sexta-feira, 24 de junho de 2016

Teorias Feministas e de Gênero como Teorias Críticas




Por Cynthia Hamlin

Em maio último, o Núcleo de Ética e Filosofia Política (Nefipe) e o Núcleo de Pesquisa e Estudos em Fenomenologia (Nupefe) - ambos ligados ao Departamento de Filosofia da UFPE - organizaram o colóquio “Feminismos e Questões de Gênero: um debate necessário". Atendendo ao convite dos meus queridíssimos colegas, abri a conversa com o texto abaixo que, mais do que uma reflexão acadêmica, consistiu num convite para refletirmos sobre a onda de conservadorismo que tem assolado o país. Já soube que o restante dos textos, mais acadêmicos, serão publicados na Revista da Pós-Graduação em Filosofia da UFPE (assim que saírem do forno, dou notícias por aqui). Por enquanto, segue meu convite-manifesto, que só agora consegui organizar minimamente.


Um espectro ronda o Brasil: o espectro do conservadorismo. Todas as potências conservadoras da sociedade unem-se numa Santa Aliança para disseminá-lo e, não por acaso, instituições de ensino e pesquisa no país têm sido alvos preferenciais. Eis alguns exemplos:

  • A recomendação do Ministério Público de Goiás a 39 órgãos e autarquias federais (incluindo universidades e institutos federais) para que não sejam realizados atos políticos dentro de suas dependências físicas; 
  • O chamado Programa Escola Livre, projeto de lei aprovado pela Assembleia Legislativa do Estado de Alagoas, que institui que o professor deverá abster-se de introduzir conteúdos que possam estar em conflito com as convicções morais, religiosas ou ideológicas dos estudantes ou dos seus pais ou responsáveis; 
  •  A demissão de professores de sociologia da educação básica, denunciada pela Sociedade Brasileira de Sociologia, em função de supostas posições ideológicas ligadas à esquerda;
  • A exclusão de metas relacionadas ao combate à discriminação e desigualdade de gênero com a retirada dos termos "gênero" e "orientação sexual" do Plano Nacional de Educação, por pressão da bancada religiosa do Congresso. 
  • As recentes denúncias do Ministério da Educação acerca de “notificações extrajudiciais contra o ensino de ideologia de gênero nas escolas”, notificações cujo modelo vem sendo divulgado na página do movimento Escola sem Partido como um “serviço de utilidade pública”; 
  • A recepção, antes de qualquer debate com especialistas da área de educação, do “ator” Alexandre Frota e outros representantes da chamada Escola sem Partido, pelo ministro interino da Educação, Mendonça Filho. 
Os exemplos poderiam se multiplicar à exaustão, mas eles têm algo em comum que nos salva de uma enumeração ad infinitum: por trás de uma suposta defesa do pluralismo de valores e opiniões, uma má disfarçada censura a posições associadas aos direitos humanos, ao pluralismo religioso, à laicidade do Estado - em resumo, às tradições críticas de pensamento, genérica e acriticamente associadas pelos setores mais conservadores ao “humanismo”, ao “comunismo” e ao “marxismo”. A exclusão da referência a gênero e sexualidade no PNE, por exemplo, foi defendida pelo Pastor Eurico, do PSB de Pernambuco, em termos de uma associação entre gênero e marxismo:
Não somos contrários à educação no Brasil e destacamos que não há uma ditadura religiosa nessa comissão. Mas devemos reconhecer que apesar da laicidade do Estado, a maioria da população é cristã. Não vemos por que razão um movimento [em defesa dos direitos das mulheres e do segmento LGBT, majoritariamente] quer introduzir no PNE a ideologia de gênero. A ideologia de gênero é marxista, é a mesma que se espalhou pela Europa e, no futuro, [os que a defendem] vão perceber que estão trabalhando contra si próprios.
De um determinado ponto de vista, o Pastor Eurico está certo, ainda que, muito provavelmente, pelas razões erradas. De fato, não foi casual minha paráfrase às linhas de abertura do Manifesto Comunista para falar das teorias feministas e de gênero. Num sentido importante, o feminismo é herdeiro da teoria crítica, não no sentido restrito emprestado pela Escola de Frankfurt, mas de uma tradição que remonta a Marx. Como nota Nancy Fraser (1985: 97), é de Marx a melhor definição de teoria crítica: “o autoesclarecimento das lutas e aspirações de uma época”. Trata-se, fundamentalmente, de uma questão política: todas as teorias que podemos qualificar de críticas emergiram em conexão com os muitos movimentos sociais que identificaram as diversas dimensões da dominação nas sociedades modernas.

