quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Patos, Coelhos e Revoluções Científicas


O Pato-Coelho, conforme apareceu na revista Fliegende Blatter em 1892

O que você vê na figura acima? Um pato? Um coelho? O que muda quando percebemos a figura ora como um pato, ora como um coelho? O objeto? Nossa forma de organizar a percepção?

Este problema vem ocupando filósofos e psicólogos durante muito tempo. A figura do pato-coelho foi utilizada pela primeira vez no meio acadêmico por um psicólogo americano chamado Joseph Jastrow, em 1900, que dedicou boa parte de seu tempo a estudar ilusões de ótica a fim de demonstrar que a percepção é produto da atividade mental, isto é, que percebemos tanto com a mente quanto com os órgãos dos sentidos. Em 1947, Ludwig Wittgenstein pega emprestado o desenho apresentado por Jastrow (na verdade, ele aparece pela primeira vez em uma revista de humor alemã) para investigar o que muda na nossa visão de mundo quando percebemos algo de maneira diferente. Para Wittgenstein, diferentemente de Jastrow, perceber a figura como um coelho ou como um pato não é, portanto, parte da percepção, mas parte da forma de vida que informa nossa percepção do mundo.

Pouco menos de duas décadas mais tarde, o físico e filósofo da ciência Thomas Kuhn retoma a figura do pato-coelho a fim de ilustrar como uma mudança na nossa visão de mundo pode alterar radicalmente a forma como percebemos um objeto. A esta visão de mundo Kuhn chamou paradigma.

O termo paradigma vem do grego e significa “exemplo” ou “padrão”. Mas a importância do conceito, conforme usado por Kuhn na filosofia da ciência, é que ele diz respeito ao conjunto de práticas, pressupostos, modos de fazer, questões pertinentes etc compartilhados por uma determinada comunidade de cientistas. Diz respeito, portanto, a um tipo de consenso que define a ciência normal, isto é, o trabalho de rotina desempenhado pelos cientistas em seus laboratórios. Durante este período de consenso e de trabalho rotineiro (daí o termo ciência normal), aqueles pressupostos, modos de fazer etc não são questionados, já que possibilitam resolver a maioria dos problemas levantados de forma satisfatória. No entanto, Kuhn reconhecia que mesmo a ciência normal tem suas anomalias: alguns problemas não podem ser resolvidos, sendo ou ignorados, ou tolerados. Mas à medida que a quantidade de problemas não resolvidos vai se acumulando, não se pode mais ignorá-los ou tolerá-los e a ciência entra em crise: uma crise paradigmática.

As crises paradigmáticas levam os cientistas a reformularem suas idéias, a tentarem novas formas de se resolver questões, a estabelecerem um novo paradigma. Esta nova visão de mundo vai paulatinamente ganhando novos adeptos até que se torne consensual (ou seja, que passe a ser parte da ciência normal). Esta passagem de um paradigma a outro é concebida por Kuhn como uma revolução científica, uma transformação radical em uma determinada área do conhecimento. Exemplos de revolução científica ou de mudança paradigmática são a passagem do modelo geocêntrico, defendido por Ptolomeu, para o modelo heliocêntrico defendido por Copérnico; a substituição do criacionismo na biologia pelo evolucionismo; da física newtoniana pela física relativista de Einstein. Cada um desses paradigmas é incompatível com o anterior ou, nos termos de Kuhn, os paradigmas são incomensuráveis (não comparáveis, não traduzíveis uns nos outros). Isto significa dizer que o conhecimento científico não se desenvolve por meio do acúmulo paulatino de conhecimento, mas por meio de revoluções científicas nas quais visões de mundo inteiras são substituídas por outras.


Cynthia Hamlin

6 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Cynthia, depois se tu pudesse me explicar queria saber sobre as relações de Kuhn com Popper e o racionalismo crítico. Eles escrevem no mesmo período ou não?Acho que Kuhn escreve alguns anos após Popper né?

Pelo pouquinho que entendi, Popper vê o conhecimento como sendo sempre provisório e mudado com a constante crítica, então essa reformulação de idéias de que fala Kuhn, seria inerente ao processo constante de construção do conhecimento?Aonde teria espaço para os problemas não-resolvidos e ignorados se acumularem e estabelecerem uma crise de paradigmas para haver uma revolução científica e essa ruptura radical? Popper reconhece a idéia de "revolução cientifica" em seus escritos?
Pergunto pq li pouquissimo de Kuhn, e tava lendo um "tiquinho" sobre teoria do conhecimento em Popper, ai vi algumas coisas em comum e outras nem tanto, se tu pudesse me ajudar a clarear as idéias seria ótimo =)

ah, e muito boa a idéia do blog. adoreii!

Marcela

ps:eu sei q as idéias tao meio bagunçadas, mas são mais ou menos essas minhas dúvidas ;)

Le Cazzo disse...

Marcela,

O livro em que Popper expõe mais claramente as suas idéias sobre o desenvolvimento da ciência é A Lógica da Descoberta Científica, publicado em alemão em 1934 e, de forma bastante modificada, em inglês, em 1959. Lá, ele afirma que a ciência progride não por meio de verificações das teorias, como acreditavam os positivistas lógicos, mas por falsificação, isto é, pela tentativa constante de se falsificar uma determinada teoria. Se a mesma fosse falsificada, era descartada como conhecimento falso; caso contrário, permanecia como uma explicação plausível de determinado fenômeno até que fosse refutada (ou falsificada). (A base desta distinção era a fragilidade do método indutivo no qual a idéia de verificação repousava). Isto significa dizer que a lógica da pesquisa científica baseia-se na crítica constante do conhecimento produzido. Quanto mais tentativas mal-sucedidas de se falsificar uma teoria, mais provavelmente próxima da verdade ela estaria (a idéia de verossimilhança). Teorias científicas são, portanto, conjecturas plausíveis acerca da realidade.

Kuhn tem contato com as idéias de Popper quando era estudante de pós-graduação e se interessa por investigar os processos por meio dos quais o senso comum (ou as ideologias) se transformavam em teorias científicas e, depois, determinar a produção de conhecimento característica da ciência. Publica o seu A Estrutura das Revoluções Científicas em 1962. Três anos mais tarde, Imre Lakatos, um filósofo da ciência, convida Kuhn para um debate com Popper, na Inglaterra, cujo tema era “a crítica e o desenvolvimento do conhecimento”.

Kuhn Inicia o debate afirmando que, embora ele concordasse com muitas das posições de Popper, havia 3 diferenças principais entre eles: em primeiro lugar, a existência de uma “ciência normal”, cuja característica mais marcante era a ausência de crítica, ou a aceitação tácita de seus pressupostos por parte dos membros de uma comunidade científica (ou seja, a própria idéia de paradigma) porque eles são socializados ou, mais propriamente, doutrinados, durante sua formação. Por esta razão, um paradigma é definido tanto como uma maneira aceita de se formular problemas e de resolvê-los (um exemplar), como aquilo que os membros de uma comunidade de cientistas compartilham. Popper, ao responder, afirma concordar com a existência de uma ciência normal, mas discorda da idéia de que ela se constrói com base na doutrinação dos estudantes: a crítica é intrínseca à ciência e isto inclui a formação dos cientistas.

A segunda diferença levantada por Kuhn dizia respeito à influência de fatores sociológicos e psicológicos na produção do conhecimento: já que é a própria comunidade científica que produz e valida o conhecimento, o que é aceito ou descartado depende da visão de mundo compartilhada por esta comunidade e não de algum critério puramente lógico de validação do conhecimento. Popper insistia que a única forma de se compreender o progresso da ciência era por meio da investigação de seus processos lógicos.

Por fim, Kuhn não acreditava que a mudança no conhecimento ocorria por um processo racional ou lógico: as revoluções científicas significavam uma mudança gestáltica, total, como se os cientistas agora olhassem a realidade por meio de lentes completamente diferentes das anteriores. A isto, Popper responde que a idéia de incomensurabilidade gera um relativismo extremo segundo o qual não se poderia julgar a superioridade de uma teoria em relação a outra. Kuhn tenta rebater este argumento: para ele, era possível julgar uma teoria ou um paradigma superior a outro em termos de sua utilidade, isto é, uma teoria que resolvesse mais “quebra-cabeças” era sempre superior a outra. Para Popper, no entanto, as teorias não devem ser julgadas apenas em função de sua utilidade, mas de sua verossimilhança, ou de sua adequação em relação à realidade empírica.

Quanto à sua questão acerca do espaço para o dissenso na perspectiva de Kuhn, isso só poderia ser respondido em termos da criatividade individual ou de uma falha de socialização. Mas o problema da criatividade também é particularmente espinhoso para Popper que, por outras razões, não dá conta dele.

Seja como for, o debate continua. Kuhn tem sido incorporado por tradições pós-modernas que enfatizam o relativismo, apesar de suas oposições a ele. Outros autores, como é o caso de Steve Fuller (criador de uma área chamada epistemologia social), acusam Kuhn de conservadorismo extremo ao limitar o conhecimento científico ao debate entre pares de uma mesma comunidade, impedindo, assim, a sua abertura ao debate público e à democratização do conhecimento. Trata-se de um debate extremamente contemporâneo e que ainda deve consumir muita tinta e papel...

Espero que isso ajude a esclarecer algumas de suas dúvidas.

Cynthia

Anônimo disse...

muito obrigada professora! =D não só ajudou com as dúvidas como organizou bastante as idéias na minha cabeça! =DDD

Marcela

Le Cazzo disse...

Marcela,

O nome do livro de Popper é A Lógica da Pesquisa Científica, não a Lógica da Descoberta Científica, como disse acima.

Quanto ao debate entre Popper e Kuhn, ele foi publicado em português (pelo menos o quarto volume das atas do colóquio, que foi a que tive acesso):

Lakatos, Imre; Musgrave, Alan (orgs). A crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento. São Paulo: Cultrix/Ed. da Universidade de São Paulo, 1979.

Se não tiver na biblioteca do CFCH, Heraldo tem um exemplar.

Cynthia

Anônimo disse...

"desenvolvimento do conhecimento" tem na biblioteca em espanhol ;)
valeu cynthia!!