa contradição entre igualdade e liberdade, ela aparece novamente no século XIX. Nesse momento, surge uma segunda concepção de individualismo que se contrapõe à síntese do século XVIII e sua fundamentação da igualdade pela liberdade e vice-versa. Nessa concepção, há uma ênfase na desigualdade e a liberdade permanece como o denominador comum também com o correlato oposto. Contudo, é importante destacar que se, por um lado, o autor aponta a contraposição entre as duas concepções de individualismo, por outro, ele busca apreender sua articulação, mostrando que o individualismo do século XIX pressupõe a concepção do século XVIII, fundamentada na igualdade. Nas suas palavras, “tão logo o eu, no sentimento da igualdade e universalidade, sentiu-se forte o bastante, passou a procurar a desigualdade, mas apenas aquela que surgia como uma lei interna” (Simmel, 2005, p. 112).
Simmel (2005, p. 112) afirma ainda que após a libertação dos indivíduos de suas antigas dependências históricas, o movimento segue adiante e estes indivíduos tornados autônomos buscam agora distinguir-se entre si. Nesta segunda concepção, o importante não é o indivíduo como tal, mas sim o que este tem de único e distinto. Desse modo, intensifica-se a procura moderna pela diferenciação, a busca do indivíduo por si mesmo, por um ponto de solidez e ausência de dúvidas, que se torna tanto mais necessária quanto maior a complexidade da vida. E essa busca não pode ser encontrada em instâncias externas à própria alma. Para o autor, as relações com os outros são apenas estações no caminho em busca de si mesmo. Tais relações são importantes seja porque o indivíduo se sente igual aos outros e sozinho com suas próprias forças, precisando do apoio desse tipo de consciência, seja porque os outros são importantes na comparação e visão da própria singularidade e individualidade do próprio mundo.
Essa concepção de individualismo encontrou seu filósofo em Schleiermacher, para quem não apenas a igualdade, mas a diferenciação é uma obrigação ética. Simmel (2005, p. 113) denomina esse individualismo de qualitativo em oposição ao individualismo numérico do século XVIII e afirma que o romantismo alemão foi o primeiro canal por meio do qual essa concepção permeou a consciência do século XIX.
Segundo Simmel (2005, p. 114), a primeira concepção de individualismo é o produto do liberalismo racional da Inglaterra e da França, enquanto a segunda é uma criação do espírito germânico. Embora em constante tensão, o autor afirma que essas duas grandes forças da cultura moderna procuram um equilíbrio nas mais diversas esferas. No entanto, até o século XIX, os dois tipos de individualismo só foram unidos na constituição de princípios econômicos. Nesta esfera, a concepção da liberdade e da igualdade fundamenta a livre concorrência, enquanto a personalidade diferenciada é o fundamento da divisão do trabalho. Simmel (2005, p. 115) adverte que as consequências “da concorrência sem peias e da especialização da divisão do trabalho para a cultura interna não se deixam apresentar exatamente como o maior benefício dessa cultura”.
A análise de Simmel do individualismo não se restringe ao esboço da emergência de diferentes ideias filosóficas e suas respectivas raízes culturais, dado que ele também busca apreender as mudanças sociais que possibilitaram seu surgimento. Na Filosofia do Dinheiro, Simmel mostra de que maneira o desenvolvimento de uma economia monetária possibilitou uma margem crescente de liberdade individual e, consequentemente, um maior domínio da consciência pelo indivíduo.
De acordo com Simmel (1977, p. 348), o desenvolvimento de uma economia monetária conduziu a uma maior objetividade das relações sociais. Na medida em que o dinheiro se torna o mecanismo universal de troca, ele permite determinar a igualdade exata dos valores de troca, devido às suas propriedades de divisibilidade e aproveitabilidade ilimitada. Como ele pode ser somado e dividido de maneira ilimitada, ele permite a adoção de um critério quantitativo na apreensão dos produtos, reduzindo toda qualidade e individualidade à questão: “quanto?”. Portanto, nos mais diversos fenômenos, dentro da economia monetária, os objetos tornam-se cada vez mais indiferentes em sua singularidade e individualidade, carentes de essência e intercambiáveis (Simmel, 1977, p. 361).
