"Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate": Isso é um blog de teoria e de metodologia das ciências sociais
sábado, 10 de dezembro de 2011
Pragmatismo
_ Diga-me, Garfield, quando você anda, suas patas da esquerda e da direita se movem juntas, ou você usa as patas opostas?
_ Eu nunca mais vou andar.
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terça-feira, 6 de dezembro de 2011
Maria Eduarda Rocha recebe Prêmio Jabuti em Comunicação
Professora da UFPE recebe Prêmio Jabuti por livro sobre Publicidade |
O livro traça um panorama da indústria da propaganda no Brasil desde o golpe militar de 1964 até o início dos anos 2000, com foco na mudança ideológica em defesa da livre atuação do capital a partir dos anos 1980, enfatizando conceitos como “responsabilidade social” e “qualidade de vida”, como anteparos para anunciantes pressionados pelo aumento da concorrência e da cobrança de movimentos sociais e do Estado.
A autora é mestre e doutora em Sociologia da cultura pela USP e egressa do Programa de Formação de Quadros do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Publicou vários artigos sobre publicidade, consumo, mídia e democracia, seus temas preferenciais de pesquisa. É autora de “Pobreza e cultura de consumo em São Miguel dos Milagres” (Edufal, 2002) e coautora de “Guel Arraes: um inventor no audiovisual brasileiro” (Cepe, 2008).
Fonte: Ascom/UFPE
Atendendo a pedidos, duas fotos de Eduarda (linda e feliz) na entrega do prêmio.
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| Francisco Emolo/Jornal da USP |
| Francisco Emolo/Jornal da USP |
Agora, fala sério: esse jabutizinho tá muito do mixuruca. Mil vezes a tartarugona que nós dedicamos a ela!
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sexta-feira, 2 de dezembro de 2011
TV Alma Sebosa
"Complexas e onipresentes, as violências midiáticas colocam questões em relação à imagem. A exemplo de Hermes, ao mesmo tempo deus dos ladrões e mensageiro dos deuses, a imagem é dupla, dúplice, benéfica e perigosa. Trata-se então de controlá-la, mas, sobretudo de conhecê-la, de fazer jorrarem os sentidos para desarmá-la. Este conhecimento não deve permanecer como privilégio de alguns especialistas, mas ser propagado em uma "alfabetização do olhar". Somente uma educação para a imagem permitirá ao espectador colocá-la à distância para melhor apropriar-se dela.", Paul Barascut.
Ficha Técnica
Direção, fotografia e edição:
Daniel Castelo Branco
Som direto:
Lucas Chaves Ramalho
Produção:
Clarissa Azevedo
Juliana Lins Lira
Entrevistados:
Diego Pessoa Costa Reis
Ivan Moraes Filho
Joslei Cardinot
Maria Eduarda Rocha
Jota Ferreira
Luciana Zaffalon
Malena Segura Contera
Stella Maris
Thiago Raposo
RECIFE, PERNAMBUCO, BRASIL, 2009
segunda-feira, 28 de novembro de 2011
Ô da Rua! O transeunte e o advento da modernidade em São Paulo
E para quem está em São Paulo, o lançamento do novo livro de Fraya Frehse, que nos enviou o resumo abaixo.
Ô da Rua! O Transeunte e o Advento da Modernidade em São Paulo / Fraya Frehse. São Paulo, Edusp, 2011; 632 pp.; ilustrações; 23 cm; Prefácio de José de Souza Martins; Texto da Orelha de Lilia Moritz Schwarcz.
Inspirado numa problemática de longa duração nas ciências sociais brasileiras - a das lógicas de apropriação de práticas sociais e culturais historicamente modernas no Brasil no decorrer do século XIX -, este livro se propõe a repensar criticamente o papel conceitual da cidade de São Paulo nesse debate hoje colocando em questão, na chave de uma sociologia da vida cotidiana que entrelaça de maneira sui generis contribuições em particular de Henri Lefebvre e de Erving Goffman, o urbano que é produzido em São Paulo pelo advento da modernidade, entre o início do século XIX e o início do século XX. Que sociedade urbana emerge nessa cidade no bojo desse processo histórico? Em busca de respostas, nada como uma etnografia das transformações histórico-sociais e socioculturais das regras de comportamento corporal e de interação social dos pedestres nas ruas do centro histórico de São Paulo entre 1808 e 1917, assumindo-se como referências empíricas imagens desse espaço produzidas por viajantes, (ex-)estudantes da Academia de Direito, ex-meninas de elite, jornalistas e fotógrafos de rua durante esse longo período. Com efeito, nesse ínterim as ruas do centro da cidade vão paulatinamente sendo tomadas pelo transeunte, personagem até então inexistente nas plagas paulistanas. Em meio a uma complexa dinâmica histórico-social que une, ao mesmo tempo em que separa, viajantes, (ex-)estudantes, ex-meninas de elite, jornalistas e fotógrafos de rua em torno da temática da civilidade, o corpo do transeunte é mediação reveladora de uma sociedade na qual todos os pedestres tendem a circular, mas suas formas de interagir nas ruas centrais mobilizam ativamente, ao lado da impessoalidade, uma pessoalidade historicamente própria de referenciais socioculturais estamentais. No espaço da rua, e no espaço que é o corpo do transeunte. Coisas do passado? Certamente não. Produtos de uma rua muito específica, em termos histórico-sociais: um espaço eminentemente cerimonial engolfado pela modernidade.
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domingo, 27 de novembro de 2011
As Ciências Sociais e os Pioneiros nos Estudos sobre Crime, Violência e Direitos Humanos no Brasil
A Fundação Joaquim Nabuco e o PPGS/UFPE convidam para o lançamento do livro As Ciências Sociais e os Pioneiros... organizado por Renato Lima e José Luiz Ratton.
Quando: Terça-feira, 29 de novembro, 19:00h
Onde: Sala Antônio Magalhães, Fundaj, Derby
Ratton e Lulu Oliveira estarão lá. Parabéns aos dois!
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sexta-feira, 25 de novembro de 2011
Páginas úteis, pero no mucho (como convém)
Aproveito a falta de tempo para escrever para chamar atenção para dois novos super mega cool links na nossa lista de "páginas úteis" (quem de nós três inventou esse título infame?).
O primeiro é o da Pittacos - Revista de Cultura e Humanidades, editada pelo José Eisenberg, professor de Filosofia do Direito na UFRJ (ninguém é perfeito, nem mesmo o Eisenberg). O segundo é O Chihuahua Anão - um blog de antropologia aleatória, de autoria de Igor Machado, professor de Antropologia da UFSCar (ah, os antropólogos...).
Cynthia
domingo, 20 de novembro de 2011
A sociologia do mundo rural e as questões da sociedade no Brasil Contemporâneo
XV Congresso Brasileiro de Sociologia
Realizado de 26 a 29 de julho de 2011, em Curitiba-PR.
Conferência: Maria Nazareth Wanderley (UFPE)
A Sociologia do Mundo Rural e as questões da Sociedade no Brasil Contemporâneo
A sociologia rural é antes de tudo sociologia. Porém, ao mesmo tempo, seu objeto exige um tratamento teórico próprio, de forma a explicar porque e como o meio rural permanece na sociedade como "um espaço singular e um ator coletivo", o que faz da sociologia rural uma sociologia específica. Sociologia do trabalho, sociologia da família, sociologia dos movimentos sociais, sociologia política... Como incluir, nestes campos, a experiência dos trinta milhões de brasileiros que vivem nas áreas rurais do nosso país? Se não podemos, nem desejamos explicar sozinhos o mundo rural é, também, impossível amputar a parte rural das preocupações dos estudiosos da realidade brasileira.
sexta-feira, 18 de novembro de 2011
Socialização como engajamento reflexivo: moldando uma vida
XV Congresso Brasileiro de Sociologia
Realizado de 26 a 29 de julho de 2011, em Curitiba-PR.
