terça-feira, 9 de agosto de 2016

Um artesanato de iniciação à docência: mundo do trabalho e representações juvenis



Por Tâmara de Oliveira (DCS-UFS/PIBID-CAPES)

Introdução

Estava eu me deliciando numa dessas reuniões departamentais adoradas pelos professores de todo o mundo (rsss), quando uma das organizadoras do I Seminário Nacional de Sociologia da UFS (abril de 2016), professora Fernanda Petrarca, convidou-me para compor uma mesa redonda tematizando as mudanças no mundo do trabalho e o ofício do sociólogo. Pensei e disse: o que danado eu poderia dizer sobre isso se não sou especialista do mundo do trabalho? Mas a ideia de Fernanda era a de que, enquanto coordenadora do Pibid-Ciências Sociais, eu estou envolvida com um programa de certa forma articulado à abertura de um mercado de trabalho que durante décadas esteve fechado para as ciências sociais: o do ensino básico, com mais um retorno da sociologia à grade curricular. Aí eu fui atingida num ponto sensível, porque minha experiência no Pibid (que vai se encerrar em agosto de 2016) tem me apaixonado pelo potencial de uma sociologia ao mesmo tempo artesanal e pública voltada à atuação da licenciatura no ensino médio. Mas minha fala não tratou diretamente de relações diretas entre mundo do trabalho e ensino da sociologia; ela abordou o mundo do trabalho contemporâneo e os desafios que este coloca ao ofício de sociólogo, a partir de uma atividade que desenvolvi com bolsistas de iniciação do Pibid/UFS-Ciências Sociais, junto a alunos de duas escolas parceiras – por isso oscilarei entre “eu” e “nós” neste texto. Essa atividade foi a primeira parte de uma sequência didática que não pudemos realizar completamente, mas seus resultados preliminares trouxeram indicações significativas das representações (Moscovici, 2004) dos alunos envolvidos, em torno do trabalho e dos estudos. Este texto é uma versão reduzida e modificada do que preparei para orientar minha fala na mesa redonda.

A etapa realizada foi a de construção de dados com/dos próprios alunos, tematizando sua experiência juvenil, sua relação aos estudos, ao trabalho, à família e às expectativas de futuro; inspirou-se no chamado método de intervenção sociológica em sessões fechadas (Touraine, 1978; Dubet, 2007) e usou a técnica da entrevista coletiva. Falarei aqui dos resultados da turma do Colégio Estadual Atheneu Sergipense – dividida em três grupos pelos próprios alunos. A análise de conteúdo das respostas de cada grupo desenhou três idealtipos de orientações simbólicas sobre esses assuntos : a visão dos incomodados da escola – cujo traço idealtípico é o de uma relação tensa com a escola e majoritariamente estratégica aos estudos; a visão dos desafinados da escola – cujo traço idealtípico é o de uma relação de desgosto com os estudos e apática com a escola; e a visão dos afinados da escola – cujo traço idealtípico é o de uma relação ao mesmo tempo motivada e ansiosa aos estudos.

I- Relação instrumental aos estudos e valor subjetivo do trabalho: inversão de valores sociologicamente compreensível

Para que se compreenda as implicações sociológicas mais importantes das diferenças idealtípicas acima apontadas, vou reproduzir aqui parte do que não tive tempo de falar na mesa redonda, mas que está num texto em co-autoria que será apresentado no X Colóquio Internacional “Educação e Contemporaneidade” (EDUCON), em setembro de 2016 na UFS. Quando analisamos o que os três grupos disseram sobre a importância dos estudos e do trabalho para a realização de seus sonhos de vida futura, ficamos inicialmente intrigados com os resultados comparativos entre os dois temas. Esperávamos que a relação entre trabalho/sonhos de vida fosse muito mais instrumental do que subjetivamente valorativa, já que o trabalho é um espaço imediatamente ligado ao mercado e à aquisição de condições materiais de vida, enquanto os estudos são um espaço imediatamente ligado ao conhecimento, à abertura dos indivíduos ao mundo que os cerca, logo, a priori articulados a uma valorização existencial. Mas a verdade é que apenas num dos três grupos (os afinados da escola) o trabalho apareceu majoritariamente nessa função periférica de meio necessário para a realização de sonhos e de si mesmo, deslocando para outras atividades seu espaço de realização pessoal ou de satisfação com a vida. Para os dois outros grupos (incomodados e desafinados da escola) o trabalho apareceu majoritariamente como atividade diretamente articulada à identidade existencial: aquisição de experiência, reconhecimento e satisfação com a vida.