O princípio da objetividade adotado pela economia monetária também conduziu a uma transformação da forma real que tomam as relações de dependência, possibilitando o desenvolvimento da liberdade individual. Simmel (1977, p. 338) explica que, enquanto nas formações sociais anteriores, a vinculação e o direito do senhor abrangiam não apenas o produto do trabalho como também a personalidade do trabalhador, a economia do dinheiro conduz a uma separação completa da personalidade como tal frente às relações de dever. A adoção do princípio da objetividade frente ao da personalidade conduz a uma transição em que o limite do tempo de trabalho começa a ser determinado e, em seguida, não se exige mais um tempo e uma força de trabalho determinados, mas um produto determinado do trabalho. Desse modo, não há uma subordinação a outra personalidade subjetiva. O dinheiro despersonaliza as relações.
Do mesmo modo, no sistema de trabalho assalariado, o trabalhador adquire certa independência frente ao empresário isolado, devido à frequência com que a economia monetária muda o empresário e pela possibilidade múltipla de eleger ou substituir a este que a forma do salário garante ao trabalhador, concedendo-lhe uma liberdade completamente nova, dentro de suas ataduras. Contudo, Simmel (1977, p. 359) destaca que a liberdade do trabalhador é também a liberdade do empresário, que não existia nas formas de trabalho mais vinculadas. Em sentido social, a liberdade, como a ausência de liberdade, constitui uma relação entre seres humanos.
Simmel (1977, p. 352) adverte que a economia monetária não possibilitou apenas uma liberação do indivíduo, mas também uma configuração especial das relações de dependência mútua que, ao mesmo tempo, deixa margem para um máximo de liberdade. Isso porque essa economia estabelece uma série de vinculações, inexistentes nas formações econômicas anteriores. A dependência de outras pessoas alcançou esferas completamente novas, devido à crescente divisão moderna do trabalho e a especialização das faculdades humanas que a acompanha, além do aparecimento de técnicas mais complexas e de um número maior de intervenções para atender mesmo às necessidades mais elementares. Mas o outro lado do processo de divisão do trabalho é justamente que, à medida que o sujeito se torna dependente de um número crescente de prestação de serviços, ele se torna independente das personalidades que se encontram por trás destes, porque só permite a ação de uma parte das mesmas, “excluindo por completo as outras cuja conjunção é precisamente o que dá lugar à personalidade” (Simmel, 1977, p. 354).
Desse modo, a economia monetária facilita a separação do elemento pessoal das relações entre os seres humanos através de sua essência objetiva. Se o homem se torna, por um lado, mais dependente de uma grande quantidade de provedores, ele é muito mais independente da pessoa isolada e concreta que lhe presta um serviço e que pode ser substituída com facilidade e frequência. Em consequência disso, o indivíduo recebe como recompensa “a indiferença em relação com as pessoas e a liberdade de intercâmbio com elas” (Simmel, 1977, p. 356).
Para Simmel (1977, p. 357), esta é a situação mais favorável para produzir a independência interior e o ser-para-si individual. É só a partir do exercício desta liberdade, que é possível desenvolver a individualidade, de ampliar o núcleo do eu por meio da vontade e sentimento individuais. O autor destaca que tal individualidade não pode ser percebida como uma ausência de relações, mas, precisamente, como uma relação muito determinada com os demais. Uma relação que pressupõe, como toda relação, elementos de aproximação e elementos de distanciamento. Segundo ele, a configuração mais favorável de ambos os elementos para explicar a independência tanto em sua qualidade de fato objetivo como de consciência subjetiva parece se manifestar quando se dão relações extensas com outros homens, dos quais foram distanciados todos os elementos que são de natureza individual. Nas suas palavras,
“a causa e o efeito destas dependências objetivas, nas quais o sujeito como tal é livre, residem na trocabilidade das pessoas; na troca voluntária dos sujeitos ocasionada através da estrutura da relação se revela aquela indiferença do elemento subjetivo, que leva o sentimento da liberdade” (Simmel, 1977, p. 358).

A personalidade surge, assim, como a contraposição subjetiva das circunstâncias de dependências objetivas e de indiferença impostas pela economia do dinheiro que conduz a um largo processo de diferenciação social, do qual resulta a acentuação da importância do eu, por um lado, e da coisa, por outro. Simmel (1977, p. 361) afirma que o surgimento da personalidade é ao mesmo tempo o processo de surgimento da liberdade, uma vez que tudo o que chamamos de personalidade – a unidade de elementos psíquicos, sua concentração em um só ponto, a insubstituibilidade de sua essência – implica também a independência e exclusão de todo o exterior e o desenvolvimento de acordo com as leis da própria essência – a que se chama liberdade.