Conferência: Margaret Archer (UK)
(Apresentação: Cynthia Hamlin)
Realizado de 26 a 29 de julho de 2011, em Curitiba-PR.
Conferência: Margaret Archer (UK)
(Apresentação: Cynthia Hamlin)
Socialização como engajamento reflexivo: moldando uma vida
As teorias sociológicas da socialização correntes não podem apreender a dinâmica dos processos de construção de identidade na sociedade morfogenética nascente. De fato, elas são altamente viesadas no sentido de uma orientação às características estruturais e culturais que caracterizam a sociedade Moderna e que não mais se sustentam no novo contexto societal. Com base nos insights da abordagem morfogenética-realista e da teoria social relacional, busca-se uma reconceitualização da socialização como um engajamento reflexivo, o que dá conta dos dois desafios básicos colocados pela sociedade morfogenética para as pessoas jovens no sentido de desenvolver uma identidade pessoal e social: a "necessidade de seleção" e a "necessidade de moldar uma vida". Trata-se, portanto, de uma interpretação de como pessoas jovens decidem sobre seu próprio conjunto de preocupações, estabelecendo prioridades e encaixes [em relação às suas preocupações] e investindo seu tempo e energia em um projeto de vida. Tal abordagem também consiste numa crítica de todas aquelas teorias que reduzem a socialização a relações linguisticamente mediadas, e articula a condição relacional dos sujeitos humanos em relação às ordens natural, prática e social. Também argumenta que o tempo da socialização por internalização de hábitos ou habitus terminou.
terça-feira, 15 de novembro de 2011
Compreensão antropológica e objetivação participante: mais um estudo de cazzo sobre a sociologia reflexiva de Bourdieu
O delicado equilíbrio entre a objetividade e o tornar-se nativo na compreensão da alteridade
Por Gabriel Peters – Doutorando em Sociologia (IESP/UERJ)
O contato das sociedades ocidentais em expansão colonial e imperial com povos dotados de padrões de conduta significativamente diferenciados daqueles vigentes no Ocidente forneceu o impulso histórico à constituição da antropologia como disciplina intelectual. Esta elegeu aqueles povos como seu objeto de estudo, tomando-os como “primitivos” (em termos de uma concepção teleológica do desenvolvimento histórico), “simples” (a partir de um conceito de complexidade social baseado em determinados critérios analíticos, tais como nível de diferenciação institucional) ou ainda, mais recentemente, simplesmente como “outros” do ponto de vista sociocultural. É necessário advertir, entretanto, que, tal como acontece com sociólogos e filósofos, uma parte essencial do que fazem os antropólogos é definir e redefinir (ad infinitum?) aquilo que fazem. Nesse sentido, entraríamos em território muito mais controverso caso partíssemos desta quase consensual referência histórico-descritiva à antropologia como universo disciplinar e arriscássemos uma definição mais ostensivamente epistêmica. Por exemplo, a própria tese de que a antropologia estaria necessariamente voltada ao estudo da alteridade social e cultural (a ideia da antropologia como uma espécie de sociologia do outro, enquanto a sociologia seria algo como a antropologia do mesmo) parece por demais restritiva ao excluir de seu alcance a estratégia heurística de antropólogos como Louis Dumont, que mobilizam achados oriundos de seu trabalho de pesquisa em contextos sociais que lhes são estrangeiros para jogar uma luz nova e inesperada sobre o próprio universo sociocultural em que estão imersos (no caso de Dumont, o Ocidente moderno permeado pela ideologia individualista [e.g., Dumont, 1997; 2000]).
O caso de Bourdieu é algo similar. Foi após seu treinamento acadêmico formal como filósofo que ele se voltou para as ciências sociais, desembocando na sociologia em seguida aos trabalhos de investigação etnológica que dedicou à sociedade argelina, cruciais para a crítica imanente do estruturalismo que resultaria na sua teoria praxiológica do mundo social. A singularidade de sua trajetória intelectual teve como conseqüência um modus operandi sociocientífico que faz da “imaginação etnológica” (Kurasawa, 2004) um elemento constitutivo da própria sociologia. Como Dumont, Bourdieu passou a fazer uso de insights sobre a agência humana e a vida social obtidos no estudo de contextos sociais dos quais não era nativo para interrogar-se, de maneira mais reflexiva, crítica e criativa, acerca do próprio ambiente societário em que estava imerso. Um exemplo claro dessa manobra é o procedimento pelo qual o autor se apropria da tese durkheimiano-maussiana da correspondência entre estruturas sociais objetivas e estruturas mentais de percepção do mundo, transpondo-a da análise das chamadas sociedades “primitivas” para o próprio estudo da sociedade francesa contemporânea (Bourdieu, 2007), bem como do campo científico onde ele mesmo se situava como um “jogador” estruturalmente posicionado (Bourdieu, 1988).
Como membro orgulhoso de uma tradição de teoria crítica da dominação atenta aos mecanismos sócio-simbólicos por meio dos quais condições de existência historicamente contingentes são vivenciadas e reproduzidas como ordenamentos naturais e evidentes das coisas para o senso comum, sua obra dá testemunho de que uma percepção desnaturalizante das configurações sociais pode ser mais facilmente alcançada a partir do momento em que a cientista social torna-se capaz de situar-se, ao menos intelectualmente, em múltiplos universos de experiência humana. A passagem pela antropologia também é relevante para a reflexão sobre os desafios metodológicos colocados à interpretação dos estados subjetivos e manifestações comportamentais dos atores humanos. A antropologia cultural impôs aos seus praticantes uma tarefa semelhante àquela enfrentada pelos historiadores que serviram de base para as epistemologias da compreensão de Dilthey e Weber, qual seja, a penetração em visões de mundo que se apresentam ao pesquisador, de início, como estranhas e aparentemente ininteligíveis. O tocante (ou ao menos fofucho) discurso de Malinowski ao final de sua obra magna (1976) evidencia uma postura metodológica aparentada à visão diltheyana, postura que se reflete no seu compromisso último com a captação do “significado íntimo e...realidade psicológica de tudo que, numa cultura diferente, é superficialmente estranho e compreensível à primeira vista” (Op.cit: 374). Tal captação, continua o antropólogo polonês, estaria calcada na diligente coleta de dados propiciada pela imersão etnográfica, mas seria dependente também de certa disposição de espírito por parte do etnógrafo.
Segundo a leitura contemporânea de Geertz, o acento de Malinowski sobre as qualidades de sensibilidade necessárias à compreensão antropológica do ponto de vista nativo contribuiu para a criação de um mito: o “mito do pesquisador de campo semicamaleão, que se adapta perfeitamente ao ambiente exótico que o rodeia, um milagre ambulante em empatia, tato, paciência e cosmopolitismo” (1997, p.85). Ironia da história: a publicação póstuma e não autorizada de Um diário no sentido estrito do termo (Malinowski, 1997), em que o etnógrafo polonês dava livre curso à expressão de toda espécie de insatisfações intensas em relação aos nativos com quem convivia, serviu como demonstração acachapante da implausibilidade do mito segundo o qual o conhecimento da forma nativa de pensar e sentir o mundo deriva, em última instância, de “algum tipo de sensibilidade extraordinária” (Geertz, 1997, p.86). Rejeitado este caminho, resta a questão: “o que acontece com o verstehen [a compreensão] quando o einfühlen [a empatia] desaparece?” (idem). Substituindo qualquer concepção psicologizante de produtos culturais como expressões de intenções e qualidades mentais inefáveis por uma perspectiva textualista (Reckwitz, 2002, p.248; Peters, 2011: 324) que os toma em seu caráter publicamente encarnado em eventos, símbolos e condutas humanas, o antropólogo estadunidense ensaia uma resposta hermenêutica, concebendo o entendimento antropológico em termos de diálogo e tradução intercultural voltados ao ideal da “fusão de horizontes” (Gadamer, 1997, p.457) entre pesquisador e pesquisados.