Em sua acepção mais geral, a teoria crítica deve ser entendida como um projeto de teoria social que opera, simultaneamente, uma crítica das “categorias recebidas” (frequentemente associada à noção de ideologia), uma crítica da prática teórica das ciências sociais e uma análise substantiva da vida social em termos daquilo que é possível, não apenas daquilo que é empiricamente dado (Calhoun, 1993: 63). Trocando em miúdos, uma teoria crítica provê as bases descritivas e normativas para uma investigação social que tem como alvo a emancipação humana (Bohman, 2015). É neste sentido que, apesar de toda sua diversidade, as teorias feministas são, antes de tudo, críticas – e, sob o risco de confundir mentes como a do Pastor Eurico, críticas, inclusive, daquilo que Heidi Hartmann (1987) já chamou de “o infeliz casamento entre o marxismo e o feminismo”, uma união que terminava reduzindo questões de gênero a questões de classe.

A questão que se coloca para nós é que concepção de conhecimento e de educação está por trás da defesa intransigente da suposta separação entre política e conhecimento (e eu digo “suposta” porque, claramente, existe um projeto político por trás desta tentativa de separação). O que eu pretendo argumentar aqui é que, ao contrário do que defendem os setores mais conservadores da sociedade, a) não é nem possível nem desejável separar essas duas esferas; b) de um ponto de vista da produção de conhecimento, a relação entre elas deve estar subordinada a critérios internos à produção acadêmica. Pretendo argumentar isso a partir de uma área dos estudos feministas que me é particularmente cara: a epistemologia feminista.

Um dos pressupostos mais fundamentais da epistemologia feminista, e que ela compartilha com uma série de outras abordagens, é o de que a atividade científica não ocorre em um vácuo social, mas traz em seu bojo os valores, as crenças e, de forma mais geral, tende a reproduzir a própria estrutura social onde é desenvolvida. Ainda que seu foco específico diga respeito às questões de gênero (que, como sabemos, está intrinsecamente relacionada a questões de classe e de raça), ela se propõe a refletir sobre a forma como esses elementos influenciam a produção, justificação e, em última análise, o que conta como conhecimento. Isso vem sendo feito de diversas formas. Uma delas é demostrando a relativa invisibilidade de mulheres e outros grupos marginalizados, seja como objeto de reflexões acadêmicas, seja como sujeitos do conhecimento. Outra consiste na análise do uso das metáforas e analogias estabelecidas entre a linguagem científica e a linguagem do senso comum, revelando como os valores e crenças socialmente difundidos estão presentes na primeira. Por fim, uma crítica à própria atividade científica com base na inclusão de diferentes vozes tanto na formulação dos problemas a serem pesquisados, quanto no questionamento de pressupostos como objetividade, universalidade, verdade e outros, caros à atividade científica.

Se o que está em jogo é a necessidade de se refletir ativamente sobre a forma como a sociedade influencia a produção de conhecimento, um de seus pontos de partida deve incidir sobre as diferenças entre o saber produzido na academia e o saber produzido na sociedade mais ampla. No caso em questão, é especialmente importante refletir sobre a relação entre feminismo e academia, uma via que não é isenta de conflitos. O movimento feminista é, antes de tudo, um movimento social. Isso significa que seus critérios últimos de avaliação e de justificação são relativos às vantagens políticas que ele pode conferir às mulheres e a outros grupos subordinados (o que inclui aqueles que estão fora da relação poder/saber que a academia confere). A atividade acadêmica, por seu turno, não pode ser avaliada exclusivamente em função dessas vantagens: “posições teóricas que não tenham outro fundamento que não suas vantagens políticas percebidas estão sujeitas a serem questionadas e desafiadas mais cedo ou mais tarde” (Lawson apud Hull, 1993: 5). A questão não é nova, nem exclusiva ao pensamento feminista: como dito anteriormente, toda a tradição crítica, entendida como aquelas teorias que estabelecem a necessidade de mudar os objetos sobre os quais refletem, têm como um de seus problemas fundamentais a relação entre a teoria e a prática política. Assim, uma coisa é reconhecer, como foi afirmado anteriormente, que a Universidade reproduz valores, crenças e mesmo a divisão do trabalho que estrutura a sociedade; outra é reconhecer a necessidade de se adotar uma postura crítica a partir da qual se examine as próprias práticas acadêmicas (o que Bourdieu, ao se referir à sociologia, chamou de sociologia reflexiva).