Segundo Simmel (1977, p. 362), em ambos os conceitos se manifesta um ponto último e profundo da essência do indivíduo que enfrenta a todo objetivo, exterior e sensorial, que se origina tanto fora como dentro da sua própria natureza. Tanto o conceito de liberdade quanto o de personalidade constituem uma “expressão do fato de que aqui surgiu a contrapartida do ser natural, contínuo e objetivamente determinado, contrapartida cuja originalidade não somente reside na aspiração a uma posição especial frente a ele, senão também na busca de uma conciliação com ele mesmo”.
Além da economia do dinheiro, o crescimento dos círculos sociais, que acompanha o seu desenvolvimento, é percebido por Simmel como uma importante transformação para o aumento da liberdade e da individualidade. O autor tenta compreender de que maneira a personalidade se acomoda nos ajustamentos às transformações sociais advindas com a vida na metrópole, lugar em que essa economia se desenvolve. Simmel (1973, p. 12) busca apreender as condições psicológicas criadas pela vida na metrópole, tendo em vista que a mente humana procede a partir de discriminações entre a impressão de um dado momento e o que o precedeu, e a metrópole extrai uma quantidade de consciência maior que a vida rural. O autor afirma que a base psicológica do tipo metropolitano de individualidade consiste na intensificação de estímulos nervosos, resultantes da alteração brusca e ininterrupta de estímulos interiores e exteriores.
Diante do ritmo de vida e da rápida convergência de imagens em mudança na metrópole, o indivíduo metropolitano desenvolve uma consciência elevada e uma predominância da inteligência. Segundo Simmel (1973, p. 13), a reação aos fenômenos metropolitanos é transferida a um órgão menos sensível e bastante afastado da zona mais profunda da personalidade, enquanto a intelectualidade assume a preservação da vida subjetiva contra o poder avassalador da vida metropolitana.
Ademais, as relações emocionais íntimas entre pessoas fundadas em sua individualidade, comuns nos pequenos círculos, dão lugar a relações racionais e anônimas, em que se trabalha com o homem como um número, um ser que é em si mesmo indiferente. Simmel (1973, p. 14) afirma que essa atitude “prosaicista” está tão inter-relacionada com a economia do dinheiro que não se sabe se foi a mentalidade intelectualística que primeiro criou essa economia, ou se esta última determinou a primeira.
O autor também destaca que o caráter objetivo da economia do dinheiro – com suas características de exatidão, calculabilidade, etc. – são introduzidos à força pela complexidade e extensão da existência metropolitana, de modo que ele não está apenas intimamente ligado a essa economia, mas também conduz a uma objetivação crescente de conteúdos existenciais. Desse modo, esse caráter permeia o conteúdo da vida e favorece a exclusão daqueles impulsos irracionais e instintivos, que tentam determinar o modo de vida de dentro, ao invés de receber a forma de vida geral de fora. Na Filosofia do Dinheiro, Simmel (1977, p. 347) destaca que é justamente essa capacidade de observação objetiva, de prescindir do eu, que separa os homens, no puramente psicológico, das ordens animais inferiores. E é isso o que impulsiona o processo histórico ao seu resultado possivelmente mais nobre e à formação de valores em que os interesses de uma parte não exclui o outro, senão abre caminho a ele.
Simmel (1973, p. 15) afirma que não há fenômeno psíquico que tenha sido tão incondicionalmente reservado à metrópole quanto a atitude blasé, que expressa a relação entre uma estrutura da mais alta impessoalidade e, em contraposição, uma subjetividade altamente pessoal. Em princípio, essa atitude resulta dos estímulos contrastantes que são continuamente impostos aos nervos. Mas o autor acrescenta que essa fonte fisiológica da atitude blasé é acrescida de outra que flui da economia do dinheiro e corresponde ao embotamento do poder de discriminar toda qualidade dos objetos, de modo que nenhum objeto merece preferência sobre outro. Para o autor, “esse estado de ânimo é o fiel reflexo subjetivo da economia do dinheiro completamente interiorizada” (Simmel, 1973, p. 16).
Simmel (1973, p. 17) explica que na atitude blasé, os nervos encontram na recusa a reagir aos incessantes estímulos a última possibilidade de acomodar-se ao conteúdo e à forma de vida metropolitana. Assim, a autopreservação da personalidade é alcançada ao preço da desvalorização de todo mundo objetivo; uma desvalorização que no final arrasta a personalidade da própria pessoa para uma sensação de igual inutilidade. Além disso, sua autopreservação em face da cidade exige dele um comportamento de natureza social negativa, como a reserva. Essa reserva assume a forma de um fenômeno mais geral da metrópole, conferindo ao indivíduo uma quantidade e qualidade de liberdade pessoal que não tem analogia sob outras condições.
