terça-feira, 17 de maio de 2016

Sofrimento e Silêncio: uma discussão acerca da saúde mental na contemporaneidade a partir do avanço da Psicofarmacologia (versão preliminar) PARTE 2



Jonatas Ferreira


De acordo com Foucault, a realidade do capitalismo é a mobilização constante da vida biológica, o estímulo diuturno para que falemos, confessemos, ou seja, o investimento constante na construção de interioridades que já nasçam ligadas às dinâmicas econômicas, aos dispositivos de poder disponíveis. Para ele, concebido como tecnologia da subjetivação, o biopoder não faz calar. Pelo contrário, solicita a confissão, o tagarelar constante, o que possibilita a administração dos corpos e das populações. Esse confessar constante diante de psicólogos, educadores, assistentes sociais seria parte do próprio dispositivo mediante os quais se produz interioridade e subjetividade. Além disso, o biopoder seria uma tecnologia de proliferação da vida biológica e, em sua positividade, não possui uma dinâmica marcadamente tanatológica. Giorgio Agamben, a partir do Homo Saccer, como sabemos, ganhou grande atenção nas ciências sociais por contestar este último pressuposto das formulações foucaultianas sobre dinâmicas políticas contemporâneas. Para ele, devemos matizar a ideia de uma positividade das dinâmicas biopolíticas, ou seja, que elas sejam marcadas pela mobilização e proliferação da vida, e perceber também uma dimensão tanatológica que lhe é intrínseca. O campo de concentração, segundo Agamben, é um exemplo limite, não um acidente, do quão necessário é considerarmos essa dimensão.

Em linha com as ponderações agambenianas, acredito que devemos também afirmar que a administração política e econômica da vida biológica requer um tipo particular de silenciamento. Se de fato a comunicação, a tagarelice da sociedade em rede, deve ser compreendida como quintessência de nossos envolvimentos culturais e técnicos, parece que essa perspectiva implica o amesquinhamento de possibilidades linguísticas, existenciais mais amplas. Ali, como nos exemplos que viemos arrolando, não se trata mais de um poder sobre a vida que teria implicações necessariamente subjetivadoras, pois a própria subjetividade entendida como condição mais econômica e eficiente de exercer controle político – mediante um controle de si - é posta em um tipo curioso de suspensão. O recurso constante que as sociedades liberais fazem à responsabilidade subjetiva com relação ao próprio corpo, à própria saúde, por exemplo, parece se chocar com o sentimento de estupor, de impotência que os indivíduos vivenciam ao se confrontarem com os poderosos vetores econômicos e políticos globais. Byung-Chul Han captou bem esse clima cultural ao afirmar que a imunologia se esgotou como campo ao qual recorremos para coletar metáforas que nos ajudem a pensar nos males contra os quais precisamos investir em uma coerência interna - em oposição a ameaças externas, 'virais', 'bacteriológicas'. No mundo descortinado por Foucault, a ideia de subjetividade podia ser pensada nestes termos: como busca de manutenção de uma verdade interna contra as adversidades da alteridade. Porém,
“De um ponto de vista patológico não é o princípio bacteriano nem o viral que caracterizam a entrada no século XXI, mas, sim, o princípio neuronal. Determinadas doenças neuronais, tais como a depressão, o transtorno por défice de atenção e hiperatividade (TDAH) ou certas perturbações de personalidade – transtorno de personalidade borderline (TPB) ou síndroma de burnout (SB) – descrevem o panorama patológico do século XXI” (Han, 2014, p. 9)[3].
No campo da prática médica, a obsolescência da subjetividade parece também marcante. A anamnese de um paciente que recorre à Psiquiatria contemporânea, para ser catalogado como portador de um transtorno bipolar, de uma fobia ou de uma síndrome de pânico, passa por uma redução comunicacional do seu sofrimento a um conjunto de sintomas que podem ser mapeados com clareza e de forma não ambígua. Essa não ambiguidade, simplificação, a oferta de diagnósticos supostamente objetivos, parece constituir sua força política. Numa sociedade da dissolução e da "aceleração da aceleração", muitas vezes ser enquadrado, catalogado é um conforto, uma âncora contra o vendaval dessa história intensa. Nesse caso, os processos de significação do sofrimento parecem ser ofertados de fora para dentro, e não o resultado de um investimento em si, como comumente ocorre quando analisamos tecnologias disciplinares, e que Foucault julga ser o caso das psicologias em sua totalidade.

