sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Consumo de Psicofármacos na Contemporaneidade: a medicalização do sofrimento e as encruzilhadas da subjetividade (versão não editada)



Corpo, Consumo e Saúde: reflexões contemporâneas
Cuiabá - 18 de setembro de 2015


Jonatas Ferreira

Começo esta comunicação propondo a existência de um dispositivo psicofarmacológico e afirmando sua importância para entendermos as necessidades dinâmicas do capitalismo contemporâneo. Proveniente da genealogia foucaultiana, o termo dispositivo diz respeito a uma “urgência”, a uma “função estratégica dominante”, de pretensões quase sistêmicas, em dada formação governamental. Em seu ensaio “O que é um dispositivo?”, Giorgio Agamben recorre a alguns poucos excertos em que Foucault procura esclarecer este termo: “O que estou tentando destacar com esse termo é, primeiro e acima de tudo, um conjunto de discursos largamente heterogêneo, instituições, formas arquitetônicas, decisões de caráter regulador, leis, medidas administrativas, declarações científicas, proposições morais e filantrópicas - em suma, o dito tanto quanto o não dito. Esses são os elementos do aparato. O aparato é, ele mesmo, a rede que pode estabelecer esses elementos…” (Agamben, What is an Apparatus, p. 2). Interessa-me nesse conjunto de elementos discursivos articulados sua precariedade, a forma tensa e por vezes ambígua como ele se torna operante, o seu não dito. Por motivos que ficarão claros na continuidade desta exposição, uma análise da medicalização do sofrimento psíquico na contemporaneidade pode se beneficiar de tal aporte teórico.

Digamos inicialmente acerca dessa possibilidade discursiva e de seu significado: se a aceleração e a “aceleração da aceleração” desempenham um papel crucial na própria lógica a partir da qual o capitalismo responde ao horizonte sempre iminente das crises globais – e, deste modo, inovar e consumir são necessidades sistêmicas desta economia -, uma das condições da sustentabilidade de sua dinâmica é a existência desse dispositivo biopolítico. É preciso que os corpos respondam positivamente às condições dromológicas de reprodução do capital, à perecibilidade de objetos, ao caráter descartável dos envolvimentos afetivos, em suma, a estes fenômenos inerentes ao “turbocapitalismo”. Isso demanda, não apenas próteses químicas, medicamentos, tais como antidepressivos, ansiolíticos, psicoestimulantes, mas uma “cultura” e uma biopolítica em que os corpos devem sempre estar em estado de prontidão, em que formas específicas de regulação e ampliação da atuação médica, em que mudanças institucionais etc., contribuam para a possibilidade de operação mais ampla deste sistema.

O dispositivo psicofarmacológico compreende, pois, não apenas a popularização do consumo de substâncias psicoativas, tais como neurolépticos, antidepressivos, ansiolíticos, mas um conjunto de saberes - encapsulados nos manuais de diagnóstico, por exemplo -, a institucionalização de terapêuticas específicas, a ação de grandes empresas farmacêuticas, a regulação governamental da prática médica, da atuação da indústria farmacêutica, do controle do consumo de medicamentos, entre diversos outros fenômenos sociais. Este conjunto articulado de práticas, saberes, poderes, oferece uma forma de entender o sofrimento a partir da bioquímica, deficits de serotonina, circuitos sinápticos, mas fundamentalmente propõe uma forma de lidar com o mal-estar contemporâneo e de aprender a “funcionar” num contexto de fragmentação e dissolução difíceis de ser suportadas. Trata-se, pois, de um dispositivo biopolítico em que o silenciamento dos processos de significação corre em paralelo ao privilegiamento da administração da “vida nua”[1], à zoologização dos humores.