É justamente essa postura crítica que lhe é, ou deveria ser, característica o que posiciona a Universidade em um lugar privilegiado para se efetuar as rupturas com um senso comum que, em larga medida, sustenta as desigualdades sociais, inclusive as de gênero. Neste sentido, embora o diálogo com a sociedade seja fundamental, este diálogo deve ser feito a partir de um horizonte propriamente acadêmico.

Dito isto, é necessário reconhecer que isso que estou chamando de perspectiva crítica ou reflexiva não é igualmente valorizada no seio da Universidade. Frequentemente, o caráter reflexivo das ciências sociais tende a ser interpretado como sinal de sua imaturidade implícita (“As ciências naturais falam de seus resultados. As ciências sociais, de seus métodos”, afirmou certa vez o matemático Henri Poincaré). Tal interpretação deriva de uma perspectiva extremamente simplista de acordo com a qual a reflexão acerca de questões supra-empíricas - relativas, por exemplo, à formação de conceitos, ao que constitui a realidade, a verdade, a objetividade, assim como às técnicas e instrumentos mais adequados para apreender o real – devem ser meramente pressupostas, mas nunca debatidas entre os cientistas naturais, exceto naquilo que Thomas Kuhn caracterizou como crises paradigmáticas.

O mesmo não ocorre com as ciências sociais, para as quais a metodologia, entendida como a reflexão sobre todas as etapas envolvidas na produção do conhecimento, sempre assumiu um lugar central. Ignorar isso é ignorar sua especificidade e também sua força. Longe de caracterizarem uma mera descrição de métodos e técnicas de pesquisa, as reflexões metodológicas estão indissociavelmente ligadas a um conjunto de questões metateóricas relacionadas à ontologia, à epistemologia e à teoria, quer isso seja feito de forma explícita ou não: trata-se de uma espécie de elemento de ligação entre o empírico e o supra-empírico, entre a realidade e tudo aquilo que é construído e acionado por nós para apreendê-la e modificá-la. Neste sentido, a “contaminação” por preconceitos, interesses e visões de mundo particulares não é apenas inevitável, mas bem-vinda, desde que se reflita sobre ela de forma a poder usá-la a favor da produção do conhecimento e da emancipação humana.

Talvez nenhuma outra área ilustre tão bem os efeitos benéficos dessa “contaminação” quanto os estudos feministas e de gênero nas ciências sociais. Inspirados pelos movimentos feministas/de mulheres, o discurso sociológico vem sendo permeado e reformulado por novas reflexões e entendimentos que se originaram fora de seus limites organizacionais. Isso assumiu características distintivas no Brasil, tanto do ponto de vista do movimento, quanto de suas relações com a academia. Como enfatiza Heloisa Buarque de Hollanda (1991),

Surgido, durante a década de 70, em plena ditadura militar, o feminismo brasileiro vinculou-se, em sua maioria, aos partidos e associações de esquerda, e aliou-se, de forma delicada, a setores progressistas da Igreja Católica, um dos focos mais importantes de oposição ao regime. Se por um lado, esta aliança com a Igreja abriu às mulheres um amplo campo de militância e resistência política, trouxe, por outro, certos anacronismos. Pelos constrangimentos do momento politico em que surge e estabelece-se, o feminismo brasileiro definiu como agenda prioritária a defesa dos direitos civis, da liberdade política e da melhoria das condições sociais de vida, relegando a um segundo plano as reivindicações especificas sugeridas pelos movimentos feministas internacionais com os quais pretendia identificar-se [e abrindo mão de] questões feministas centrais como a liberdade sexual, o direito ao aborto ou o debate sobre o divórcio.

Suas relações com a academia não foram menos singulares. Embora sua articulação com o discurso dominante nas esquerdas tenha estabelecido, de saída, uma relação bastante complexa entre o movimento feminista e os movimentos de mulheres (para uma excelente análise desta relação, ver Silva (2016), em tese recentemente defendida no PPGS/UFPE), o feminismo brasileiro contou, desde sua origem, com um expressivo grupo de acadêmicas. Isso fez com que, diferentemente do que ocorreu em países europeus ou norte-americanos, as feministas brasileiras não tenham desenvolvido estratégias de enfrentamento radical ao establishment acadêmico, mas concentraram parte significativa de seus esforços na pesquisa (Heilborn e Sorj, 1999), integrando-se à comunidade científica nacional mediante a produção de trabalhos em áreas tão diversas como as ciências sociais, a crítica literária, a psicanálise e, mais recentemente, a teoria queer, os estudos culturais, pós-coloniais e descoloniais.