A despeito de sua partilha do ceticismo de Geertz no que toca a artifícios empáticos como a “reprodução psíquica” (Dilthey) ou a “transferência intencional sobre o outro” (Husserl), Bourdieu rejeita não apenas a proposta geertziana, mas também, e ainda mais causticamente, as versões radicalizadas e pós-modernizantes do interpretativismo que desembocaram em uma estirpe particular de antropologia “reflexiva” (Marcus e Clifford, 1986). Animadas por “considerações falsamente sofisticadas sobre ‘o processo hermenêutico de interpretação cultural’ e a construção da realidade através da etnografia”, estas correntes teriam levado a “uma explosão de narcisismo” em resposta à “repressão positivista” (Bourdieu, 2003b, p.282) que outrora obstava a expressão narrativa da etnografia como experiência particular de uma subjetividade parcial e situada.
Opondo-se en bloc ao subjetivismo empático, ao dialogismo hermenêutico, ao objetivismo estruturalista e, finalmente, ao apelo à “reflexividade narcísica da antropologia pós-moderna” (Op.cit, p.281), o sociólogo francês advoga um procedimento de “objetivação participante” (Bourdieu e Wacquant, 1992, p.253; 2003b) baseado no diagnóstico sociocientífico das condições, inseparavelmente sociais e epistêmicas, de teorização e pesquisa acerca de um contexto sociocultural estrangeiro. Este caminho metodológico representa a aplicação específica, na investigação etnológica, da inflexão particular que Bourdieu empresta à reflexividade epistêmica nas ciências sociais, capazes de aplicar ao entendimento de si próprias os instrumentos de objetivação cunhados no seu interior para a elucidação de outras realidades empíricas (Bourdieu, 1993b, p.274).
Voltada, assim, à objetivação da relação subjetiva que o antropólogo mantém com seu objeto e das condições sociais de possibilidade de tal relação, a etnografia reflexiva advogada por Bourdieu não leva “a um subjetivismo relativista ou mais ou menos anticientífico” que deságua na tese derridiana de que “tudo é...nada além de...texto”. A objetivação participante é pensada, ao contrário, como uma estratégia metodológica para a conquista da “objetividade científica genuína” (Bourdieu, 2003b, p.282). O retorno reflexivo do sujeito objetivador sobre suas próprias categorias de entendimento, bem como sobre os interesses que motivam seu trabalho de objetivação, permitiria a ele controlar as influências distorcivas de tais pressupostos e interesses sobre o retrato do universo societário que ele pretende construir.
Nesse ponto, críticos poderiam evocar o lukácsiano Michael Löwy (1994), que comparou pitorescamente a ideia de que a objetividade do conhecimento poderia ser obtida através de um mero ato de boa vontade intelectual ao fantástico feito em que o famoso mitomaníaco Barão de Munchausen escapara do pântano em que afundava puxando a si próprio pelos cabelos. No entanto, uma vez que a auto-objetivação sociocientífica propugnada por Bourdieu não recorre à mera introspecção ou à apologia das boas intenções epistemológicas, mas a uma explicação-compreensão sociológica de si, ele poderia retrucar que os instrumentos de objetivação acumulados pela história da ciência social são como cipós ou galhos de árvores nos quais o estudioso pode se agarrar para sair do pântano de seus preconceitos sociocognitivos:
Tomar a inserção social do pesquisador como um obstáculo insuperável para a construção de uma sociologia científica é esquecer que o sociólogo encontra armas contra as determinações sociais na própria ciência que as ilumina, e portanto em sua consciência. A sociologia da sociologia, que permite mobilizar, contra a ciência que se faz, as aquisições da ciência já feita, é um instrumento indispensável do método sociológico: fazemos ciência – e sobretudo sociologia – tanto em função de nossa própria formação como contra ela” (Bourdieu, 2001: 5-6).Para oferecermos um exemplo, vejamos as investigações de Bourdieu sobre as estratégias matrimoniais na sociedade Cabila (Bourdieu, 1977; Bourdieu, 1990b). Naturalmente, ele aqui denuncia com veemência a abolição fictícia da distância epistêmica e social entre pesquisador e pesquisados pelo mero recurso à observação participante, como se fosse preciso apenas uma intenção sincera para colocar-se em pensamento e experiência no lugar do nativo. O mestre francês afirma que o necessário para se “aproximar” verdadeiramente do nativo é objetivar reflexivamente todos os pressupostos tacitamente inscritos na própria situação de objetivação exterior e distanciada. Isto vale, em particular, para o abismo que separa o etnógrafo - que busca decodificar atos, eventos e símbolos por meio do entendimento explícito - e o nativo - um “ser-no-mundo” (Heidegger) continuamente engajado nas respostas às demandas práticas urgentes do mesmo, apoiando-se em um entendimento tácito, ao mesmo tempo infraconsciente e imediato, do universo em que está imerso. Estando fora do teatro do qual é espectador, o pesquisador estrangeiro está tentado a perder de vista as limitações analíticas acarretadas por essa distância, as quais ele só tem condições de superar retornando, por um esforço auto-reflexivo, à sua experiência de ator situado no seu próprio mundo – portanto, descobrindo o “nativo” dentro de si e inserindo em sua teoria da prática uma teoria da diferença entre um relacionamento teórico e um relacionamento prático com o universo social. A ignorância irrefletida de tal diferença leva o antropólogo projetar inadvertidamente sua relação desprendida com o mundo etnografado na mente do próprio nativo, o que dá ensejo, segundo Bourdieu, a diversas formas da “falácia escolástica” (Bourdieu e Wacquant, 1992, p.123) - por exemplo, as caracterizações intelectualistas das motivações da conduta individual que assumem na teoria da escolha racional ou no “legalismo” artificial que supõe da parte dos atores uma conformidade consciente com normas explicitamente estatuídas (Bourdieu, 1990a, p.21).
Portanto, a “familiarização do exótico” reclamada para a apreensão do ponto de vista nativo deveria ser perseguida, segundo o sociólogo francês, não por meio da imersão empática pura e simples na sociedade indígena ou de uma situação hermenêutica de “fusão de horizontes” interpretativos, mas sim por uma objetivação participante, capaz de ultrapassar tanto a “imersão mistificada” quanto o objetivismo do “olhar absoluto” preconizado pelo seu mestre estruturalista Lévi-Strauss (Bourdieu e Wacquant, 1992, p.68). Além disso, o procedimento duplo de objetivação simultânea do objeto e da relação (social e epistêmica) do sujeito cognoscente com tal objeto não reclama apenas um novo percurso para a familiarização do exótico, no caso da investigação de contextos sociais estrangeiros ao cientista social. Ele também importa no processo correspondente de “exotização” ou estranhamento metodologicamente construído do familiar nas situações em que os pesquisadores estudam os próprios universos em que estão imersos - em particular, é claro, o terreno onde é constituído e atua o Homo academicus, título de um estudo (1988) que constitui, nesse sentido, tanto uma análise histórico-sociológica substantiva do mundo universitário francês quanto um exercício experimental de método.