A atenção que se tem dado ao tema, no entanto, em geral, tende a tomar como foco esse produto recente da neurobiologia, isto é, o medicamento. Neste sentido, a medicalização dos sofrimentos mais comezinhos, a intolerância à dor e ao sofrimento, se destacam do conjunto biopolítico onde eles fazem algum sentido. A explosão no consumo de psicofármacos é um aspecto importante do dispositivo psicofarmacológico, não há dúvida. Comecemos então por mencioná-lo aqui. Tomemos o caso do Brasil e de Portugal, como ilustração. De acordo com dados da ANVISA, em 2010 foram dispensadas 25.677.892 unidades de algum tipo de benzodiazepínico - isto é, de hipnóticos com propriedade ansiolítica - no Brasil, um número que corresponde a aproximadamente 135 unidades para cada mil habitantes. Se compararmos esse consumo com dados de 2008, ou seja, em um intervalo de apenas 2 anos, observaremos um crescimento de 325,4%. Na Europa, merece destaque o caso português: “Entre os anos de 2000 e 2012, o consumo de antidepressivos calculado em doses diárias por mil habitantes mais que triplicou e o de ansiolíticos cresceu 170%. A venda de ansiolíticos, sedativos e hipnóticos (vulgarmente designados tranquilizantes) aumentou 6%, mas este continua a ser o subgrupo com maior utilização em Portugal (96 doses diárias por mil).

Há entre o aumento do consumo de psicofármacos no mundo e a constatação do aumento dos diagnósticos de transtornos mentais uma relação largamente difundida, mas que não é tão evidente assim. O Brasil, não há dúvida, refletiria uma tendência mundial de aumento de transtornos psíquicos como a depressão. No ano de 2013, 7,6% dos diagnósticos de doenças crônicas no SUS diziam respeito precisamente à depressão (11% mulheres e 4% homens). Esse valor alcança 13% dos casos totais de doenças crônicas em Santa Catarina e Rio Grande do Sul (nos dois casos as mulheres têm mais que o dobro dos diagnósticos dos homens). Em sua edição de 18/08/2014, o jornal O Estado de São Paulo, com base em dados do SUS, afirmava que o número de mortes decorrente de estados depressivos aumentara 705% em 16 anos. “O número total de suicídios também teve aumento significativo no Brasil. Passou de 6.743 para 10.321 no mesmo período, uma média de 28 mortes por dia”[2].

Diante desses números, é forçoso perguntar: estamos diante de um aumento real de casos de depressão, da notificação de casos que antes não eram notificados - inclusive pela ausência de mecanismos padronizados de diagnóstico -, ou do peso de uma psiquiatria voltada para o sintoma, cuja força não pode ser negligenciada, e que tenderia a tornar “patológico”, e portanto passível de medicalização, todo sofrimento que puder ser tratado mediante a intervenção de medicamentos? É possível que ambas as alternativas estejam corretas. Sob a influência da psiquiatria estadunidense e das versões 3, 4 e 5 do Manuais Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais (DSM), ocorre uma padronização dos diagnósticos de transtornos mentais e esta uniformização de critérios resultou no aumento expressivo das estatísticas de sofrimentos, a exemplo da depressão. Esta padronização dos critérios de diagnóstico, por outro lado, foi um elemento importante na popularização de uma terapêutica bioquímica, bem como na legitimação de uma epistemologia médica de base neurológica. Diríamos que a eficiência dos novos psicofármacos no tratamento de uma síndrome qualquer age como critério reverso de validação da nosologia que orienta este tipo de psiquiatria: se um conjunto de sintomas pode ser tratado com um medicamento dado é porque estamos diante de um transtorno específico. Todos devemos ter em mente aqui a dificuldade que a psiquiatria sempre teve de ser tratada como uma prática médica entre outras precisamente por não contar com pressupostos etiológicos convincentes: ela compensa isso com uma predisposição classificatória, presente desde os primeiros esforços de seus fundadores. Essa dificuldade é compreensível: parece bem mais fácil estabelecer uma relação causal entre o entupimento de uma artéria e a ocorrência de um infarto que encontrar as “causas” biológicas da esquizofrenia.