Avancemos sobre o sentido desse processo. Ao se debruçar nos pressupostos epistemológicos da biologia moderna, Canguilhem (1977), mais uma vez nos oferece subsídios importantes. Permitam-me o que agora parecerá um pequenos excurso. Para Canguilhem, a ideia da vida como máquina que se autorregula é um divisor de águas na história da biologia. O modelo de compreensão da vida pelos biólogos, a partir do século XIX, passa por conceber o organismo vivo como “usina química inteiramente automática”, ou seja, entendê-lo como mecanismo de eficiência virtualmente perfeita. A máquina, por seu turno, passa a ter no organismo autorregulado um ideal de funcionamento. O que determina tal eficiência e perfeição? “Ajuntemos enfim que a superioridade dessas funções orgânicas sobre as funções tecnológicas análogas é reconhecida, senão em sua infalibilidade, ao menos em sua confiabilidade, e na existência de mecanismos de detecção e de retificação disso que os bioquímicos nomeiam os erros e as falhas da reprodução” (Canguilhem, 1977, p. 123; os itálicos aqui são meus).

Interessa a Canguilhem m entender o sentido da existência da ideia de normalidade no corpo teórico da biologia. Parece clara a importância da regulação produzida pela ideia de normalidade biológica, que é transferida da biologia para a medicina e, contemporaneamente, para a Psiquiatria e para a Psicologia de base cognitiva. Mas a metáfora que garante a inteligibilidade do organismo vivo – entendido como máquina confiável, capaz de identificar e retificar bioquimicamente suas falhas – interessa-nos não menos. Trata-se de uma metáfora que antecipa em alguma medida a ideia de organismo cibernético, de um organismo que se debate contra a tendência a desorganização da matéria, e que para tal procura identifica os seus erros, falhas de adaptação em um ambiente dado. Essa coincidência epistemológica tem consequências cruciais, pois permitirá pensar a própria integração e adaptação do organismo vivo aos circuitos técnicos informacionais, com suas exigências por celeridade, intensificação etc. Não seria precisamente essa a lógica que preside ao dispositivo psicofarmacológico? Afinal, não se trata de garantir o funcionamento dos indivíduos num contexto de aceleração constante? Que a Psiquiatria não possa identificar a base fisiológica que determina as patologias mentais com a segurança que o podem fazer outros campos da medicina, parece não ser tão importante quanto a ideia de que nosso psiquismo é algo como uma usina química capaz de se autorregular e corrigir os seus próprios erros de expressão. Quando essa autorregulação não ocorre, caberia à intervenção médica agir de modo a reparar, compensar a falha orgânica. O organicismo dessa concepção é, portanto, extremamente revelador em seu conservadorismo, pois para ela o meio ambiente social é algo dado, algo ao qual teremos necessariamente de nos adaptar.

Em “La formation du concept de régulation biologique aux XVIIIe et XIXe siècles” (1977), Canguilhem nos apresenta outras ideias importantes. De acordo com ele, o diálogo, a mútua influência entre as biociências, por um lado, e a física, a cosmologia, por outro, tem longa data. “O termo [regulação] foi introduzido na psicologia por via de metáforas, em uma época em que as funções que ela designa estavam bem distantes de ter suscitado os estudos comparativos de ondem saíram uma teoria geral das regulações e da homeostase orgânica, apta por seu turno a fornecer metáforas inspiradoras de racionalização rigorosas, de onde deveria nascer um dia a cibernética” (p. 82). Aqui valeria uma pequena nota sobre a lógica que a cibernética, a teoria da informação, a dinâmica técnica que elas aportam à sociedade capitalista como um todo, e a produção de um dispositivo biotecnológico e biopolítico em seu seio. Ouçamos Simondon a esse respeito:

Enfim, no nível dos conjuntos técnicos do século XX, o energetismo termodinâmico é substituído pela teoria da informação, cujo conteúdo é eminentemente regulador e estabilizador: o desenvolvimento das técnicas aparece como uma garantia de estabilidade. A máquina, como elemento do conjunto técnico, torna-se aquilo que aumenta a quantidade de informação, o que faz crescer a neguentropia, o que se se opõe à degradação da energia: a máquina, obra de organização, de informação, é, como a vida e com a vida, o que se opõe à desordem, ao nivelamento de todas as coisas que tendem a privar o universo do poder de mudança (Simondon, 2012, p. 17-18).[4]

A noção de regulação se introduz nas ciências mecânicas e nas ciências da vida mediante uma discussão religiosa acerca de como Deus mantém a ordem em sua criação. Leibniz e Newton apresentam a esse respeito posições polares. O primeiro propõe a existência de um Deus Regulador que atua ao longo do tempo, contornando problemas, reconduzindo o mundo criado recorrentemente para a ordem. O princípio regulador atua, por assim dizer, de modo histórico posto que age sobre a contingência. Newton, por seu turno, acredita num princípio de regulação intrínseco à criação que desobrigaria Deus de uma manutenção histórica do existente. Importante dizer que a medicina dos séculos XVII e XVIII apropriou a mecânica newtoniana a partir deste pressuposto mais geral do pensamento lebniziano - na Teodicéia, Leibniz claramente associa essa discussão à própria possibilidade de entender o sofrimento no mundo, ou seja, o padecimento é proposto como mal menor de um Deus sempre previdente e no controle das coisas. Importante que essa discussão mobilize sempre uma imagem bastante política, nomeadamente, a do monarca às voltas com a implementação infinita de sua potência. É neste sentido que se impõe a história como questão de um poder que regula antecipadamente, ou seja, que estabelece na criação estratégias intrínsecas de autocorreção.

Retornemos. Assim, é possível repetir aqui Canguilhem: “Na medicina, a experiência vivida da doença pelos doentes e a cura parecem sugerir por si própria um poder orgânico de restituição e reintegração” (p. 88). O princípio de regulação e cura é interno ao organismo. Uma das consequências desse tipo de perspectiva científica é fornecida por Joanna Bourke, em Story of pain. Mesmo quando alguns primeiros anestéticos já estavam disponíveis no século XIX, alguns médicos preferiam confiar na sabedoria da regulação natural, preferiam não interferir quimicamente para aliviar o padecimento (Bourke, p. 275-277). Também é curioso o fato de Canguilhem reservar na história do conceito de regulação nas ciências da vida um lugar especial a Auguste Comte, precisamente por, num humor lamackiano, este propor que a vida e o mundo social são regulados pelo meio externo, caso contrário, perecem. A passividade do interno com respeito ao externo é um legado positivista digno de nota. Sobretudo dado o tema que analisamos neste ensaio. Vale a pena citar, neste sentido, Comte mesmo que, aqui, de segunda mão: “Existe loucura quando «o fora não pode regular o dentro» Syst. Pol. Pos., III, 20(2)” (p. 94).

A consequência mais profunda que a aproximação entre ciências da vida e cibernética parece implicar está contida não na ideia de um corpo vivo que deve ser levado à ordem, à normalidade, à homeostase pela intervenção médica, mas na compreensão de que este corpo está em constante risco de adoecimento e que portanto deve ser cronicamente tratado para que tal equilíbrio seja viável. Afinal a cibernética é a ciência do timoneiro, do controle como uma tarefa interminável. O investimento que a indústria farmacêutica faz em remédios que devem ser cronicamente tomados, mesmo que haja apenas o risco de o paciente desenvolver uma doença determinada, para além do sentido financeiro, que faz essa indústria se desinteressar por produzir medicamentos que curem de fato, como vacinas, tem esse sentido cultural mais amplo. A esse respeito convém dar atenção às palavras de Joseph Dumit: “Concluí que o crescimento contínuo e subjacente em drogas, doenças, custos, e insegurança é um entendimento relativamente novo de nós mesmos como sendo inerentemente doentes. A saúde passou a ser definida como a redução do risco” (2012, p. 12). A doença mental, seguindo essa lógica, deve ser entendida amplamente como o risco de não funcionar.

Mas a ideia de risco, que Dumit apropria dos trabalhos de Ulrich Beck e de Elizabeth Beck-Gernsheim, aponta para um componente temporal que leva necessariamente à ansiedade, ao temor com respeito ao que está por vir, como traço cultural da tecno-sociabilidade. Trata-se de um diuturno ocupar-se com o futuro. A vida propriamente dita, para nós, indivíduos imersos no capitalismo hiperacelerado, num mundo da perecibilidade e da vertigem, portanto, ainda haverá de chegar. Por isso estamos sempre envolvidos em aperfeiçoarmos nossos corpos e humores.

Aperfeiçoamento, como suscetibilidade, é orientado para o futuro. Virtualmente qualquer capacidade do corpo e alma humanos – força, resistência, atenção, inteligência e a própria duração da vida – parece potencialmente aberta à melhoria e intervenção tecnológica. Claro, humanos, em quase todos os lugares, tentaram melhorar suas identidades corpóreas […]. O que é novo, então, não é a vontade de melhoria, ou a melhoria em si. Em parte, eu suspeito, o sentimento de novidade e inquietação surge de um sentido que nós estamos mudando, nas palavras de Adele Clark e seus colegas, «da normalização para a personalização [customization]» (Rose, 2007, p. 20)”


Funcionar, em todo caso, é um critério decisivo da necessidade de intervenção terapêutica. Todos sabemos que algumas profissões demandam hoje mais investimento do que a maioria dos indivíduos poderia suportar, sem o auxílio de muletas psicofarmacológicas. A ideia de funcionalidade, é preciso que se diga, apresenta essa significação dupla: funcionar é tanto a necessidade de um sistema em aceleração, como a necessidade do indivíduo capturado em uma dinâmica empobrecedora e veloz. Como critério científico que orienta não apenas as classificações de sofrimentos psíquicos, mas a medicalização desses mesmos sofrimentos, a ambiguidade que a palavra funcionalidade alberga deve ficar na penumbra. O humanismo se escandaliza diante dos cenários abertos pela naturalização deste esquecimento. Julia Kristeva parece traduzir este sentimento quando afirma:
“Dois grandes confrontos, em minha opinião, aguardam a psicanálise de amanhã quanto ao problema de organização e de permanência do psiquismo. O primeiro é sua competição com as neurociências: “o comprimido ou a palavra”, sendo esta desde já a questão do ser ou do não ser. O segundo é a prova à qual a psicanálise é submetida pelo desejo de não saber, que se junta à aparente facilidade oferecida pela farmacologia, e que caracteriza o narcisismo negativo do homem moderno” (Kristeva, 1993, p. 39-40).


Bibliografia

CANGUILHEM, Georges. 2005. Escritos sobre a Medicina. Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária.
-------------------------. 1977. Idéologie et rationalité dans l’histoire des sciences de la vie. Paris, Librarie Philosophique J. Vrin.
-------------------------. 2006. O normal e o patológico. Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária.

Crary, Jonathan. 2014. 24/17. Le capitalism à l’assault du sommeil. Paris, Zones.


Fédida, Pierre. 2002. Dos Benefícios da Depressão. Elogio da psicoterapia. São Paulo, Editor Escuta.
---------------------. 2003. Depressão. São Paulo, Editor Escuta.

Han, Byng-Chul. 2014. A sociedade do cansaço. Lisboa, Relógio D’Água.

KEHL, Maria Rita. 2010. O tempo e o cão. São Paulo, Boitempo.

KRISTEVA, Julia. 1993. As novas doenças da alma. Rio de Janeiro, Editra Rocco LTDA.

ROSE, Nikolas; M. Abi-Rached. 2013. Neuro. The new brain sciences and the management of the mind. Princeton and Oxford, Princeton University Press.
-------------------. 2007. The Politics of Life Itself. Biomedicine, power, and subjectivity in the twenty-first century. Princeton and Oxford. Princeton University Press.




[2] “In America, medication is becoming almost as much a staple of childhood as Disney and McDonald’s. Kids pack their pills for school or college along with their lunch money. Some are taking drugs for depression and anxiety, others for attention deficit hyperactivity disorder (ADHD). The right drugs at the right time can save young people from profound distress and enable them to concentrate in class. But some adolescents, critics say, are given medication to mask the ordinary emotional turmoil of growing up; there is a risk that they will never learn to live without it”. Fonte: http://www.theguardian.com/society/2015/nov/21/children-who-grow-up-on-prescription-drugs-us. Acessado em 27/04/2016.
[3] O que caracteriza esse novo panorama? “Não estamos já perante infeções, mas, sim, enfartes, originados não pela negatividade do outro imunológico, mas, sim, por um excesso de positividade” (Ibid.). Isso não significa que a metáfora da coerência imunológica não tenha adeptos ou apelo, mas que uma nova dinâmica cultural parece se impor. O tipo de sofrimento de que fala Han, pois, é caracterizado por um excesso de positividade, algo de que já nos falava Jean Baudrillard em textos como A transparência do mal ou Cultura e Simulacro.
[4] Aqui talvez valesse a pena observar que a ideia de cibernética que orienta a contribuição teórica de Simondon opõe-se aos teóricos da teoria da informação em dois aspectos: ele considera a ideia de informação de que partem aqueles teóricos como extremamente redutora, a qual resulta na produção do autômato como ideia técnica reguladora, e ao fato de que, para ele, a abertura do aparato técnico cibernético, sua capacidade de emular o próprio ser vivo em sua indeterminação deveria ser tomado como ideal da cibernética.

2 comentários:

Tâmara disse...

Ficou enxutíssimo seu texto, Jonatas. Gostei muito. E estou precisando reler e refletir melhor sobre sua pista de exteriorização e do legado positivista sobre a passividade do interno...Por alguma razão, isso me remete à virada epistemológica de gente como Philippe Descolas ou Viveiros de Castro...Porque em meu senso comum, tendo a simpatizar com uma perspectiva de continuidade entre exterior e interior.

Le Cazzo disse...

Obrigado pelo comentário, Tâmara. Pena ter levado seis meses para o ler... Beijo.