Quando se tratou dos estudos, mais uma vez os afinados da escola revelaram-se minoritários: foram eles que exprimiram com mais intensidade o gosto dos saberes, da abertura ao mundo que estudar pode proporcionar à vida juvenil. Além disso, enquanto os dois grupos problemáticos com os estudos ou com a escola tendem a identificar profissão, trabalho e emprego, os afinados tendem a distinguir profissão de trabalho e emprego, a primeira sendo representada como formação em curso superior, ou seja como continuação dos estudos, confirmando sua preferência valorativa dos estudos em detrimento do trabalho. Mas o fato é que na maioria da turma predominou uma relação problemática em sua relação aos estudos ou à escola, sobretudo instrumental, mas também de desgosto apático (nos desafinados), além de uma forte expressão de ressentimento para com a escola (nos incomodados).

Esse contraste entre valorização existencial do trabalho e valorização meramente instrumental dos estudos na maioria da fala dos alunos contraria a tese de Claus Off (1989, apud Guimarães, 2011) sobre os efeitos das mudanças do mundo do trabalho, tese esta que fez furor na virada do século XX para o XXI na sociologia do trabalho, segundo a qual, por ter se tornado objetivamente disforme, o trabalho também teria se tornado subjetivamente periférico, não valorizado na construção subjetiva das identidades. Vejamos como Nadya Guimarães (2011) sintetiza os impactos dessa tese sobre estudiosos do mundo do trabalho, interpretando a relação contemporânea dos jovens ao trabalho:

[Uma] sorte de “passagem pré-programada” dá lugar mais recentemente a uma situação de “inserção aleatória”(...): rompe-se a equiparação entre trabalho e emprego remunerado(...); cai por terra o modelo do trabalhador permanente e contratado a tempo completo (multiplicando-se as formas alternativas de trabalho, como tempo parcial, auto-emprego, trabalho no domicílio, entre outros); e saem de cena os contratos de longa duração, em que o vínculo empregatício “casa” o trabalhador a um mesmo empregador por toda (ou quase toda) a sua vida produtiva (de sorte que o emprego deixa de ser uma salvaguarda para o desemprego. (Guimarães, (2011, p. 155)

(...)Ante a intensidade com que foram tocados pela incerteza e pela transitoriedade dos vínculos, que faz do desemprego juvenil o principal componente do recente fenômeno do “desemprego de massa”, os jovens teriam reagido antecipando uma mutação cultural que estaria (para o conjunto da sociedade) apenas prenunciada como horizonte. Antecipando o fim da centralidade do trabalho, assumiram a condição de “exilados do trabalho”, tal como a qualifica Gorz [1997], antes mesmo que esta se impusesse de modo socialmente mais amplo.(Guimarães, 2011[2005], pp. 156/157)

Mas outras tendências da sociologia do trabalho, com pesquisas em apoio, não aceitaram essa tese. Antes de tudo porque ela idealizaria o trabalho juvenil entre a segunda guerra mundial e o final dos anos 1970 como uma “passagem pré-programada”, quando na verdade,

(...)nem tudo eram flores para os jovens. De fato, a incerteza que hoje contamina as trajetórias profissionais dos trabalhadores “maduros” era destacada, desde então, como uma característica dos percursos ditos “juvenis”, tanto nos momentos de auge como nos momentos de retração cíclica da oferta de empregos. Isso porque, na sua condição de “recém-chegados” ao mercado de trabalho, via de regra eximidos da responsabilidade de chefia do grupo familiar (e da função de provedor que a ela se associa), adolescentes e jovens expressavam uma grande rotatividade (…), em sua busca do “emprego certo”(...) - Guimarães, 2011, p. 156

Além disso, se é válido afirmar que “transformações no trabalho põem em cheque antigos valores, ao tempo em que reestruturam novas formas de produzir bens e serviços, esse movimento não é unidirecionado, nem por seu conteúdo, nem por seus atores” (Guimarães, 2011, p. 171). Melhor dizendo, não há correspondência precisa entre um trabalho “objetivamente disforme” e uma valorização “subjetivamente periférica”, porque as mudanças são complexas e porque a situação dos jovens diante do mercado de trabalho, além de historicamente problemática, tem a marca da heterogeneidade.