“Yet no mental disorder is associated with a consistente biological marker either from neurochemistry or from imaging data. This suggests that psychopathology is too complex to be readily classified, either in distinct categories, or in broad spectra. For example, the fact that psychopharmacological agents can change brain chemistry does not prove the fact that mental disorders are caused by ‘chemical imbalance’. Similarly, the fact that mental disorders are associated with change in brain function that can be measured by imaging does not prove that alterations in the activity of neuro-circuitry are the cause of these illness”  (Paris, p.40).
O sintoma, no contexto da psiquiatria de orientação biológica, funciona como um critério para estabelecimento de uma etiologia. Isto ocorre na medida em que uma síndrome possa ser objeto de intervenção medicamentosa que a atenue: a classificação psiquiátrica de um sofrimento, isto é, um conjunto de sintomas, e sua medicalização, assim, andam de mãos dadas. Neste sentido, o fato de a psiquiatria hegemônica na contemporaneidade dispor de quadros nosológicos amplos que constatam o aumento vertiginoso dos diagnósticos de depressão parece, ao mesmo tempo, apontar para a necessidade de intervenções químicas. Porém, o fato de dispormos de enormes gavetas para, mediante uma conferência rápida de um quadro sintomático, arquivar situações de mal-estar em dada categoria pode significar que este mal-estar tenha uma dimensão ontológica, biológica e social mais complexa que o desejo de alguns por métodos pragmáticos de lidar com o sofrimento pode admitir. Escutemos a esse respeito, mais uma vez, o psiquiatra estadunidense Joel Paris:
“Infelizmente, reducionismo biológico não consegue reconhecer sistemas complexos têm propriedades emergentes que não podem ser inteiramente explicados com base em seus componentes. Embora a mente não exista sem o cérebro, ela não pode ser reduzida a circuitos neurológicos ou mecanismos celulares” (Paris, p. 40)
Creio que devemos nos perguntar que mudança discursiva, epistemológica, encontra na nosologia do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – sobretudo em suas três últimas versões - sua racionalização típica. A meu ver, estamos diante de uma transformação profunda de sentido metadiscursivo, ou seja, uma mudança que diz respeito ao próprio sentido da linguagem nos processos de comunicação que se estabelecem no dispositivo psicofarmacológico e de um modo bem particular na relação entre médico e paciente. Diríamos inicialmente que a pretensão destes guias de diagnóstico da saúde mental é constituir um processo científico de entrada, processamento e saída de informações não ambíguas de modo a orientar um tipo de terapêutica tão racional e simples que seria plenamente compreensível não apenas pelo psiquiatra, pelo especialista, mas por clínicos gerais, demais especialistas e leigos. Porém e, sobretudo, a lógica de operação desses manuais é tornar possível a própria automatização dos mecanismos diagnósticos. Uma medida considerável de automatização das trocas comunicacionais entre médico e paciente – e, assim, a degradação do sentido como parte inerente do processo terapêutico - está na raiz da racionalidade do dispositivo como um todo. Por essa razão não parece fortuito que Robert Spitzer, que teve uma posição chave na força tarefa que elaborou a versão 3 do DSM, fale da pretensão de transformar diagnósticos em algoritmos, em tudo semelhantes àqueles que encontramos na programação computacional. Apenas esse processo permitiria construir mecanismos estatísticos capazes de estimar a real situação da saúde mental dos E.U.A. Os algoritmos de que fala Spitzer, neste sentido, são, não apenas relevantes, mas um elemento central da lógica mais ampla que articula o próprio dispositivo: mapear, identificar e controlar o sofrimento.
“The Patient Health Questionnaire (PHQ) is a 3-page questionnaire that can be entirely self-administered by the patient. The clinician scans the completed questionnaire, verifies positive responses, and applies diagnostic algorithms that are abbreviated at the bottom of each page. The PHQ assesses 8 diagnoses, divided into threshold disorders […], and subthreshold disorders”[3].