Não é de causar espanto, portanto, que as críticas efetuadas às chamadas tradições críticas dentro da academia baseiem-se quase que inteiramente em “ideias fora do lugar”, nomeadamente, aquelas que norteiam o movimento neoconservador norte-americano. Termos como “marxismo cultural”, “multiculturalismo”, “ideologia de gênero”, dentre outros, foram apropriados como termos derrogatórios e indicariam uma conspiração de acadêmicos ligados à tradição crítica, no sentido aqui utilizado por mim. O termo marxismo cultural, por exemplo, inicialmente identificado ao marxismo ocidental - incluindo a Escola de Frankfurt e, mais tarde, a virada cultural de Frederic Jameson - foi usado pela primeira vez neste sentido por um certo William Lind, descrito na Wikipedia como um paleoconservador monarquista, cristão, colunista de uma publicação intitulada O Conservador Americano. Em uma palestra intitulada “As Origens do Politicamente Correto”, proferida em 1998 para um grupo de direita chamado “Precisão na Academia” (Accuracy in Academia), Lind descreveu a correção política e o marxismo cultural como “ideologias totalitárias” que estariam transformando os campi estadunidenses em pequenas Coreias do Norte onde o estudante ou professor que ousasse ultrapassar qualquer um dos limites estabelecidos por ativistas feministas, LGBT, hispânicos, negros etc. rapidamente conseguiriam problemas com a justiça. (Eu havia esquecido, mas já publiquei um post sobre essa criatura aqui).

Não deixa de ser irônico que os grupos nacionais que se identificam com essa ideologia ultraconservadora vejam na “ideologia de gênero” um de seus perigos mais iminentes. Parte da ironia é que, considerando-se a infinidade de temas e questões extremamente radicais colocadas pelos estudos de gênero contemporâneos, a análise da ideologia de gênero é uma das abordagens mais anódinas desse campo: trata-se de um conjunto de estudos que se baseia na construção de escalas relativas aos papeis de gênero considerados apropriados a homens e mulheres, sobretudo no que diz respeito à divisão do trabalho doméstico, ao comportamento sexual e reprodutivo, à participação política etc. Mas é justamente por isso que se faz necessário reafirmar nosso compromisso com nossas raízes críticas:

Que os conservadores tremam à ideia de uma revolução feminista e de gênero! As pessoas não têm nada a perder nela a não ser seus grilhões. Feministas de todo o mundo, uni-vos!


Referências

BOHMAN, James, "Critical Theory", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2015 Edition), Edward N. Zalta (ed.), Disponível em:  .
CALHOUN, Craig (1993). “Habitus, field and capital: the question of historical specificity”. In:, Craig Calhoun, Edward Lipuma e Moishe Postone (Orgs.). Bourdieu: critical perspectives. Chicago, Polity Press.
FRASER, Nancy (1985) “What is Critical about Critical Theory? The case of Habermas and Gender”. New German Critique, no. 35, pp 97-131.
HARTMANN, Heidi. 1987. “El infeliz matrimonio entre marxismo y feminismo”. Cuadernos del Sur N 5, marzo de 1987, pp.113–158
HEILBORN, Maria Luiza e SORJ, Bila (1999). “Estudos de gênero no Brasil”, in: Sérgio Miceli (org.) O que ler na ciência social brasileira (1970-1995), ANPOCS/CAPES. São Paulo: Editora Sumaré, p. 183-221.
HOLLANDA, Heloísa Buarque (1991). “O Estranho Horizonte da Crítica Feminista no Brasil”. Colóquio “Celebración y Lecturas: La Critica Literária en Latinoamerica”, Ibero-Amerikanisches Institut Preussischer Kulturbesitz, Berlin, 20-24 de novembro de 1991. Disponível em: http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/?p=675
SILVA, Carmen Silvia M. (2016) Movimento de Mulheres, Movimento Feminista e Participação de Mulheres Populares: processo de constituição de um feminismo antissistêmico popular. Tese de Doutorado. Recife, Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE.