sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Informação, Conhecimento e Poder (Maria Lúcia Maciel e Sarita Albacli, org.)



Olha, que boa notícia! Maria Lúcia Maciel e Sarita Albagli conseguiram junto à Garamond disponibilizar o Informação, Conhecimento e Poder: mudança tecnológica e inovação social, em formato pdf, na Internet. O livro conta com contribuições de Sandra Braman, Yann Boutang, Giuseppe Cocco, Dan Schiller, Maria Nélida Gómez, Geert Lovink, Jonatas Ferreira, Luiz Pinto e Maria Eduarda Mota Rocha, das próprias organizadoras, entre outros autores.

Para dar uma olhada e conferir, acesse o link.

domingo, 17 de janeiro de 2016

Sobre o amor romântico: algumas reflexões a partir de Derrida e Levinas (preliminares)



Jonatas Ferreira
Devo ao livro de John Caputo, Deconstruction in a Nutshell, a constatação em alguma medida indireta de que existiria um vínculo teórico entre Derrida e Levinas que nos remeteria diretamente ao tema do amor e da ética no amor. Nunca havia pensado sobre a relevância da obra de Derrida para pensar esse tema e, no entanto, após ler o livro de Caputo, essa possibilidade pareceu-me muito atraente. Mas aqui cabe algum cuidado, para que, cumprindo o dever da gratidão, não procure validar minhas conclusões com a sombra da autoridade intelectual do filósofo e teólogo. De fato, suas considerações acerca de temas como “comunidade”, “hospitalidade” e “identidade, tal como apresentados num capítulo central do Deconstruction in a Nutshel, parecem levar mais diretamente a discussões acerca de ética e sociabilidade, ética e política de um ponto de vista amplo. Pouco autorizaria a inferir dali algo sobre amor e, menos ainda, sobre amor romântico, como pretendo. E, no entanto, o tema do amor como elemento ontológico, como possibilidade primeira da abertura para o outro está presente em todas estas outras formulações. 

A explanação de linhas centrais do pensamento derridiano, realizada por Caputo, ao tratar de tais temas, cumpre a promessa de facilitar a leitura da obra deste autor que Cynthia Hamlin reputa como um dos mais chatos e abstrusos que já existiram – com tantos candidatos na sociologia, eu não sei o motivo de não privilegiarmos nossos próprios pares. De qualquer forma, Caputo faz um trabalho de mestre ao lançar luz sobre o gosto derridiano pelos paradoxos, pelas aporias. E o faz a partir da discussão de temas que interessariam, em princípio, bem mais à sociologia política do que parece contribuir para a discussão que pretendo trazer neste Cazzo.

Vejamos, pois, a partir de Caputo, o que Derrida tem a nos oferecer acerca de ideias como comunidade, hospitalidade, identidade. Para ele, é preciso perceber que se vamos continuar mobilizando a ideia de comunidade em nossas discussões políticas e éticas, é necessário atentarmos para a forma como essa ideia vem sendo elaborada no ocidente - e isso bem antes que Ernst Troeltsch a definisse a partir da ideia de unidade sentimental, de herança comum de valores compartilhados. Consideremos a esse respeito a oposição entre civilizados, e bárbaros, tão cara ao pensamento grego. Para Derrida, o próprio esclarecimento etimológico da palavra comunidade indica que no seio do comum - daquilo que nos permite falar em uníssono, isto é, da «fusão» - pulsaria a beligerância, o conflito, o agonismoOs ecos mais arcaicos desta palavra ofereceriam evidência para essa postulação: 
«O que ele não gosta na palavra comunidade é sua conotação de "fusão" e "identificação". No final das consta, comunhão é uma palavra para uma formação militar e uma prima próxima da palavra "munição"; estar em comunhão é estar fortificado de todos os lados, construir uma "defesa" comum (munis), tal como uma muralha é posta em volta de uma cidade para manter um estranho ou estrangeiro do lado de fora» (Caputo, p. 108) [1]
Já aqui nos parece que a influência da ética levinasiana se instaura poderosamente. A alteridade não é aquilo que eu devo procurar extinguir, negar, mas aquele, ou aquela, que instaura a possibilidade de minha própria existência. A radicalidade do pensamento derridiano nos remeteria, para além do humanismo de Levinas, a suas meditações sobre a alteridade do animal, de como ele se constituiu como o absolutamente outro no pensamento ocidental, e ao mesmo tempo aquilo que resta por pensar, o desafio filosófico por excelência. É a radicalidade da presença da  alteridade, mesmo quando a reprimimos, que se coloca como desafio para pensarmos processos identitários, comunitários. Neste caso específico, ou seja, nas reflexões que ele oferece em O animal que logo sou, para além das reflexões foucaultianas e agambenianas sobre a centralidade do bios na política e sociabilidade modernas, ou, mais amplamente, da política e cultura ocidentais, o animal permanece como alteridade absoluta que nos acena e para o qual nos fechamos. A região limítrofe em que o outro conclama meus próprios processos identitários é a zona obscura onde Derrida propõe que pensemos[2].