O desdobrar deste tipo de raciocínio pode ser comprovado nas versões do DSM que se seguiram à sua terceira versão. O sentido geral do empreendimento era criar categorias analíticas claras que pudessem estabelecer um padrão internacional de diagnóstico de transtornos mentais, à semelhança da International Classification of Diseases. Tratava-se pois fornecer “critérios somáticos explícitos”, e universalizáveis, capazes de servir sem ambiguidades ao diagnóstico dos transtornos mentais. A padronização que promove o DSM-III foi de fundamental importância para “explosão de pesquisas na área de saúde mental” (Spitzer in Horwitz e Wakefeld, 2007, p. 7-8). Quando falamos aqui, seguindo Horwitz e Wakefeld, de “explosão de pesquisas”, temos em mente pesquisas quantitativas em grande escala, capazes de perceber como um mesmo caso de depressão o sofrimento de pacientes em princípio bastante diversos. Quando hoje falamos de uma explosão de casos de depressão no mundo, devemos ter em mente o caráter organizador desses manuais diagnósticos e de sua capacidade de reduzir a complexidade do real.
É claro que não se trata aqui nem de demonizar o DSM nem o psicofármaco, mas de entendê-los no contexto de uma discursividade mais ampla e que diz respeito às formas como a reprodução da vida, da saúde mental e da subjetividade são empreendidas no contexto do turbocapitalismo. Essa discursividade e a compreensão do que seja linguagem e comunicação podem ainda ser ilustrados pela mesma busca de algoritmos que racionalizem a linguagem cotidiana e busquem já não a compreensão esquematizada, a significação mesmo que simplificada do sofrimento, mas sua domesticação nos fluxos comunicacionais mais amplo da técnica. Em 04 de setembro de 2015, a Folha de São Paulo, em reportagem de Giuliana Miranda, anunciava sem qualquer consideração crítica em seu caderno “equilíbrio e saúde” o desenvolvimento de um “novo algoritmo ajuda cientistas a prever casos de psicose”. Como Heidegger já propôs em seus ensaios sobre linguagem e cibernética, a linguagem reduzida à comunicação, aos fluxos comunicacionais, é esvaziada de toda ambiguidade, de toda pluralidade semântica que se oponha à aceleração e à antecipação tecnológica. Parece que é isso de que se trata aqui. Não é de estranhar que a psiquiatria que se desenvolve no contexto do que chamamos aqui dispositivo psicofarmacológico trate a expressão linguística do psicótico como um mero conjunto de sinais, como elemento matematizável que pode oferecer dados mais amplos de previsibilidade da psique. Desenvolvido por um time internacional de pesquisadores, o algoritmo de que fala a reportagem “consegue analisar a fala de pacientes psiquiátricos e prever aqueles que irão desenvolver uma psicose”. Mais abaixo somos informados: “Pacientes com esquizofrenia, uma das psicoses mais conhecidas, têm vários sintomas perceptíveis na fala, inclusive um certo grau de confusão e repetição. O que os algoritmos dos cientistas fazem é automatizar o processo de identificação, que hoje é feito pelos ouvidos atentos dos psiquiatras nos consultórios”. Se ouvidos atentos dos psiquiatras já podem ser concebidos como supérfluos, tenha ou não viabilidade prática e econômica o algoritmo de que fala a reportagem, é porque a questão do sentido da comunicação, da linguagem, já foi reduzida a uma sintomática, a um conjunto de sinais que não apenas podem ser manipulados automaticamente, mas são, eles próprios, percebidos como signos matemáticos. A vida desnudada de sentido, a palavra esvaziada de sua dimensão semântica, já não é objeto de exegese, de interpretação, mas pode ser antecipada. Desde Marx, como já enfatizamos acima em nossa primeira nota de rodapé, a abstração do trabalho do ser humano, a perda de qualquer caráter subjetivo no laborar, significava tanto sua bestialização com a própria possibilidade de automatização. A redução da linguagem a um ato de performatividade comunicacional, a um conjunto de signos, de sintomas antecipáveis, matematizáveis, parece agora constituir um elemento fundamental no empobrecimento da experiência sem o qual uma dinâmica dromológico, de consumo vertiginoso não parece concebível.