Esse aumento da liberdade está relacionado ao crescimento dos círculos sociais. Segundo Simmel (1973, p. 19), os pequenos círculos permitem apenas relações restritas com os outros grupos e não podem permitir a liberdade individual e o desenvolvimento interior e exterior próprios, uma vez que guardam as realizações, a conduta de vida e a perspectiva do indivíduo. Mas à medida que o grupo cresce, a unidade interna do grupo se afrouxa, bem como a demarcação original contra os outros grupos, possibilitando relações e conexões mútuas. Assim, o indivíduo ganha liberdade de movimento, ao mesmo tempo em que adquire uma individualidade específica, decorrente da divisão do trabalho tornada necessária com o crescimento do grupo.
O caráter extensivo da metrópole para além de suas fronteiras físicas e a independência individual contribuem para que o aspecto quantitativo da vida seja transformado em traços qualitativos de caráter. Simmel (1973, p. 21) afirma que “o homem não termina com os limites do seu corpo ou a área que compreende sua atividade imediata. O âmbito da pessoa é antes constituído pela soma de efeitos que emana dela temporal e espacialmente”. Deste modo, a liberdade que acompanha este processo não deve ser entendida apenas no sentido negativo, como liberdade de mobilidade. O ponto essencial é que a particularidade e incomparabilidade que todo ser humano possui sejam expressas de alguma forma na elaboração de um modo de vida. A liberdade no sentido de o indivíduo estar seguindo as leis de sua própria natureza só se torna óbvio para ele e para os outros se as expressões dessa natureza diferirem das expressões de outras. A pessoa se volta para diferenças qualitativas, buscando atrair de alguma forma a atenção do círculo social, explorando sua sensibilidade e diferenças. Do mesmo modo, a crescente divisão do trabalho na cidade moderna compele o indivíduo a se especializar em uma função na qual não possa ser prontamente substituído por outros. Esse processo conduz a uma diferenciação crescente (Simmel, 1973, p. 22).
Portanto, a individualidade para Simmel decorre de condições externas, como o pertencimento a diversos círculos sociais separados entre si e, ao mesmo tempo, do trabalho interior, íntimo. Apesar da grande contribuição teórica de Simmel para pensar o crescente processo de individualização na modernidade, ele foi praticamente esquecido depois da Primeira Guerra Mundial e maioria dos sociólogos abandonou a ênfase dos clássicos na importância das formações psíquicas particulares dos indivíduos na explicação da vida social.
Contudo, Martucelli e Singly (2012, p. 23) destacam que a concepção de individualidade desenvolvida por Simmel se torna central quase um século depois para uma corrente sociológica denominada de “Sociologia do Indivíduo”, que defende a necessidade de uma nova abordagem teórica à escala individual, haja vista a intensificação do processo de individualização na sociedade moderna, a partir da segunda metade do século XX – o que muitos teóricos chamam de segunda modernidade. Esses teóricos afirmam que, diante desse processo, o indivíduo não pode ser mais definido apenas pelos vínculos herdados e pelas determinações sociais. Faz-se necessário prestar mais atenção no trabalho que o indivíduo realiza sobre si mesmo. Simmel torna-se um dos principais precursores dessa corrente pela sua ênfase, por um lado, na crescente divisão interna dos indivíduos e a independência entre as diversas partes de seu ser e, por outro lado, na existência de um conflito interior entre essas partes (Martucelli e Singly, 2012, p. 34).

Referências bibliográficas

MARTUCELLI, Danilo (2007a). Cambio de rumbo: la sociedade a escala del Individuo. Santiago: LOM Ediciones.
____________. (2007b) Lecciones de Sociología del Individuo. Santiago.
MARTUCELLI, Danilo & SINGLY, François de (2012). Las Sociologías del Individuo. Santiago: LOM Ediciones.
SIMMEL, Georg. (1977). Filosofia Del Dinero. Madrid: Instituto de Estudios Politicos.
_____________(2005). “O Indivíduo e a Liberdade”. In: J. Souza e B. Oelze (Orgs.) Simmel e a Modernidade. Brasilia: Ed. UnB.
____________ (1973). “A metrópole e a vida mental”. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.) O fenômeno Urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
___________ (1950). “The Stranger”. In: WOLF, Kurt H. The sociology of Georg Simmel. New York, Knickerbocker Printing Corp.