Seja no caso da familiarização, seja no da exotização do objeto, o que está em jogo é a tentativa de explicar e explicitar as dimensões motivacionais e recursivas das práticas sociais que são invisíveis à cognição consciente dos agentes, precisamente por serem taken for granted, como diria Schutz. A dissolução da antinomia entre objetivismo e subjetivismo resulta, assim, em uma abordagem que combina ambas as formas pelas quais a sociologia buscou tradicionalmente iluminar o saber de senso comum: a) a objetivação de circunstâncias estruturais que influenciaram os atores a tergo, isto é, “pelas suas costas”, à revelia de sua volição e consciência, ou precisamente através da moldagem socializante de seus interesses volitivos e “hábitos diretrizes da consciência” (Mauss); b) a explicitação fenomenológica e discursiva de dimensões da motivação, da cognição e da conduta dos atores que operam em nível implícito ou tácito.
É claro que a proposta de Bourdieu não está isenta de problemas, mas, se ainda estiver vivo, falarei sobre isso em outro post.
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Bibliografia
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quinta-feira, 10 de novembro de 2011
Entre o sim e o não, uma boa ética da discussão pode resolver: notícias de um célebre projeto de especialização no ensino médio de sociologia
Por Tâmara de Oliveira
Em 12 de setembro último, o Cazzo contribuiu para tornar pública uma polêmica envolvendo professores, estudantes e egressos do Departamento de Ciências Sociais (DCS) da Universidade Federal de Sergipe (UFS), mas que merece a atenção de qualquer cientista social do país: aquela envolvendo o projeto MEC/CAPES de curso de "Especialização em Ensino de Sociologia no Ensino Médio - modalidade à distância." O centro de educação à distância da UFS, CESAD, aderiu ao projeto e o professor que elaborou a proposta local, membro do DCS, decidiu que o Departamento de Ciências Sociais deveria ser a primeira instância a se pronunciar sobre a mesma. Daí sua tramitação no DCS/UFS, posto que, em geral, os projetos do CESAD gozam de autonomia em relação aos departamentos de nossa universidade que, dessa forma, limitam-se a aprovar ou não a participação eventual de seus professores.
Acho que nosso colega tomou uma excelente decisão, atravessada pelo que Habermas (2003) reflete através de sua ética da discussão. Com efeito, ao invés de se proteger sob as asas de papéis institucionais que, no caso, tornavam prescindível a necessidade da aprovação departamental do projeto, ele escolheu submeter seu trabalho à discussão pelo Conselho Departamental, permitindo que a polêmica aparecesse e que os cientistas sociais da UFS se ocupassem com um assunto que, regra geral, só interessa àqueles que se envolvem mais diretamente com as licenciaturas e/ou com o ensino médio da sociologia no país.
O núcleo dessa polêmica envolveu duas variáveis importantes do ensino da sociologia no ensino médio, mas que na prática podem se chocar: o aperfeiçoamento de jovens graduados para uma melhor inserção profissional, diante da demanda crescente do ensino da sociologia e num contexto de funcionamento precário da legislação federal sobre o exercício da profissão de sociólogo; a formação continuada de professores já atuando precariamente nesse ensino. No primeiro polo da polêmica, a preocupação era que esse projeto, como formulado, legitimasse a resistência do governo estadual à abertura de vagas para sociólogos e à mudança da legislação estadual sobre o exercício do ensino médio da sociologia, ao especializar, numa só “fornada”, 150 professores para preencher carga horária, enquanto seus próprios graduados não tem oportunidade de aperfeiçoamento. No segundo polo, a preocupação referia-se a uma reivindicação antiga de profissionais envolvidos com as licenciaturas e com o ensino médio da sociologia no Brasil, qual seja a de se agir contra a fragilidade dos conteúdos ministrados – muitas vezes oscilando entre lamentáveis conteúdos da não saudosa Educação Moral e Cívica e questionáveis conteúdos de militantismo político –, através da formação continuada de professores já atuando nesse ensino.
Estávamos assim, entre os convictos de que o projeto representava um “duro golpe nos alunos licenciados” e os convencidos de que ele apenas poderia “atenuar a necessidade de formação continuada de professores já atuando”, quando houve a primeira reunião do Conselho Departamental sobre a proposta local de adesão ao projeto MEC/CAPES. Reunião histórica, cuja condução teria animado Habermas e sua teoria da ação comunicativa (1999) e, à qual já me referi aqui no Cazzo. Aquela mesma que precisou acontecer no auditório de Psicologia e Ciências Sociais, porque muita gente quis estar de corpo presente na discussão.
E foi durante essa reunião que eu fui tendo a impressão de que havia no ar algo mais grave do que a polarização entre duas posições, e que, possivelmente, estava na raiz dela própria: boa parte dos conselheiros, assim como do público da reunião, não conhecia suficientemente (ou não conhecia de jeito nenhum) o projeto em discussão. Inclusive esta que vos escreve! Fui trocando olhares com meus colegas e percebendo que muitos deles estavam como eu: mezzo perdidos/mezzo perplexos e bastante preocupados. Matutando sobre isso enquanto a discussão continuava, considerei que aprovar, reprovar ou reformular fosse lá o que fosse numa situação de tamanho desconhecimento do que estava em questão, seria uma tremenda irresponsabilidade acadêmica coletiva. Foi assim que pedi vista do processo e o justifiquei – que foi acatado pela Presidente do Conselho e recebido com alívio por aqueles que, como eu, estavam convencidos de que ainda era cedo e o clima estava muito quente para uma decisão.
Apresento a seguir as principais considerações de minha análise do projeto, da discussão e da decisão departamental, considerando que o Cazzo, por ter contribuído para tornar pública nossa polêmica, é um espaço mais do que legítimo para tornar pública sua resolução.
Enquanto lia o projeto MEC/CAPES e a proposta de adesão local UFS/CESAD, eu ia pensando: é verdade..., programas e projetos referentes a políticas públicas nos chegam cada vez mais acabados, verticalizando a interação instâncias governamentais/universidades. Surgem uns “pacotes prontos” e corremos o risco de virar meros executores de políticas das quais desconhecemos as motivações concretas e, sobretudo, as tensões entre os parceiros que as formulam e/ou sustentam. Conhecemos apenas os princípios genéricos e ideais que os animam, como por exemplo: elevar o nível do ensino médio da sociologia no país, fomentar uma educação escolar para a ética, a cidadania e a diversidade; combater a violência urbana; etc., etc. Podemos nos submeter voluntariamente ao que mal conhecemos ou desconhecemos completamente, mesmo se com as melhores intenções do mundo. Desde que eles citem democracia, direitos, diversidade, desnaturalização e tolerância, podem enfeitiçar nossa reflexividade e nos conformar bovinamente às políticas públicas. Logo nós, que, por ofício, e inspirando-me aqui no que Cynthia Hamlin (2011) comenta sobre o Realismo Crítico de Margaret Archer, deveríamos cultivar a metarreflexividade, ou seja, aquele tipo de reflexividade que desafia a comodificação e a burocratização das relações humanas.
Com efeito, embora o professor que elaborou o programa tenha convidado todos os professores da área de sociologia do departamento à participação no curso, mesmo aqueles que aceitaram e tem seu nome no projeto demonstraram, durante a polêmica, não o terem lido com suficiente atenção – ou não o terem lido de forma alguma. Não fomos suficientemente responsáveis. Como se funcionássemos por piloto automático, supomos que um projeto específico de formação continuada de professores de sociologia do ensino básico é, a priori, bom e não perdemos tempo para conhecer sua formulação e perspectivas concretas.