Tudo isso nos impele a refletir acerca dos motivos pelos quais as condições sociais de produção do sofrimento, hoje tratado por uma psiquiatria de base bioquímica, são deixadas de lado. É claro, por exemplo, que o ritmo da vida contemporânea tem levado a quadros que são avaliados como depressivos – toda uma literatura e estatísticas sobre a ocorrência de síndrome de burnout nas grandes cidades apoiam esse tipo de constatação. A verdade porém é que para além desse vetor macrossociológico a própria dinâmica daquilo que Sadler (26) denomina Complexo Médico-Industrial da saúde mental (MHMIC) deve ser considerado como fator importante para entendermos o aumento expressivo dessas estatísticas. O argumento de Sadler é simples: como qualquer negócio, o MHMIC procura expandir constantemente seu mercado e, assim, maximizar o lucro de seus investidores. Neste sentido, por exemplo,
“um compromisso constante da psiquiatria Americana para aumentar o número de categorias de transtornos mentais [mental disorders] é uma valiosa, talvez essencial, contribuição para essa agenda expansionista. Até o momento, cada revisão do DSM adicionou novas categorias e/ou subcategorias de transtornos. Mais, a indústria farmacêutica provavelmente se beneficia da abordagem descritiva e “ateórica” do diagnóstico, posto que o ateorismo contribui para potenciais prescrições cruzadas (prescrições cruzadas são o uso do mesmo composto para diferentes categorias de diagnóstico, tais como usar SSRIs[4] tanto para a depressão quanto para a ansiedade”.
Sadler propõe ainda que observemos algumas dimensões Complexo Médico-Industrial da saúde mental. A primeira delas é, sendo o negócio seu motor, ele sobrevive da busca incessante por “maximizar lucros” e “minimizar custos”. Terapias baseadas em medicamentos, no tratamento de sintomas claros e rapidamente identificáveis, são uma alternativa bem mais barata que “terapias psicossociais”. Comparemos uma consulta de um psiquiatra de orientação neurobiológica, isto é, para quem o conjunto de sintomas leva ao diagnóstico e ao medicamento, com um psiquiatra de orientação psicanalítica, em cuja prática o sintoma é apenas o início de uma longa “investigação”. A guinada da Associação Psiquiátrica Americana para fora da influência psicanalítica, neste sentido, pode ser entendida como uma decisão econômica. AA pressão por eficiência e por critérios racionais de gestão dos serviços de saúde acomodam-se e impelem, deste modo, perfeitamente à virada que se produz na psiquiatria estadunidense a partir do lançamento do DSM-3, e que Paris acertadamente denomina “reducionismo biológico”. As mudanças de orientação biomédica que existem entre o DSM-II e o DSM-III, como é sabido, devem-se em larga medida à síntese de medicamentos mais eficazes no “tratamento de transtornos mentais”. “O efeito dramático da clorpromazina, dos diazepínicos e dos antidepressivos tricíclicos abalou completamente a ideia de separação entre processos orgânicos e psicológicos, ajudou a desmontar a centralidade do tratamento hospitalar, e ampliou o contingente de condições tratáveis pelos médicos” (Bezerra Jr., p. 24). Numa série de entrevista que realizei com psiquiatras e psicólogos em Lisboa no ano de 2014, a pressão gerencialista do sistema de saúde português, sobretudo no que ele diz respeito às metas de atendimento de pacientes com algum tipo de sofrimento psíquico, foi apontada como tendo impacto direto no tempo que os profissionais da saúde mental pode dedicar a consultas, bem como na existência de intervalos demasiadamente longos entre aquelas. Isso reforça, segundo entendo, a tendência a adotar métodos de diagnóstico e tratamento compatíveis com, ou mais ajustáveis a, essa pressão.
Fatores como uma cultura de saúde baseada na responsabilidade individual, ressaltada por autores como Nikolas Rose e Alain Ehrenberg, além de formas diversas de propaganda e de divulgação do produtos e serviços do Complexo Médico-Industrial de Saúde Mental, as relações econômicas estreitas entre a indústria farmacêutica e a pesquisa científica, entre investigação e negócio, além de lobby político das grandes empresas deste Complexo junto ao Congresso são fatores que Sadler acertadamente considera como relevantes para entender o que aqui chamamos de dispositivo psicofarmacológico. Hegemônico nos EUA, este dispositivo parece particularmente relevante por explicar mudanças culturais em nosso próprio sistema de saúde e de saúde mental.