Se a deconstrução pode se instalar como pensamento desafiador, como algo que nos diz respeito, sem que seja propriamente bem-vindo, em sua abstrusão, é por aceitar de frente a necessidade ética de ouvir o clamor deste outro, sua face, diria Levinas. E isso não é fácil. Tomemos um exemplo. Se uma política antifascista, de recusa ao ódio, pode ser instalada, como nos lembra de modo algo irônico Marcia Tiburi[3], é preciso poder conversar com o ódio e com o fascismo, sem cancelarmos o outro como algo já dado, já sabido, e sem nos perdermos em qualquer forma de conivência, de leniência diante do autoritarismo, da intolerância. 
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A questão é: a deconstrução não recusa a ideia de comunidade por identificar, no seio da vontade de fusão, uma vontade de negação do outro, no seio da hospitalidade, a hostilidade, como se tivéssemos aqui apenas um problema de higienização lógica. Trata-se antes de entender que (i) o outro é o que há de mais bem-vindo (quem mais poderia sê-lo senão o outro, a outra em sua alteridade?), mas é também o mais desafiador e que (ii) a ideia de comunidade deveria estar aberta a essa evidência e dificuldade política. No caso controvertido que nos traz Tiburi, trata-se para mim de poder discutir o fascismo não como algo que não me diz respeito, algo que só se coloca nas práticas alheias, mas antes que me envolve de modo radical. 

Não se trata, é preciso dizer, de capitular por princípio diante da outra pessoa, do outro grupo ideológico. Tampouco de negá-la a priori. Não se trata de escamotear de algum modo o conflito, mas antes encará-lo de frente. O outro em seu caráter desafiador é, antes, a possibilidade de que continuemos vivos e de seguirmos produzindo uma relação generosa com aquilo que nos mobiliza – o que no caso de alguém que por princípio recusa o diálogo, convenhamos, é um desafio incontornável, caso não percebamos que o fascismo nos diz respeito de modo mais fundamental.

Assim, a reivindicão de Derrida no sentido de buscarmos uma “comunidade sem comunidade” é, não apenas um desejo de postar seu pensamento em zonas de curto-circuito, em paradoxos vazios, mas um compromisso ético e político. Por isso mesmo, ele também procura sempre pensar as possibilidades abertas dentro, e não fora, da sua tradição, ali mesmo onde a ideia de comunidade se abre como um problema. Por isso mesmo as aporias do pensamento ocidental - as zonas limites do filosofar em que identidade e alteridade se encontram em confronto - constituem seu locus privilegiado de reflexão. Essas são zonas de “indecidibilidade”, campos em que toda decisão carrega sempre consigo o fantasma daquilo que está sendo excluído. E isso nos dá uma ideia do motivo pelo qual o tema da hospitalidade é também relevante neste contexto: 

«Há uma "auto-limitação" essencial construída dentro da própria ideia de hospitalidade, que preserva a distância entre o si mesmo e o estrangeiro, entre entre possuir nossa propriedade e convidar o outro para dentro de nossa casa. Assim, há sempre um pouco de hostilidade  em todo ato de hospedagem e hospitalidade, constituindo uma certa hostil/pitalidade”» (Caputo, p. 110). 
Essa ambiguidade é um tema, como sabemos, também psicanalítico. Freud já alertava acerca da agressividade que os gestos mais amorosos comportam, e vice-versa: sempre que o ódio se instalar, sempre que a negação do outro se fizer presente, é necessário que levemos em conta a possibilidade de fascínio que esse outro exerce.