Todavia, inspirando-me agora no construtivismo à moda de P. Berger e Thomas Luckmann (1990), a fonte central de mudança da realidade social (tanto a objetiva quanto a subjetiva) está nos problemas, ou seja, em experiências problemáticas que põem em cheque nossas formas tipificadas/institucionalizadas de pensar, sentir e agir. Viva então aquela polêmica para cuja publicidade o Cazzo contribuiu! Tremo só em pensar que, se não fosse por ela, poderíamos ter aprovado o projeto MEC/CAPES assim, sem mais nem menos, como bons soldados acadêmicos sem tempo para pensar. Ou tê-lo reprovado sob um tipo de convicção que nunca é boa conselheira: aquela que não vem de uma argumentação fundamentada no conhecimento reflexivo do assunto em discussão, mas em informações vagas e/ou leituras apressadas. A polêmica e nossa primeira reunião nos deram tempo para conhecer o projeto, pensá-lo e assim podermos resgatar nossa responsabilidade acadêmica.
Em primeiro lugar, formulando perguntas legítimas: qual a pertinência do processo de seleção dos projetos locais, já que o da UFS/CESAD foi aprovado sem conter um diagnóstico efetivo que pudesse prognosticar seu impacto no terreno local e justificar sua execução em Sergipe? Não seria mais útil equilibrar as vagas entre regiões do interior e da Grande Aracaju (onde o número de turmas do ensino médio da sociologia é muito maior), mesmo que isso significasse alterar um ou dois dos polos de educação à distância visados? Não teria sido mais estratégico, para a CAPES, grande financiadora do aperfeiçoamento de cientistas sociais do país, num contexto em que a regulamentação da profissão de sociólogo é na prática precária, que especializações voltadas para graduados em ciências sociais fossem, se não priorizadas, pelo menos melhor contempladas pelo projeto? Ainda pensando no funcionamento precário do exercício da profissão de sociólogo, fato problemático para a viabilidade das licenciaturas em ciências sociais do país, por que o projeto pedagógico MEC/CAPES define seu público-alvo como, cito, « professores graduados que estão atuando nos sistemas públicos de ensino e ministram aulas nos Ensinos Fundamental e Médio »? Ora, com definição de tamanha amplitude, abre-se sim a possibilidade de que projetos locais de adesão contribuam ativamente para a ocupação de parte da demanda de professores de sociologia por professores de qualquer área de conhecimento que, não lecionando essa matéria, percebam que esse curso é uma oportunidade de ouro para completar sua carga horária.
Dir-se-ia que nada disso tem importância. Apenas que projetos fechados consigam aderentes, que vagas sejam ofertadas (sem nenhuma justificativa sobre sua quantidade) e verbas sejam utilizadas, em projetos rápidos e recheados de princípios ideais das entidades parceiras. Afinal de contas, a democratização do ensino superior que, no Brasil, exprime-se também pela expansão universitária, constrói-se apenas para fornecer a ilusão de inserção social, via ensino superior de jovens – como disse pertinentemente o sociólogo Stéphane Beaud (2003) sobre a democratização escolar francesa – ou para possibilitar efetivamente que eles adquiram uma profissão socioeconomicamente viável?
As perguntas acima tornavam compreensível a petição pública elaborada por estudantes e egressos para que o DCS reprovasse o projeto como estava formulado, remetendo à possibilidade de que ele dissimule uma intenção de remedeio do ensino médio de sociologia através da formação para inserção de professores de qualquer área de conhecimento no ensino da matéria, evitando assim que a demanda crescente por turmas de sociologia obrigue a abertura de vagas para graduados em ciências sociais. Ou, mesmo que não evite, oferecendo margem de manobra a governos estaduais, em sua economia política de vagas. Para analisar a pertinência dessa argumentação, tivemos que ponderar sobre a dimensão legal que envolve o ensino médio da sociologia, articulando-a a formulação do público-alvo pelo projeto de adesão local (projeto UFS/CESAD).
Neste sentido, levamos em conta o fato de que um curso de especialização lato senso não significa diploma de habilitação, mas certificado de formação aperfeiçoada em uma área de conhecimento. Ou seja, um profissional não graduado na área, apenas especializado, não será um concorrente de graduados em ciências sociais, no que diz respeito a vagas que se abram para cientistas sociais no ensino médio público. Além disso, fato manifestando que a proposta local equilibrou melhor as duas variáveis aqui já colocadas do que a do MEC/CAPES, o projeto UFS/CESAD recortou mais seu público-alvo, definindo-o como, cito, « professores graduados que estão atuando nos sistemas públicos de ensino e ministram aulas de Sociologia no Ensino Médio ». Lembramos também que o público-alvo do projeto local, professores já atuando no ensino médio da sociologia das redes públicas, não deixará mais de atuar nesse ensino – com ou sem especialização.
Sendo assim, a proposta UFS/CESAD de fornecer formação em sociologia e ciências sociais para esses professores, atendendo reivindicação antiga de profissionais envolvidos com as licenciaturas e com o ensino médio da sociologia, é mais do que legítima. Não se pode supor que 150 vagas para uma especialização à distância de professores já ensinando sociologia, possam ameaçar a abertura de vagas para habilitados na rede pública de educação. Melhor dizendo, este curso poderia apenas fornecer, ao menos idealmente, melhor conhecimento da disciplina àqueles que já a ensinam e vão continuar ensinando-a, em regiões do estado que são potencialmente recusadas por graduados em ciências sociais – como aconteceu com alguns aprovados do concurso de 2003.
Diante disso, o que continuava válido no saber pano-de-fundo (Habermas, 1999) da reivindicação de estudantes e egressos, era a constatação de que a formação de nossos licenciados na graduação ainda sofre de uma estrutura curricular pensada predominantemente para o nosso bacharelado. Sendo assim, considerar que incluir nossos egressos no público-alvo do projeto UFS/CESAD faz parte das necessidades básicas para o ensino da sociologia no ensino médio em Sergipe, é absolutamente legítimo. Justificar que as instituições formadoras e os sistemas de ensino locais tem a necessidade de reformular seu próprio público-alvo seria uma argumentação válida para propor sua alteração.
Mas a análise do projeto revelou outro problema, estrangeiro à polêmica que o envolvia até então e referente ao próprio objetivo central do MEC e da CAPES, qual seja o de fornecer formação continuada a professores já atuando no ensino médio, para melhorar a qualidade dos conteúdos e da orientação metodológico-pedagógica. Um primeiro estranhamento: por que a bibliografia do curso também está pré-determinada (embora se preveja verba para complementação bibliográfica), já que a elaboração do material didático de outros cursos do CESAD foi atribuição dos professores responsáveis pelas disciplinas? Em outros termos, porque retirar a esse ponto a autonomia de professores universitários em relação aos conteúdos que eles ensinam, justamente num curso de especialização à distância? Além disso, uma análise preliminar dos programas e bibliografias das disciplinas revelou que, se em geral os módulos são bem elaborados, as disciplinas teóricas tem conteúdos adequados e as disciplinas pedagógicas são configuradas de modo a fomentar, pelo menos potencialmente, um ensino dinâmico e dialógico, nem todas as disciplinas parecem ter recebido o mesmo cuidado na elaboração da ementa, do programa e da bibliografia. Apresentando alguns desses problemas:
a) Participação política e cidadania: além de uma profusão dificilmente administrável de temas entre a descrição geral, a ementa, os conteúdos e os objetivos, pode-se perceber uma possível identificação entre sociologia política e formação política – o que pode significar contaminação por uma das tendências preocupantes no ensino médio da sociologia no Brasil, qual seja a de sua identificação com militantismo político – estudantil, de minorias ou categorias organizadas, etc., tornando o ensino da sociologia potencialmente refém de vieses ideológicos, esses inibidores nem um pouco naturais da reflexividade – seja dos que ensinam a sociologia, seja dos que a aprendem. Ora, tendo em vista que o projeto MEC/CAPES tem como princípios norteadores do curso as noções de desnaturalização e estranhamento, princípios estes que fundamentam o olhar sociológico sobre as realidades sociais, essa possível identificação entre sociologia política e formação política os fere irremediavelmente.
b) Estrutura e mudanças sociais: enquanto a descrição, a ementa, os objetivos e os conteúdos parecem perfeitamente adequados às ambições do curso, a bibliografia parece longe de ser capaz de contemplá-los.
c) Espaço escolar: renovações teóricas importantes e fundamentais para as ambições do curso, principalmente porque são resultantes de pesquisas empíricas e comparadas, como aquelas resultantes de análises de formas contemporâneas de desigualdade e segregação sociais produzidas pela escola, demandariam uma complementação bibliográfica.