Todavia, quando parte dos profissionais da saúde mental parecem se escandalizar ao constatar que, com base nas espectativas hegemônicas na Associação Psiquiátrica Americana, na popularização de psicofármacos, na pressão do mercado da saúde mental, tenha-se passado a tratar sofrimentos perfeitamente “normais” com medicamentos, uma expectativa algo parece escapar a este sentimento e à crítica mais ampla que a ela subjaz. Isso diz respeito à própria ideia de normalidade como elemento regulador da prática médica. Espera-se que a medicina continue a regular suas ações através da oposição entre normalidade e patologia, como percebeu Canguilhem na década de 1940 acerca da medicina dos séculos XIX e XX. Neste contexto, apenas o que pode ser considerado patológico deveria ser objeto de qualquer medicalização, ou seja, de intervenção médica e medicamentosa.
Para ser exato, a medicina hegemônica na contemporaneidade e as terapias que dela advém ainda se orientam, em um número considerável de situações, através dessa oposição. A saúde mental não desconhece essa situação. Ainda vamos ao médico e somos tratados por sermos afetados por algum tipo de doença ou para prevenir uma predisposição patogênica – embora essas duas situações sejam bem distintas. Porém, é evidente que a atuação da medicina e da indústria farmoquímica não se atêm a esse tipo de circunscrição, isto é, de reconduzir, na medida do possível, o corpo em padecimento à saúde. O apoio que o Complexo Médico-Industrial dá ao desporto de alta performance atesta que a fronteira entre normalidade e patologia não organiza a totalidade biossocial e biopolítica desta atuação. O uso de Ritalina com o objetivo de melhorar concentração e performance intelectual em pessoas não diagnosticadas com transtorno de hiperatividade e atenção também parece ilustrar o que afirmamos. Uma lógica psiquiátrica que tem como parâmetro básico de atuação médica a funcionalidade dos indivíduos em um contexto social em que a saúde mental, ou simplesmente de bom senso, poderia significar a rejeição desta mesma funcionalidade parece também indicar que as fronteiras entre normalidade e patologia estão sendo ressignificadas. Deste modo, quando transtornos psíquicos passam a ser identificados como “perda de funcionamento biológico ótimo”, dado um contexto evolucionário específico, ou uma “disfunção” que se traduz em desvantagem (Kinghor, p. 49 e 50) física, perceptiva, sexual etc. para um determinado indivíduo, implícito parece-nos aqui um contexto de concorrência que funciona como marcador do que deve ser objeto da intervenção médica.
Não parece fortuito que a palavra transtorno (disorder, em inglês) substituia um jargão psiquiátrico mais diretamente relacionado ao mundo das patologias mentais, como seria o caso da palavras neurose ou psicose. O Transtorno, a “desordem”, e não necessariamente a patologia, passam a organizar uma parte considerável das intervenções nesses campos. A própria ideia de transtorno mental passa a depender de uma apreciação subjetiva da intensidade do mal-estar por parte do próprio paciente. Foi essa, aliás, a estratégia adotada pela APA para responder aos grupos de defesa dos direitos homoafetivos que se contrapunham à patologização de suas opções sexuais, tal como podemos ainda ler no DSM-III. Claro que devemos comemorar o avanço político que, neste ponto, percebemos em versões ulteriores do DSM com relação àquela postura mais conservadora: a homoafetividade não é um transtorno psíquico até que o indivíduo a perceba como tal. Interessa, no entanto, perceber que a patologia neste, como em outros casos, depende de uma avaliação do quanto o indivíduo pode suportar pressão social. Assim, não parece fortuito que parte substantiva deste campo esteja pautado por uma atenção grande ao sintoma, à síndrome, e não à constatação das bases etiológicas de uma enfermidade qualquer.