A relação identidade-alteridade, que afinal é também o que discutimos até aqui, é um tema fenomenológico clássico. A própria intencionalidade de nossos processos cognitivos, como propõe Husserl, requer e só se torna possível pela aceitação das demandas que a alteridade nos faz. Essa é, aliás, a forma como Levinas percebe a influência da fenomenologia husserliana e Heideggeriana em seu próprio pensamento – ou seja, neste sentido, a consciência não é o elemento fundante da fenomenologia, mas o desafio que  a alteridade lhe lança. Heidegger, no entanto, para Levinas, é um pensador da casa, do próprio, da clareira, da lareira, da autenticidade. Derrida e Levinas, por outro lado, são pensadores do clamor ético do limite, do compromisso que sempre nos mobiliza eticamente em direção à alteridade, sem que nunca possamos atender a tal apelo de modo satisfatório. 

E, no entanto, é preciso enfatizarmos isso devidamente: «Quando eu digo "bemvindo(a)" para o(a) outro(a), "venha, cruze o meu umbral", eu não estou capitulando minha propriedadade ou identidade. Não me ponho na posição de khôra que dá boas-vindas a tudo como um receptáculo aberto. Se eu digo "Bem-vindo(a)!, não estou renunciando a meu domínio”. Dizer bem-vindo, portanto, não seria possível se realizássemos qualquer sonhos místico de fusão com o outro, com a outra pessoa. E mais adiante nós lemos: «Como tudo o mais na deconstrução, a possibilidade da hospitalidade é sustentada por sua própria impossibilidade; hospitalidade realmente só se põe a caminho quando "experimentamos" (o que significa viajar ou atravessar) essa paralisia (a incapacidade de se movimentar)» (Caputo, p. 111). Essa impossibilidade parece-nos a forma como o pensamento derridiano pensa a questão da transcendência, ou seja, entendendo-a como algo finito, sem uma resolução absoluta, essencial. A impossibilidade nos mobiliza aqui por que nela reconhecemos o trágico de nossa precariedade ontológica.

Eu diria então que o verdadeiro gesto ético, o reconhecimento da alteridade, só pode ser inaugurado quando tal impossibilidade nos coloca fora do terreno das decisões automatizadas, quando o decidir é perturbador, quando nossa identidade é posta em xeque nesta mesma decisão. Como tudo isso é diferente da ideia liberal de uma comunidade fundada na tolerância mútua de identidades auto-referentes! Etimologicamente, a palavra tolerar significa suportar pacientemente a carga… Derrida, por outro lado, “quer distinguir uma identidade impermeável, homogênea, idêntica a si mesmo, de uma identidade que difere de si mesma» (Caputo, p. 114). 

O verdadeiro gesto ético só surge quando a face do outro, da outra, surge em sua absoluta singularidade, quando as regras para julgá-lo, ou julgá-la, são insuficientes. Orestes, por exemplo, diante da decisão de honrar os compromissos com seu pai, ou com sua mãe, estava em uma tal situação. Ou, mais propriamente ainda, poderíamos nos reportar aos apuros em que se mete Sancho Pança ao ser colocado diante de uma decisão sobre a vida de alguém que, se executado, morreria inocente; poupado, viveria na impunidade de seu delito. A decisão sobre o indecidível na famosa passagem do Dom Quixote, tem um sabor derridiano: Na dúvida, na impossibilidade de uma decisão logicamente perfeita, Sancho pondera, deixe viver porque a vida de um ser humano, em sua singularidade, é maior que o compromisso com qualquer compromisso com o rigor lógico. A justiça, neste caso, não pode se abrigar na aplicação cega da lei. O verdadeiro gesto ético, assim, abriga-se em nossa precariedade diante da outra pessoa, de sua face. Estranho abrigo!

«”We” all require “culture”, but let us cultivate (colere) a culture of self-differentiation, of differing with itself, where “identity” is an effect of difference, rather than cultivating “colonies” (also from colere) of the same in a culture of identity which gathers itself to itself in common defence against the other” (Caputo p. 115).

Assim, também as considerações derridianas sobre a dádiva, que encontramos em livros como Donner la mort, e que são uma parte importante de sua ideia de justiça, funda-se no pressuposto de que o dom requer algo para além de qualquer possibilidade de contra-dom, algo que “não pode ser reapropriado”. O dom é aquilo que passa pela circularidade das trocas e que a excede, que supõe um tempo circular – em que o dado deve retornar até o seu doador - e que instala uma interrupção no seio desta circularidade. É isto que nos indica as seguintes linhas de Donner le temps: 
«La circularité ne devrait pas être nécessairement fuie ou condamnée, comme le serait une mauvaise repetition, un circle vicieux, un processus régressif ou sterile. Il faut, d’une certaine manièrebien sûr, habiter le cercle, tourner en lui, y vivre une fête de la pensée, et le don, le don de la pensée, n’y serait pas étranger» (Derrida, p. 20).
Algumas linhas abaixo, no entanto, temos: 
«Que partout où il y a du temps, partout où le temps domine ou conditionne l’expércience en general, partour où domine le temps comme cercle […], le don est impossible. Un don ne saurait être possible, il ne peut y avoir don qu’à l’instant où toute circulation aura été interrompu et à la condition de cet instant»[3] (Derrida, p. 21).
O que essas tensões implicam para pensarmos a ideia de justiça em Derrida em oposição à estabilidade e automatismo da lei? «This “idea of justice” seems irreducible in its affirmative character, in its demand of gift without exchange, without circulation, without recognition of gratitude, without circularity, without circulation and without rules, without reason and without rationality» (Caputo, p. 141). Para ele, uma dádiva que é retribuída, ou que é reconhecida como tal, já anula a si mesma neste ato: pois qual seria o dom, o sobrevalor, o excesso necessário de algo que é reconhecido e, como tal, retribuído? 

Há no pensamento francês uma tradição de tentar pensar o lugar do excesso nas economias humanas. Isso é o que temos na economia erótica de que nos fala Bataille, ou nas reflexões de Foucault sobre a loucura, e é também o que se apresenta nesta ética do dom que nos propõe Derrida. O que se espera da dádiva é que ela seja excessiva em relação à racionalidade das trocas. Esse seria seu sentido ético, bem próximo ao erotismo tal como concebido por Bataille. Uma relação amorosa reduzida a um contrato de obrigações e contra-obrigações precisas perder-se-ia numa fria relação contratual. «The gift “calls” upon an expenditure without reserve, for a giving that wants no payback, for distribution with no expectation of retribution, reciprocity, or reappropriation». A ética do dom, assim, não pode buscar a soma zero da retribuição. Por isso mesmo, a dádiva em si é impossível. Mas é a possibilidade dessa impossibilidade que nos mobilizaria eticamente diante da presença do outro, da outra. 
«The gift is our passion. “Economy”, on the other hand, denotes the domain of presences, of presents, of the commercial transactions, the reasonable rules, the law of customary exchanges, the plans and projects, the rites and rituals, of ordinary life and time» (Caputo, p. 145).
Derrida não quer negar a economia e as trocas proporcionais. Pelo contrário, ele apenas entende que nossos próprios impulsos narcisistas, que procuram afirmar o eu como destino de todos as nossas “despesas” (aqui no sentido batailleano), que o retorno de nossos investimentos libidinais, só fazem sentido diante de uma abertura fenomenológica que tem como fundamento a (im)possibilidade da dádiva, a presença do outro, da outra. Assim: 
«Derrida thus points to a double injunctive, which is a bit of a double bind (that’s a surprise), both to give and to commerce, to love God and mammon. He is saying at one and the same time; (1) Give, but remember how to gift limits itself. Because there never is a gift (don), the gift is the impossible that we all desire; because it annuls itself the instant it would come to be, if it ever does, the gift is what we most want to make present. The gift is our passion and our longing, what we desire, what drives us mad with desire, and what drives us on» (Caputo, p. 147).