Neste sentido, nossos dados exploratórios e qualitativos vão na mesma direção dos dados de pesquisas empíricas no Brasil e em países com estrutura demográfica e de mercado de trabalho próximos (como o México ou a Argentina), os quais revelam que nossos jovens, longe de se exilarem do trabalho, produzem novos e diferentes sentidos subjetivos para essa atividade. Em pesquisa nacional feita em 2003 (Abramo/Branco, 2011[2005]), os jovens brasileiros, segundo Nadya Guimarães (2011), exprimem, com razão, um forte sentido de risco e vulnerabilidade em relação ao trabalho, elegendo-o como 2º maior problema social (o primeiro foi segurança, com apenas 1% a mais de escolha). E representam o trabalho como necessidade, direito a ser suprido e mesmo como valor ético da primeira modernidade - valor da “dedicação ao trabalho” que, embora em bem menor proporção do que “religiosidade” e “temor a Deus”, também apareceu como valor principal numa sociedade ideal, em equivalência com um valor geralmente tido como tipicamente juvenil, qual seja o da liberdade individual.

Seguindo ainda Nadya A. Guimarães (2011), que se debruçou sobre os dados brutos da pesquisa de 2003 acima citada, a peculiaridade objetiva dos jovens de um país como o Brasil é que se trata de uma juventude trabalhadora: em torno de 33% ingressava no trabalho ainda criança ou adolescente, experimentando diretamente as transformações no mundo do trabalho e a deterioração de suas chances de inclusão positiva (estão majoritariamente no trabalho informal e recebendo até dois salários mínimos; 1/3 deles ultrapassa 8 horas de jornada). Em tal contexto objetivo, se as mudanças do mundo do trabalho põem em questão a ética da primeira modernidade, isso não vai implicar em descentralização do sentido do trabalho para os jovens, mas, pelo contrário, resultar numa pluralidade de significados, entre os quais: provedor de necessidade; direito a ser suprido; independência; crescimento; autorrealização; e até mesmo o da ética moderna clássica (dedicação ao trabalho como valor numa sociedade ideal). E é verdade que, se do ponto de vista objetivo a maioria dos alunos do Atheneu entrevistados ainda não está na PEA, os sentidos do trabalho que eles exprimiram estão em consonância com os que apareceram nessa pesquisa nacional e também na pesquisa de Bernard Charlot (2006) sobre jovens sergipanos, realizada a pouca distância dessa pesquisa nacional. Sobretudo os mais articulados à construção da própria identidade e da autorrealização – experiência, reconhecimento e satisfação com a vida –, apesar da distância de mais de 10 anos entre as pesquisas quantitativas nacional e estadual e a nossa entrevista coletiva.

Por outro lado, o sistema escolar brasileiro é uma variável importante da condição de vulnerabilidade e risco que os jovens brasileiros vivem e representam em relação ao trabalho, tendo em vista que as classes popular e média instável sofrem de uma “intensa deterioração das condições do mercado de trabalho para trabalhadores sem níveis educacionais adequados” (Guimarães, 2011, p. 169). A reprovação, a evasão e o atraso escolar continuam a atingi-los fortemente, sob um modelo demasiadamente desigual e segregativo de oportunidades escolares. Ora, o público do Atheneu é predominantemente de classe média instável ou popular e os 3 grupos compostos espontaneamente pela turma entrevistada revelou que aqueles que têm mais problemas com os estudos e/ou a escola (os incomodados e os desafinados) são os mesmos que investem seus sonhos e expectativas de vida futura mais no trabalho do que na continuação dos estudos.

Foram esses dois grupos que imprimiram, na análise da entrevista coletiva da turma, a marca de uma continuidade negativa em sua relação aos estudos (da instrumental à de desgosto) ou à escola (a de apatia, mas sobretudo a de ressentimento diante do que eles representam como descaso de seus responsáveis pelos alunos não excelentes, ou seja, não claramente competitivos no ENEM). Mas mesmo os afinados da escola, dançando animadinhos a melodia dos saberes escolares, da pressão por excelência, do imperativo categórico do ENEM e de outras cobranças competitivas o dia inteiro, num prédio improvisado, calorento e com comida ruim (segundo eles mesmos), muitas vezes falaram em cansaço e revelaram a marca de uma ansiedade escolar que chegou a se manifestar como ceticismo agudo na fala de uma aluna.