Depois de uma longa, serena e ética discussão sobre esses aspectos problemáticos e problematizados do projeto, em reunião aos 05.10.2011 (também histórica, também no auditório, diga-se de passagem), o DCS/UFS chegou a uma decisão (quinze votos a favor, nenhum contra e uma abstenção) que sintetizo a seguir:
Considerando que o projeto de curso proposto não elaborou o necessário diagnóstico das carências efetivas do sistema público de ensino médio de sociologia em Sergipe; considerando que o projeto do curso não ponderou suficientemente sobre o necessário equilíbrio local entre, por um lado, formação continuada de professores da rede pública já atuando no ensino médio de sociologia e, por outro lado, o aperfeiçoamento de nossos graduados em ciências sociais para que eles possam atender com melhor qualidade à demanda crescente do ensino médio de sociologia em Sergipe; considerando que os dois aspectos acima colocados implicam na necessidade potencial de reequilibrar o público-alvo do curso proposto; considerando que o projeto do curso não analisou os programas e bibliografias das matérias do curso, para construir necessárias complementações bibliográficas e ajustes metodológico-pedagógicos consonantes com os princípios norteadores do projeto MEC/CAPES, a saber, desnaturalização e estranhamento sociológicos; considerando que, caso reformulado, o curso proposto pode contribuir para a formação permanente dos profissionais da área de sociologia, o Conselho Departamental decide por uma aprovação condicional do projeto UFS/CESAD, ou seja, sob a condição de que seja reformulado segundo as considerações acima, por uma comissão designada pelo Conselho Departamental de Ciências Sociais da Universidade Federal de Sergipe. Designamos os membros da comissão na mesma reunião e estamos cuidando de reformulá-lo até a última reunião do ano do DCS, quando ele será novamente discutido para deliberação – reflexiva e responsavelmente, como devem agir os acadêmicos.
Bibliografia
BEAUD, S. 80% au bac...et après? Les enfants de la démocratie scolaire. Paris: La Découverte, 2003.
BERGER, P. / LUCKMANN, T. La construction sociale de la réalité. Paris: Masson/Armand Colin, 1996.
HABERMAS, J. Droit et démocratie. Paris: Gallimard, 1999.
HABERMAS, H. L’éthique de la discussion et la question de la vérité. Paris: Grasset, 2003.
HAMLIN, C. Apresentação da Conferência de Margaret Ascher no XV Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia. Que Cazzo é esse. Recife, jul. 2011. Disponível em: http://quecazzo.blogspot.com/2011_07_01archive.html
HABERMAS, H. L’éthique de la discussion et la question de la vérité. Paris: Grasset, 2003.
HAMLIN, C. Apresentação da Conferência de Margaret Ascher no XV Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia. Que Cazzo é esse. Recife, jul. 2011. Disponível em: http://quecazzo.blogspot.com/2011_07_01archive.html
terça-feira, 1 de novembro de 2011
Habermas, o papa do humanismo
Por Frédéric Vandenberghe -Professor e Pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ). Texto originalmente publicado em Boletim Cedes, Out - Dez 2011. Disponível em http://www.soc.puc-rio.br/cedes/. Cedido ao Cazzo pelo autor.
Parece que Habermas está escrevendo um livro sobre as religiões. Com certeza, não será um tratado de Teologia. Talvez, nesta obra, tenha um pouco de teologia política, mas tudo indica que seu objetivo maior será a proposição de uma reflexão mais sistemática e politicamente motivada sobre o pós-secularismo e o papel das religiões no mundo atual. Convenhamos que a “situação espiritual do nosso tempo” – para retomar o titulo de um famoso texto de Karl Jaspers, de 1931 – é bastante preocupante, especialmente no Velho Continente. Em nome do racionalismo, do secularismo, do humanismo e mesmo do feminismo – que acabaram por inverter e perverter tudo o que sempre houve de melhor na tradição ocidental –, a Europa tem se tornado intolerante em relação às outras tradições que, eventualmente, criticam a sua propalada tolerância e questionam as bases morais de seu modo de viver.
A Europa é humanista, secular, liberal, esclarecida, democrática, pacífica, ou em uma palavra, habermasiana. Supostamente, em nome da liberdade de expressão, se pode ofender o Profeta e os muçulmanos. Nesta situação de recrudescimento das tensões religiosas, a última coisa que se deseja é o estímulo a um debate público sobre as religiões. Já sabemos quais podem ser as consequências desse processo: uma polarização dos espíritos, seguida quase invariavelmente de uma despedida oficial do “multiculturalismo” pelas mais altas autoridades dos países europeus – Balkenende, na Holanda; Cameron, na Inglaterra; Sarkozy, na França; e Merkel, na Alemanha. Confrontado com o ressurgimento da intolerância e a virulência da xenofobia, Habermas, em um momento de “desespero”, confessou, em uma entrevista para Giovanna Borradorri, que, às vezes, ele mesmo duvida da sua filosofia da comunicação e do consenso.[1]
Historiadores do presente e estudiosos das relações internacionais dizem que a globalização significa o fim da “ordem de Westfalia” com os seus Estados soberanos e territórios com fronteiras bem delimitadas. Os processos globais que acontecem em cima, através e embaixo do Estado têm posto em xeque sua soberania e a autodeterminação de uma maneira tão radical que a estrutura estabelecida com a Paz de Westfalia (1648) seria hoje em dia ultrapassada pela realidade das redes e dos fluxos transnacionais. Esta tese não é falsa, mas a volta em todos os lugares do fanatismo religioso sugere não apenas que estamos além, mas também de volta ao século XVII, com a diferença que agora as “guerras das religiões” – ou, o “choque das civilizações”, para falar como Huntington –, não só acontecem entre os Estados, mas também dentro deles. Na atual conjuntura, diversas tensões são intensificadas não somente entre as religiões, mas também entre a religião e o secularismo.
Estas tensões explodiram de maneira espetacular num onze de setembro. Em vez de tratar o ato terrorismo como um crime (um crime contra a humanidade), o presidente Bush considerou o ataque como uma declaração de guerra e lançou as suas tropas em dois conflitos, reagindo a uma provocação com uma reação desproporcional que já custou 3 trilhões de dólares e deu início ao declínio do império americano. Se o 11/09 se configurou como um êxito inesperado do ponto de vista dos fundamentalistas muçulmanos – que, como todos terroristas, buscam provocar uma reação violenta do Estado –, deve-se dizer que, para as minorias muçulmanas nos Estados Unidos e na Europa, o mesmo foi uma verdadeira catástrofe. A “Islamofobia” se tornou tão virulenta que, mal disfarçada por uma cortina culturalista mais politicamente correta, trouxe à tona o velho racismo, que trata o Islã, no melhor dos casos, como uma religião atrasada e, no pior, como uma ideologia política incompatível com a civilização européia.