Neste ponto, podemos passar a tratar mais diretamente o tema sobre o qual prometemos discorrer no começo deste texto. Som na caixa!


É em direção à ambivalência que há entre narcisismo e dádiva que chamaríamos atenção, ou seja, à inexistência de uma «distinção clara entre dádiva e economia», entre «narcisismo e não narcisismo, mas apenas certos graus, gradações, ou economias do narcisismo”. É neste terreno precário, indecidível, que a ideia de uma quase-identidade se torna possível como âmbito de uma ética amorosa. Para Derrida, então, é necessário ver essas gradações que tornam o amor-próprio «mais ou menos egoísta» (Caputo, p. 148). 
«We are all more or less narcissistic, for that is what the agente/subject is. […] The agent, Aristotle and the medieval said, acts for its own good. If the agent expends all its energies on the other without return, that is after all what the agent wants, and that how the agent gets her kicks». 
Desde Freud, sabemos que o narcisismo é um investimento, uma estrutura, fundamental da psique humana: sem ela, sem a descontinuidade que ela instaura (como diria Bataille) não seria absolutamente possível qualquer amor, erotismo, qualquer impulso em direção ao outro, à outra, qualquer excesso. Porém o que diz Derrida é mais radical, mais lacaniano (mais levinasiano, certamente): sem o outro, a outra, mesmo o narcisismo e o investimento numa economia da troca e da recuperação do investimento seria impossível. Se é possível imputar à ideia de erotismo em Bataille um desejo místico da continuidade, indiferenciação, entre os seres, um desejo orgiástico, uma certa pulsão de morte, para Derrida é a partir da constatação  da existência paradoxal entre impulsos de continuidade e descontinuidade – ou seja, entre um impulso generoso com respeito à alteridade, por um lado, e nossa própria certificação na descontinuidade, na subjetividade autodelimitada, nosso próprio «narcisismo ininterrupto», «pusilânime», por outro - que devemos pensar nossa relação com a outra pessoa, ser. Essa relação ficaria mais evidente se a definirmos como uma relação amorosa, isto é, como investimento em direção à outra pessoa, a algo não dado, excessivo e, ao mesmo tempo, em direção a algo que nos é o mais próximo.

Isso não significa, evidentemente, que consigamos nos manter dentro daquilo que é nosso chamado apelo ético, embora mesmo ao negá-lo não consigamos deixar de parar a sua pulsação. As frustrações amorosas promovidas por uma cultura narcisista são uma evidência nessa direção. Não costumo citar Bauman, e não gosto muito do Amor líquido, e pelo que saiba Bauman não está nem um pouco preocupado com isso. Há ali, no entanto, uma observação que nos diz respeito diretamente. A partir de Benedict Anderson e Richard Sennett, Bauman fala da transformação de categorias políticas em psicológicas, da transmutação da ideia de uma comunidade política para uma “comunidade imaginada” a partir das emoções. Dada a estrutura deste texto, é preciso prevenirmos o leitor ou leitora de que não pretendemos corroborar de modo inocente com esse tipo de transmutação, ou seja, procurar um fundamento sentimental comunitário como solução à dificuldade de discussão política do âmbito social. 

Ocorre-nos, entretanto, que uma hipertrofia da subjetividade, e de estruturas narcisistas de reprodução da vida comunitária, parecem ocorrer precisamente quando a subjetividade, quando o indivíduo narcisisticamente investido se apresenta como uma impossibilidade. Ora, quem em sã consciência, poderia falar hoje da viabilidade política, cultural, de um autocentramento subjetivo, tal como o concebeu o pensamento liberal? É essa impossibilidade aliás que marca certa angústia, nostalgia, que percebemos em obras como Corrosão do Caráter, de Sennett, ou em toda a obra de Paul Virilio. E no entanto é o narcisismo radical de um sujeito autocentrado que procura a todo custo maximizar o seu prazer, o controle de seus investimentos eróticos como um todo, com que a sociedade do consumo nos acena diuturnamente. Extenuamo-nos para realizar um gozo que não é nosso, mas que afinal aparece como se fosse.

O outro lado deste impulso é algo paradoxal com respeito a este desejo de retorno seguro de investimentos libidinais. O amor romântico parece também se investir como desejo de encontrar unidade, consenso, coesão, precisamente quando expectativas de construção política da comunidade se esvaem. O ponto aqui que merece reflexão, naturalmente, é tanto a ideia de amor romântico que temos em mente quanto a noção de comunidade em questão. Deve estar bastante clara com respeito a esta última que a suposição de um consenso identitario está longe daquilo que temos em mente. A nostalgia baumaniana, sennettiana e viriliana, portanto, não nos dizem diretamente respeito. 

Com respeito ao amor romântico, prosseguiremos o nosso texto através do auxílio de Levinas, que acreditamos, como Caputo, constituir uma referência fundamental para entender a ética derridiana. Para tal, nos valeremos das entrevistas que ele concede no Ética e Infinito. Ali ele realiza um apanhado abrangente de sua obra. Interessante perceber nessas entrevistas o caminho que Levinas faz ao lado da fenomenologia de base ontológica de Martin Heidegger, e, a partir de certo ponto, para fora da solidão da existência, do “há”, e em direção a uma ética fundamentada no absoluto da alteridade – num certo gesto religioso que comporta essa profissão de fé. Assim: «A solidão era um tema “existencialista”. A existência descrevia-se na época como o despertar da solidão, ou como o isolamento na angústia» (Levinas, p. 49). Os termos em que a diferenciação levinasiana com respeito à fenomenologia de base “existencial” se anuncia, já em De l’existance a l’existant, não deixa dúvidas sobre o seu sentido, sua direção: trata-se aqui de uma ética do amor, não importa quão desgastada essa palavra soe, com toda à sua carga de moderno subjetivismo. «Desconfio da palavra “amor”, que está estragada, mas a responsabilidade por outrem, o ser-para-o-outro, pareceu-me desde esta época parar o rumor anónimo e insiginificativo do ser. É sob a forma de uma tal relação que me surgiu a libertação do “há”» (Ibid.). Isto é, libertação com respeito ao “há”, ao seu confinamento em algum modo narcisista.

Este outro que é o meu destino ético é alguém que eu conheço, mas que não pode ser cingido em meu conhecer, antes o desafia. É preciso por certo conhecer o outro, a outra, a quem se ama. No entanto, uma ética amorosa pararia cedo demais, abortada, nestes limites. Toda tentativa de conhecer, mapear, de desnudar o outro, a outra, é, para Levinas, uma tentativa também de dominá-lo, de dominá-la: é necessário pois aceitar a irredutibilidade da outra pessoa aos meus processos cognitivos. Nunca verdadeiramente saberemos onde o outro em sua alteridade esteve, está, pretende estar… Segundo esta ética amorosa, a outra pessoa é inesgotável; nada aqui pode anunciar, portanto, o conforto de uma harmonia entre almas tal qual anunciado no Banquete, ou um retorno a nossa essência. E se a alteridade marca assim os nossos processos de identificação, amorosos, estaremos para sempre à deriva.

Levinas, assim, força seu caminho para os lados da fenomenologia e, nesse gesto, influencia toda a aporética do pensamento derridiano – no que pese o fato de Derrida postar o seu gesto ético no terreno indecidível entre o conhecer e o abrir-se irredutivelmente, entre Deus e Mamon, entre a dádiva absoluta e a troca econômica, como dissemos acima. Para Levinas (p. 53): «O conhecimento mais audacioso e distante não nos põe em comunhão com o verdadeiramente outro; não substitui a socialidade: é ainda uma solidão». O gesto ético, dessa perspectiva, é também a aceitação de um tempo aberto em que a outra pessoa pode “surpreender” sempre. Dissemos “surpreender, e, todavia, essa palavra ainda não é adequada, na medida em que ela se define como um certo luto/júbilo da cognição: «O livro [Le temps et l’autre] mostra, em primeiro lugar, na relação com o outro, estruturas que não se reduzem à intencionalidade. Põem em dúvida a ideia husserliana de que a intencionalidade representa a própria espiritualidade do espírito. E o livro procura compreender o papel do tempo nesta relação: o tempo não é uma simples experiência da duração, mas um dinamismo que nos leva para outro lado diferente das coisas que possuímos» (ibid.). O desejo de posse, neste sentido, é um desejo de parar esse tempo em que o outro pode não comparecer, pode não me atender, mas tal abertura temporal é a única possibilidade de que a alteridade da outra pessoa continue viva e inesgotável. Curioso como essa visão aparentemente idealizada do amor pode afinal se apresentar como não idealista.

«Totalmente em oposição ao conhecimento que é supressão da alteridade e que, no “saber absoluto” de Hegel, celebra a “identidade do idêntico com o não-idêntico”, a alteridade e a dualidade não desaparecem na relação amorosa. A ideia de um amor que seria uma confusão entre dois seres é uma falsa ideia romântica. O patético da relação erótica reside no facto de serem dois, e de o outro ser aí absolutamente outro» (Levinas, p. 58).
Para quem pensa que o irracionalismo é a consequência necessária dessa ética amorosa, Levinas esclarece: «O não-conhecer não deve aqui compreender-se como uma privação do conhecimento. A imprevisibilidade só é a forma da alteridade relativamente ao  conhecimento. Para este, o outro é essencialmente o que é imprevisível. Mas a alteridade, no eros, não é sinónimo de imprevisibilidade. Não é como um malogro do saber que o amor é amor» (Ibid.). É para além desse malogro que o gesto amoroso parece se colocar, segundo essa perspectiva, ou seja, para além de uma fenomenologia que tenha como base a consciência ou o ser. Por isso mesmo:

«O patético do amor consiste […] numa dualidade insuperável entre os seres; é uma relação com aquilo que se esquiva para sempre. A relação não neutraliza, ipso facto, a alteridade, mas conserva-a» (Levinas, p. 59).
A relação ética e amorosa com a alteridade, seu aceno não narcisista, fica patente ao adentramos o terreno sensual da carícia. A carícia pode obviamente ser entendida como uma técnica de excitação da outra pessoa, certamente. Neste sentido, ela é racionalizável, controlável, procura efeitos específicos, sequências bem-sucedidas. Para Levinas, entretanto, o acariciar tem algo de intrinsecamente nômade. A carícia desta perspectiva é algo essencialmente não objetivável ou racionalizável: «Quem é acariciado não é, propriamente falando, tocado. Não é o aveludado ou a tepidez desta mão dada no contacto, que a carícia procura. É a procura da carícia que constitui a sua essência, pelo facto de a carícia não saber o que procura. Este «não saber», este desordenamento fundamental é-lhe essencial. É como um jogo com algo que se esconde e um jogo absolutamente sem projecto nem plano, não como aquilo que pode tornar-se nosso e nós, mas como qualquer coisa de outro, sempre outro, sempre inacessível, sempre por chegar. E a carícia é a espera desse puro fruto, sem conteúdo» (Levinas, p. 61).

Poderíamos pensar que na carícia me encontro postado diante da imanência do outro, de sua presença irretorquível. Mas essa presença é em si uma abertura, algo que só se oferece como esperança nas promessas vagas e sensuais do futuro. A alteridade não está dada, e esse não estar dado é o que me impulsiona, o que me comanda a ir também mais adiante, a estabelecer uma relação generosa, não objetal comigo próprio, com a outra pessoa e com o tempo. Pelo fato de que a alteridade se oferece como abertura amorosa, sensual, existencial, mantenho-me eu próprio aberto.

Este texto inicia discorrendo acerca de algumas dificuldades éticas em torno do político e se desdobra em algumas considerações básicas sobre o amor. Em si esse percurso é politicamente problemático. Toda comunidade afetiva como base do político constitui um problema, uma ameaça a convicções verdadeiramente democráticas. No entanto, essa conclusão não poderia estar mais distante da perspectiva derrideana acerca do político, do ético ou do amor. Derrida, como adverte Caputo, foi injustamente criticado como um teórico das reivindicações nacionalistas na Europa. A ideia de comunidade afetiva como base emocional das reivindicações nacionalistas não lhe poderia ser atribuída. Uma resposta a esse tipo de acusação é dada pela própria ideia de “comunidade sem comunidade”, pelo agonismo que lhe é essencial, tal como a esboçamos aqui. A tensão e a contradição, a hostilidade e a hospitalidade, são elementos fundantes de uma comunidade que em princípio estaria paradoxalmente aberta para o seu outro. São também, obviamente, elementos vitais do amor.

Neste ponto, percebemos o quanto o problema de pensar a política a partir da ideia de uma comunidade afetiva, ou, mais precisamente, pensar o papel do afeto no estabelecimento de laços políticos, não parece ser exatamente um problema, como parece supor Zygmunt Bauman. O problema é a noção de afeto e comunidade que temos em mente. Pensemos num exemplo concreto, pensemos na base afetiva de lutas políticas como as diversas “ocupações” que prosperam hoje no Brasil. Parece-nos claro a reivindicação democrática, por exemplo, do Ocupe Estelita, de sua defesa de uma comunidade afetiva (cultural e historicamente determinada), para além da defesa de um patrimônio arquitetónico, da transitabilidade etc. O afeto não parece ali uma defesa retrógrada de um passado idealizado, de uma comunidade fechada à alteridade do futuro. Pelo contrário, em primeira instância, esse movimento requer uma redefinição da estrutura política e social de ocupação do espaço urbano que está em questão. Isso passa por questões como educação, enfrentamenteo da violência, democratização das decisões, entre muitas outras. A política, nesse  contexto, pode ser afetiva sem ser retrógrada, conservadora. E vice-versa: o conservadorismo, autoritarismo, prosperam exatamente onde o afeto não é possível, onde o discurso de sabor tecnocrático esconde o interesse tacanha, a objetificação, redução da alteridade.

As ponderações ética sobre o político, tal qual as expusemos acima, apenas abriram espaço para reflexões mais específicas sobre ética no amor. Ocorrem-me as dificuldades em que Feuerbach se mete ao tentar fazer algo numa mesma direção ao pensar os seus Princípios para uma Filosofia do Futuro. Afinal, esse amor pelo absoluto da alteridade seria apenas uma transmutação de um sentimento religioso e, como tal, acena com as promessas da negatividade, do curto-circuito que presença do outro proporciona – este certo “sentimento oceânico” no qual gozamos negativamente, diria Freud. Ainda aqui estaríamos de certo modo no terreno do narcisismo. Essa ética que se funda nas demandas da alteridade poderia ser recriminada pelo uso de certos conceitos de sabor religioso - conceitos judaicos, mais claramente. Isto ocorre, por exemplo, quando constatamos que a alteridade se abre para nós, de acordo com tal perspectiva, como uma promessa - uma promessa aberta, sem telos, mas uma promessa. O mergulho no absoluto da alteridade nos coloca diante de um tipo de messianismo sem Messias. O futuro nos chama - e no entanto esse futuro é como um significante vazio, nada está propriamente lá, nada está propriamente dado ou dito, mas sempre em processo de ser enunciado. Rigorosamente, tanto Derrida quanto Levinas aceitam esse tipo de ponderação e acreditam que o pensamento ocidental não pode negar a tradição religiosa dentro da qual negocia sua existência (ver Caputo, caps. 5 e 6). Ajuda a entender o que aqui está em jogo quando percebemos que essa promessa, esse “messianismo sem Messias”, busca nos oferecer uma dimensão do político e do ético radicalmente desessencializados e que, por isso mesmo, não pode recusar a sua historicidade, o chão sobre o qual pode ou não se abrir. A fuga do essencialismo é a forma como o ético e o político podem adquirir um apelo francamente, radicalmente democrático. Mas é também a maneira como as promessas do amor podem continuar vivas em nós.





[4] Parece evidente a maneira como Derrida se coloca diante de uma tradição de pensar a dádiva que encontra em Mauss seu ponto mais alto.”Bien que toutes les anthropologies, voire métaphysiques du don, aient, à juste titre et avec raison, traite ensemble, comme un système, le do net la dette, le do net le cycle de restitution, le do net l’emprunt, le do net le crédit, le do net le contre-don, nous nous départissons ici, de façon vive et tranchante, de cette tradition».