Então articulemos: em suas falas sobre estudos e escola, os incomodados e os desafinados são os que mais exprimem problemas com os estudos ou com a escola – e isso é um indicativo de que são vulneráveis à reprovação, ao atraso ou à evasão escolares; embora tenhamos falhado na coleta de dados complementares que confirmassem nossa observação, temos indícios de observação direta que nos levam a lançar a hipótese de que os grupos do Atheneu espontaneamente compostos revelam um corte de classe socieconômica: os afinados provavelmente sobrerrepresentados por alunos com condições socioeconômicas superiores à média do público do Atheneu; os incomodados provavelmente sobrerrepresentados por alunos com condições de classe média instável; os desafinados provavelmente sobrerrepresentados por alunos com condições de classe popular. Sendo assim, por origem de classe e por relações negativas aos estudos e à escola, são os incomodados e os desafinados os que terão mais dificuldades de inserção não precária no mercado de trabalho, embora seja no trabalho que eles prefiram apostar mais suas fichas de reconhecimento e satisfação com a vida.

Talvez esses dois grupos tenham essa preferência simplesmente porque experimentam concretamente os problemas de uma escola submetida a uma lógica competitiva, reprodutiva e produtiva de desigualdades (Bourdieu/Passeron, 1970; Dubet, 2008; van Zanten, 2009), enquanto têm uma relação apenas abstrata com o mercado de trabalho, podendo mais facilmente transferir para esse espaço desconhecido suas expectativas e sonhos de futuro – já que sua experiência escolar não os ajuda a sonhar com o prolongamento dos estudos como caminho de satisfação com a vida. Por outro lado, os afinados parecem menos vulneráveis a reprovação, atraso ou evasão escolares porque têm uma relação positiva aos estudos e à escola (e provavelmente também por origem social), mas são vulneráveis a uma ansiedade prejudicial ao longo percurso de escolarização que eles pretendem perfazer, posto que tal ansiedade seja articulada a uma lógica escolar competitiva que seleciona/elimina alunos sob a falsa “boa consciência” de buscar excelência e de ter que se sustentar na competição entre escolas por aprovações no ENEM e outros vestibulares.

Os resultados da etapa da sequência didática realizada remeteram-me a algo que já escrevi num capítulo de livro aguardando publicação, afirmando que o processo fragmentado, multidimensional e acelerado de socialização das novas gerações as colocam diante de uma espécie de imperativo categórico: o da equação estudar + arranjar emprego = poder consumir muito enquanto orientação e finalidade da vida. Mas tal equação torna-se cada vez mais difícil de ser resolvida para aqueles que não são herdeiros de muito boas condições socioeconômicas, ou seja, para a maioria dos jovens contemporâneos. Por isso é sociologicamente compreensível que eles desenvolvam uma relação à escola ou aos estudos instrumental ou ansiosa (sobretudo os que têm chances reais ou imaginárias de conseguir emprego qualificado e alcançar um nível de consumo idealizado), apática ou violenta (sobretudo os que se percebem sem chance nessa competição cega por diplomas, empregos e nível de consumo).

II- Sobre artesanato sociológico: como o ensino médio da sociologia pode contribuir para aumentar o gosto dos saberes

Experimentamos assim como a abertura de nossa imaginação sociológica a uma abordagem do ensino da sociologia como artesanato intelectual pode ser útil. Combinamos dialogicamente (Levine, 1997) diferentes autores que sustentam a indissociabilidade entre aprendizado teórico e aprendizado prático, aplicando tal combinação a uma iniciação à docência que privilegie uma formação integrando ensino e pesquisa. Os autores são Charles Wright Mills ([1957]2006) e sua noção de artesanato intelectual (apêndice de The sociological imagination), Richard Sennet e sua noção de habilidade artesanal (The craftsman ([2008]2013), Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron com sua noção de pedagogia racional (Les héritiers (1964). Entendemos a habilidade artesanal como “impulso humano básico e permanente, o desejo de [fazer] um trabalho benfeito por si mesmo” (Sennet, 2013). Impulso este que, se para Wright Mills teria desaparecido da maior parte das atividades humanas no século XX e sobrevivia na imaginação sociológica, para Sennet sobrevive em múltiplas e variadas atividades e continua capaz de atuar contra formas destrutivas do trabalho, da educação, do uso dos recursos naturais e das organizações institucionais em geral, no século XXI. Assim fazendo, podemos apresentar o caminho artesanal que estamos traçando a partir dos argumentos de Molénat sobre a posição de Bourdieu e Passeron a respeito do ensino universitário:

A relação pedagógica entre os estudantes e o professor se funda muito mais no carisma deste último, em sua virtuosidade e em sua capacidade a ser um “guru” do que em seus talentos de pedagogo. Segundo P. Bourdieu e J.-C. Passeron, um professor que se obrigasse a ensinar as técnicas do trabalho intelectual (definição de conceitos, elementos de retórica e de lógica, maneira de construir um fichamento e de definir uma bibliografia), “abdicaria de sua autoridade de 'mestre' para aparecer aos olhos dos estudantes com a imagem de professor de escola básica perdido no ensino superior”. (Molénat, 2014, pp. 54-55)

Nosso caminho artesanal implicou então em se afastar do papel de professor-guru e se aproximar do papel de professor pedagogo, para identificar as dificuldades de aprendizagem de bolsistas e trabalhar com elas, ao mesmo tempo em que os introduzimos em atividades nas escolas partindo do levantamento das representações sociais dos alunos sobre o eixo temático do projeto. Num indo-e-vindo entre dimensões prazerosas, subjetivas e dialógicas do aprender (como a entrevista coletiva que tanto motivou os bolsistas do Pibid e os alunos das escolas parceiras) e dimensões exigentes e cansativas do mesmo aprender (como estudo e produção de textos sobre os mesmos temas das entrevistas), buscamos fazê-los compreender que estudar ou aprender a ensinar não se realizam sem dificuldades, erros, recuo e paciência, mas que podem trazer satisfações para além da orientação competitiva, desigual e segregativa da experiência estudantil que eles vivem.

Se reorientamos nossas atividades a partir de uma articulação entre as visões de artesanato intelectual de Mills ou Sennet e da defesa de uma pedagogia racional de Bourdieu e Passeron, foi porque, sintetizadas, elas se exprimem como um apelo motivante e prático a um ensino científico-social existencialmente engajado. Queremos dizer com isso que nossa prática de formação dos bolsistas no eixo temático do subprojeto busca articular vida pessoal e trabalho de estudante, buscando incutir satisfação com um trabalho benfeito de aprender a ensinar, e que, tendo em vista que objetiva formar professores, ou seja trabalhadores sociais educacionais, não pode prescindir de posições e proposições reflexivas, empiricamente fundamentadas, sobre o estado econômico, político e sociocultural do mundo onde vivemos.

Sendo assim, não é verdade que a sociologia pode ser relegada a conteúdo transversal de outras disciplinas; nem a filosofia. Pelo contrário, elas e demais ciências sociais, diante da perplexidade com que se observa mudanças hiper-aceleradas e destrutivas de laços sociais e do meio ambiente, profundamente articuladas às mudanças no mundo do trabalho, têm em sua tradição muitos recursos teórico-metodológicos para que a experiência de aprender deixe os limites problemáticos de uma relação apática, ansiosa, instrumental ou violenta à escola e contribua para que as novas gerações recuperem o gosto e a necessidade tão intrinsecamente humanos de articular seus problemas pessoais às estruturas sociais. Buscando combinar formação artesanal à docência com atuação artesanal nas escolas parceiras do Pibid, acreditamos que o ofício do sociólogo é potencialmente capaz de aumentar as possibilidades dos jovens do ensino médio e da licenciatura a desenvolverem uma reflexividade empiricamente fundamentada diante de seus problemas estudantis e de suas chances futuras no mercado de trabalho. Todavia, pensamos que "mudanças estáveis e duradouras são contínuas e lentas, pacientes e persistentes" (Freire Costa in NOVAES, R/VANNUCHI,P. (org.). Juventude e Sociedade. Trabalho, Educação, Cultura e Participação. São Paulo, Editora Perseu Abramo/Instituto Cidadania, 2003/2011). E neste sentido, as ameaças intermitentes que o Pibid tem sofrido desde 2015, assim como o assustador projeto de Escola Sem Partido (que mal dissimula seu caráter de ideologia conservadora e opressora das diversidades humana e científica), agridem violentamente a potencialidade de atuação da sociologia, e das ciências sociais e humanas em geral, diante das mudanças do mundo do trabalho e dos problemas graves de nosso sistema de ensino. Mais que nunca precisamos continuar artesãos da sociologia, porque navegar é preciso.

BIBLIOGRAFIA

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________________________________ Les héritiers. Paris: Éditions de Minuit, 1964.
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