Ainda que Habermas tenha se despedido há muito tempo de um secularismo militante que desconsidera, como outrora o próprio Marx, a religião como mera ideologia – na Teoria da Ação Comunicativa, por exemplo, a religião era racionalizada e, portanto, eliminada como uma espécie de atavismo –, foi somente na ultima década que ele começou a se interessar pelo tema da fé. [2] Em 2001, o mais conhecido dos filósofos vivos ganhou o prestigioso prêmio da Paz das Livrarias Alemãs. Algumas semanas depois dos ataques terroristas nos Estados Unidos, ele proferiu uma palestra na Pauluskirche, em Frankfurt, com o título “Crer e saber”. Já em 2005, ele debateu com o então Cardeal Joseph Ratzinger sobre a relação entre a razão e a fé nas sociedades pós- seculares.
Olhando sob certo prisma, pode parecer que o velho Habermas tem se empenhado em uma busca pela reabilitação das religiões. Mas os humanistas podem ficar tranquilos: o filosofo é fiel ao Iluminismo até o fim e “sem amém”. Ele não divaga sobre a espiritualidade e fica agnóstico, mas se coloca aberto para ouvir e aprender com os crentes. Habermas, inclusive, fala do “núcleo opaco” da experiência religiosa que permanece inacessível a ele. Tenho, inclusive, a impressão que o “Papa do Esclarecimento” usa e instrumentaliza a religião para seu próprio projeto crítico que carece de fundo e de forças motivacionais. Diferentemente dos “fundamentalistas do Esclarecimento”, ele estima – ainda que não diga isto de maneira tão aberta quanto eu – que a religião, antes de ser um problema, faz, na verdade, parte da solução. O que as religiões universais compartilham com o humanismo são os princípios da solidariedade e a defesa dos valores suaves. Não é apesar da, mas graças à fé, que eles mantêm, em tempos duros e violentos de transições como o nosso, uma sensibilidade para injustiça e o sofrimento do próximo. Nos desvios psicológicos e nas patologias sociais, o crente repara os sinais de um mundo desencantado, sem significado, esperança ou alegria.
Enquanto os “fundamentalistas do Esclarecimento” e os “Islamofascistas” só falam a respeito de e sobre os outros, Habermas fala com e para os crentes. Isto faz toda a diferença, até mesmo porque a tolerância, entendida como “dissenso racional” – de forma semelhante a Rainer Forst, o seu ex-assistente e a figura principal da quarta geração da Escola de Frankfurt, [3] – só começa além do racismo. Em vez de danações fanáticas e excomunhões midiáticas, ele lança mão de uma “advocacia pós-metafísica”, de um “humanismo multicultural e confessional”, democraticamente esclarecido, que não é só consciente da sua própria dependência arqueológica da religião – o humanismo do século XXI é o herdeiro do humanismo da Renascença de Pico e Erasmo –, mas sabe também das suas cegueiras e dos limites da razão. Uma sociedade pós-secular é uma sociedade que aceita a crítica do outro e pratica a auto-crítica.
Sabendo que as religiões não desparecerão, ela reconhece que a trajetória européia não é mais o modelo para todos, mas a exceção. Não é mais possível reduzir a religião à superstição. Ao contrário, Habermas frisa o teor utópico e escatológico do Evangelho e insiste sobre a necessidade de se fazer justiça às intuições morais dos crentes. As religiões não são só uma expressão que vem do fundo do desespero, mas também uma fonte ilimitada de esperança. Diferentemente da velha crítica racionalista e iluminista que queria banir a religião do mundo, a nova crítica mostra-se disposta a ouvir e aprender com ela, partido do pressuposto segundo o qual o outro pode ter razão. É uma “crítica redentora” (rettende Kritik) que pretende traduzir o potencial semântico e o conteúdo teológico da religião em um discurso pós-metafísico que seja, a princípio, compreensível e aceitável para agnósticos e ateus. [4]
A radicalização ecumênica pressupõe que todos os participantes no debate “inter” e “transreligioso” estão dispostos a adotar a perspectiva do outro. O ateu tem que ser capaz de aceitar que a sua própria doutrina seja tão falível quanto aquela professada pelo seu interlocutor. Como emenda ao liberalismo político de John Rawls, Habermas estima que não é fair impor o secularismo aos crentes. Contra Rawls, ele acha que a religião não é um elemento restrito à vida privada. Elementos religiosos podem ser introduzidos no debate público. Mas a disposição para conversar e discutir tem que vir de todas as partes. Além dos direitos humanos, os crentes têm que aceitar os princípios básicos da democracia. Nesse sentido, a secularização deve ser entendida como um processo de aprendizagem em mão dupla, no qual humanistas e crentes têm que estar dispostos a relativizar seus próprios fundamentos em nome de uma sociedade capaz de lidar com as diferenças. Essas diferenças, e também aqueles que as defendem, continuarão a existir.
A sociedade pós-secular é uma sociedade multicultural, com a consciência de que as diferenças podem ser exacerbadas, inclusive conduzindo a disputas. Mas, no fim das contas, não é essa a essência da democracia? Um processo inacabado de aprendizagem de diferenças e disputas? Sim, de fato, a democracia é o regime no qual existe um consenso segundo o qual não é sempre possível se chegar a um consenso. Não resta dúvida de que Habermas entrará na história como o filósofo do consenso, mas o que ele tem defendido agora não é nada mais, mas também nada menos, do que o dissenso racional.
Habermas é bem consciente do paradoxo do Estado Democrático de Direito. Precisamente porque ele sabe que a cultura política da tolerância não pode mais ser considerada como uma aquisição, ele lança um apelo às religiões. O Estado de Direito precisa da religião da mesma maneira que a religião precisa do Estado, até mesmo porque é ele quem garante a liberdade religiosa na Constituição. Quando o humanismo secular e o racionalismo se convertem em fundamentalismo do Iluminismo, a religião oferece um fundo motivacional para escutar e ouvir o outro. Como esta insistência sobre a necessidade de ouvir o outro, a teoria da ação comunicativa se torna mais receptiva. Não são mais os atos de fala que estão no cerne da discussão, mas a receptividade e a abertura ao outro. Este outro não é qualquer outro, mas é um outro como eu, ele ou ela, isto é, um homem ou uma mulher, talvez um amigo potencial, mas com certeza, um cidadão com quem posso aprender e com quem devo conviver.
A disposição para aprender com o outro caracteriza a sociedade pós-secular. A aprendizagem só pode continuar na e pela comunicação. Isto não vale só para os crentes, mas também para nós, humanistas e republicanos. O Esclarecimento só merece ser defendido sob a condição de estar consciente dos seus próprios limites e de se afastar de uma afirmação agressiva do secularismo. Neste sentido, o pós-secularismo é uma etapa da realização de um multiculturalismo verdadeiro, que seria ao mesmo tempo cosmopolita e ecumênico.
Notas
[1] HABERMAS, Jürgen. “Fundamentalismus und Terror”. In: Der Gespaltene Westen. Kleine politische Schriften X. Frankfurt: Suhrkamp, 2004, pp. 22-23.
[2] Os textos principais sobre a religião foram publicados em Zwischen Naturalismus und Religion. Philosophische Aufsätze, Frankfurt: Suhrkamp 2005. Outras peças do debate sobre a religião podem ser encontrados em Langthaler, R. e Nagl-Docekal, H. (Org.): Glauben und Wissen. Ein Symposium mit Jürgen Habermas, Vienna: Oldenbourg-Verlag 2007; Reder, M. e Schmidt, J. (Org.): Ein Bewuβtsein von dem, was fehlt. Eine Diskussion mit Jürgen Habermas, Frankfurt: Suhrkamp 2008.