Christian Dunker, advogando a necessidade de ter em mente as condições históricas em que narrativas sobre a saúde mental - tanto na psicanálise quanto na psiquiatria - estruturam-se no sentido de uma medicina classificatória que tem a histeria com ponto de partida, afirma a necessidade de perceber um deslocamento neste campo biopolítico. Para ele, seria necessário perceber que a “hipótese repressiva”, de que nos fala Foucault até o primeiro volume da História da Sexualidade, teria sido substituída por uma “hipótese depressiva”. No primeiro caso, a contenção e disciplinamento da energia libidinal a serviço de aparelhos produtivos racionais, previsíveis, seria a base da atuação das narrativas científicas no campo da saúde mental e de seu foco na histeria. Atualmente, todavia, uma narrativa em torno da “potência-impotência” passaria a organizar este campo. Esses polos caracterizam o que Dunker denomina “hipótese depressiva”. Não seria a interdição do desejo o que fundaria os dispositivos biopolíticos contemporâneos - interdição diagnosticada, como sabemos, por Freud de modo claro ao teorizar sobre a mulher histérica -, mas o imperativo e, ao mesmo tempo, impossibilidade do gozo que nos propõe a sociedade de consumo. A lógica do consumo não é fundamentalmente repressiva, mas tem na oposição potência-impotência sua verdade. A cultura do consumo se funda nesta aparente aporia, ou seja, no imperativo do desejo, pois quem não está apto para o desejo está deprimido, e em sua impossibilidade. A lógica que funda essa economia tensa, ambígua, é niilista. A irresolução desse paradoxo nos garante diuturnamente a posição de desejantes insaciáveis e, assim, de consumidores vorazes.
O filósofo Peter Sloterdijk fala-nos dos aspectos niilistas de uma mobilização infinita dos seres que é promovida pelas tecnologias da velocidade – que constituem, argumentamos, o fundamento do dispositivo biopsicofarmacológico. “Eis aí o que nos proporciona a fórmula dos processos de modernização: o progresso é movimento em direção ao movimento, movimento em direção a mais movimento, movimento em direção a uma maior aptidão para o movimento” (La mobilisation infini, p. 35). Nesta mobilização sem sentido de todas as coisas pelo imperativo da velocidade, nós somos capturados. Hartmut Rosa, de uma perspectiva mais sociológica, oferece uma análise interessante das tensões e intensidades entre diferentes âmbitos da aceleração, nomeadamente, no campo tecnológico, social e individual. “Experimentar a vida em todos os seus altos e baixos e em sua inteira complexidade se torna a aspiração central do homem moderno. As opções oferecidas sempre ultrapassam. Mas, ao fim e ao cabo, o mundo sempre parece ter mais a oferecer do que pode ser experienciado em uma vida individual”. Zapear é a realidade íntima do “homem moderno”, portanto. Algumas linhas adiante, Rosa arremata: “A aceleração serve como estratégia para apagar a diferença entre o tempo do mundo e o tempo de nossa vida. A promessa eudemonista da aceleração moderna então parece ser um equivalente funcional das ideias religiosas da eternidade ou vida eterna, e a aceleração do ritmo da vida representa a resposta moderna ao problema da finitude e da morte” (Rosa, 2009, p. 91). Buscamos a intensidade do presente, sua aceleração e múltiplas possibilidades, como há alguns séculos se buscava um futuro, uma vida além da morte, que nos redimisse de nossa perecibilidade. Essa é no limite a promessa do psicofármaco.
Quanto à leitura de Christian Dunker, ou seja, quanto a afirmação de termos sido capturados pela potência-impotência que subjaz à “hipótese depressiva”, ela é compatível com uma outra que nos oferece, num humor baudrillardiano, Byung-Chul Han:
“De um ponto de vista patológico não é o princípio bacteriano em o viral que caracterizam a entrada no século XXI, mas, sim, o princípio neuronal. Determinadas doenças neuronais, tais como a depressão, o transtorno por défice de atenção e hiperatividade (TDAH) ou certas perturbações de personalidade – transtorno de personalidade borderline (TPB) ou síndroma de burnout (SB) – descrevem o panorama patológico do século XXI” (Han, 2014, p. 9).
O que caracteriza esse novo panorama? “Não estamos já perante infeções, mas, sim, enfartes, originados não pela negatividade do outro imunológico, mas, sim, por um excesso de positividade” (Ibid.). Isso não significa que a metáfora da coerência imunológica não tenha adeptos ou apelo, mas que uma nova dinâmica discursiva parece se impor. O tipo de sofrimento de que fala Han, pois, é caracterizado por um excesso de positividade, algo de que já nos falava Jean Baudrillard em textos como A transparência do mal ou Cultura e Simulacro.
Em consonância com o que mais acima denominamos, a partir de Dunker, “hipótese depressiva”, é possível dizer que o sofrimento contemporâneo, pensado a partir da oposição potência-impotência, pode ser traduzido no que se tem convencionado chamar crise da subjetividade. Neste sentido, poderíamos dizer que o dispositivo psicofarmacológico atua precisamente no terreno desta ambiguidade, reproduzindo, ampliando-a. A prótese química, mas não apenas ela, como propomos ao longo desta comunicação, atua no sentido de garantir um certo bem-estar ao indivíduo tensionado entre o compromisso de garantir autodeterminação em suas ações, responsabilidade sobre sua saúde, estar apto a responder às demandas do capitalismo contemporâneo etc., por um lado, e impossibilidade de realizar essas condições elementares, capturado que está este indivíduo em fluxos sociais amplos, globais. A substituição do Estado de Bem-Estar Social por políticas neoliberais teve como efeito uma responsabilização do indivíduo por sua saúde. Isso significa o recurso a seguros privados neste campo, com certeza, mas todo um discurso em que o indivíduo – através de programas televisivos, de dicas de bem-estar, do que comer e o que não comer, de terapias alternativas de como ter boa saúde mental etc. que grassam nas mídias sociais, por exemplo – é educado no sentido da autodeterminação. Por tudo o que dissemos acima, no campo da saúde mental, todavia, essa autodeterminação é irrealizável se tivermos em conta a forma como o Complexo Médico-Industrial da Saúde Mental estrutura as opções consideradas racionais, viáveis de se obter bem-estar. Num sentido político mais amplo, é possível dizer que o indivíduo é convocado para a democracia – convocado por um apelo à sua responsabilidade cívica, à sua subjetividade – ao mesmo tempo em que a racionalidade das decisões políticas nos ensina o pragmatismo de entender que essas decisões transcendem a escala local, ao que podemos fazer como indivíduos ou comunidade.
Uma conclusão parece apontar para uma crise na própria ideia de subjetividade mediante a qual a modernidade formulou diversas e importantes estratégias biopolíticas. Foucault, por exemplo, nos falava que o Panótico de Bentham era o paradigma de constituição desta subjetividade. Creio que é preciso entender, entretanto, que o discurso da subjetividade sempre foi um discurso de crise – talvez com a exceção do pensamento utilitarista que verdadeiramente acreditava num sujeito autocentrado. É mediante a crise, e a aporia da potência-impotência, precisamente, que a subjetividade, empobrecida e diuturnamente convocada pelo consumo e pela aceleração, resiste como ideia-chave do atual dispositivo psicofarmacológico.




[1] Talvez seja útil lembrar que a proposição segundo a qual o capitalismo leva à animalização pode ser encontrada já nas teses que Marx oferece acerca do processo de automatização promovido pela industrialização. Apenas uma vida animalizada, reduzida ao mero funcionar biológico, isto é, a vida do proletário, pode ser automatizada convertida em procedimentos mecânicos, exteriorizada e interiorizada sob a forma de um automatismo. Os Manuscritos Econômicos-filosóficos estão repletos de considerações que reforçam essa interpretação.
[3] Kroenke et al. Fonte: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1495268/; acessado em 26/02/2014.
[4] Inibidores de serotornina.