[3] FORST, R. Toleranz im Konflikt: Geschichte, Gehalt und Gegenwart eines umstrittenen Begriffs, Frankfurt: Suhrkamp, 2004.
[4] Sobre a “crítica redentora”, ver o artigo excepcional “Bewusstmachende oder rettende Kritik. Die Aktualität Walter Benjamins”, in HABERMAS, J. Kultur und Kritik. Verstreute Aufsätze. Frankfurt, Suhrkamp, 1973.
sábado, 29 de outubro de 2011
Por Renan Springer de Freitas (UFMG)
Nos últimos cinqüenta anos o pensamento teológico cristão cunhou a expressão “teologia da superação” (“displacement theology”) para se referir, de forma pejorativa, à concepção teológica, crucial para a imagem que o cristianismo construiu a respeito de si próprio, de que a saga do povo de Israel relatada nas escrituras hebraicas foi desde sempre uma prefiguração da presença atemporal de Jesus no mundo. De acordo com esta concepção, que já se esboça na epístola de Barnabás (final do primeiro século), a morte e ressurreição de Cristo tornou o judaísmo obsoleto porque universalizou o acesso à graça divina que os judeus haviam outrora restringido a si próprios. A substituição do judaísmo pela fé cristã foi posteriormente atribuída à pregação de Paulo e, no século XIX, o teólogo protestante Ferdinand C. Baur arrematou essa concepção “superacionista” ao postular que a passagem de Paulo significou a transição de uma “religião étnica, particularista”, o judaísmo, para “a idéia universal de Cristianismo”.
Judaísmo, racionalismo e teologia cristã da superação: um diálogo com Max Weber discute o vínculo existente entre essa concepção teológica e uma discussão de inequívoca centralidade na sociologia: a que diz respeito ao processo que conduziu ao racionalismo ocidental. Este vínculo é particularmente visível na tese weberiana, desenvolvida recentemente por Wolfgang Schluchter (em The rise of western rationalism), de que a doutrina profética hebraica trazia em germe certas concepções inovadoras cujas potencialidades éticas o povo judeu, em razão de sua condição de “pária”, não foi capaz de desenvolver e, por esta razão, foi necessário que o particularismo judaico viesse a ser substituído, ou superado, pelo universalismo Paulino para que tais potencialidades pudessem, de fato, se desenvolver no ocidente. Argumenta-se que esta linha de raciocínio se limita a reeditar a visão superacionista, peculiar ao pensamento teológico do século XIX, a respeito da importância histórico-cultural do trabalho missionário de Paulo, da natureza do judaísmo farisaico e da relação entre ambos. Impõe-se, nesse caso, a tarefa de apresentar um quadro mais veraz a respeito de tudo isto. É o que me proponho a fazer no presente livro.
sábado, 22 de outubro de 2011
O Manifesto Slow Science
Somos cientistas. Não blogamos nem tuitamos. Não temos pressa.
Sem mal entendidos. Somos a favor da ciência acelerada do início do século XXI. Somos a favor do fluxo interminável de revistas com pareceristas anônimos e seu fator de impacto; gostamos de blogs de ciência e mídia, e entendemos as necessidades que relações públicas impõem. Somos a favor da crescente especialização e diversificação em todas as disciplinas. Queremos pesquisas que tragam saúde e prosperidade no futuro. Estamos todos neste barco juntos.
Acreditamos, entretanto, que isto não basta. A ciência precisa de tempo para pensar. A ciência precisa de tempo para ler, e tempo para fracassar. A ciência nem sempre sabe onde ela se encontra neste exato momento. A ciência desenvolve-se de forma instável, através de movimentos bruscos e saltos imprevisíveis à frente. Ao mesmo tempo, contudo, ela muitas vezes emerge lentamente, e para isso é preciso que haja estímulo e reconhecimento.
Durante séculos, slow science foi praticamente a única ciência concebível; para nós, ela merece ser recuperada e protegida. A sociedade deve dar aos cientistas o tempo de que eles necessitam, e os cientistas precisam ter calma.
Sim, nós precisamos de tempo para pensar. Sim, nós precisamos de tempo para digerir. Sim, nós precisamos de tempo para nos desentender, sobretudo quando fomentamos o diálogo perdido entre as humanidades e as ciências naturais. Não, nem sempre conseguimos explicar a vocês o que é a nossa ciência, para o que ela servirá, simplesmente porque nós não sabemos ainda. A ciência precisa de tempo.
– Tenham paciência conosco, enquanto pensamos.
(tradução de José Eisenberg; revisão Antonio Engelke)
[original: http://slow-science.org - (c) The Slow Science Academy, 2010]
[cópia: http://revistapittacos.org/- Revista Pittacos: Revista de Cultura e Humanidades]
sábado, 8 de outubro de 2011
Um Pardal voando sobre um Ninho de Cucos
Toc, toc, toc, ô de casa, tem alguém aí?!
Eita que desapareci, hein?! Bem, as justificações cansam a verdade. Reapareci, eis a questão. Talvez, um mistério filosófico seja o fato de as pessoas aparecerem e desaparecerem. São até irritantes nesse movimento.
Publico uma resenha do filme "Um Estranho no Ninho". Achei-a no meu baú de textos perdidos. Seria publicada, prometeram-me. Prometer é um ato falho. Não publicaram, e me esqueci do dito-cujo. Dei uma recauchutada e publico aqui e agora.
Um Pardal voando sobre um Ninho de Cucos[1]
Não farei, aqui, uma análise desse clássico do cinema, “Um Estranho no Ninho”, e sim aproximações entre as temáticas do filme e a psiquiatria ou, melhor dizendo, entre o filme e minha experiência como psiquiatra e sociólogo. Será, digamos assim, uma exposição que apresentará algum cunho pessoal. Claro, esforçar-me-ei para que a narrativa não fique idiossincrática, tentando contextualizá-la e, com isso, conectando-a a uma totalidade mais ampla. O jogo entre filme e experiência pessoal, nesse sentido, permitirá um exame mais geral do poder institucional da psiquiatria.
O filme é uma adaptação do livro de mesmo nome do escritor estadunidense Ken Kesey. Foi escrito em 1962, num contexto histórico bem significativo, marcado pela contracultura. O autor, pode-se dizer, condensa bem a época: um polemista e crítico ferino da sociedade americana, tendo sido um ícone da juventude beatnik e hippie. Foi um dos gurus do LSD. Sua crítica à instituição psiquiátrica tem como pano de fundo a condenação do “american way of life”. E a conclusão é ambiciosa: a psiquiatria prefigura o modelo das instituições modernas. Ela é totalitária e, ao mesmo tempo, norma das outras instituições. O controle comportamental imposto pela psiquiatria, nas suas instituições, é a base das relações de dominação existentes na sociedade. Em suma, vive-se, na América, uma espécie de totalitarismo “doce”, sem um específico centro de poder, embora sistêmico, baseado num enquadramento normativo do comportamento que transforma os indivíduos em meros vetores do sistema.
O filme foi realizado em 1975. Vivia-se, ainda, a rebordosa dos anos 60. Os temas da década passada continuavam vivos, embora com menos otimismo e psicodelismo. A antipsiquiatria continuava sendo a crítica hegemônica, diante do sempiterno domínio do asilo psiquiátrico. Contudo, não creio que o filme tenha o alcance da crítica de Ken Kesey, conquanto permaneça a contundência contra a instituição psiquiátrica. Pode-se, é claro, interpretar a relação conflituosa entre Randle McMurphy (Jack Nicholson) e Mildred Ratched (Louise Fletcher) como metáfora dos conflitos existentes na sociedade americana, mas não iria por esse caminho. De todo modo, é justamente essa relação, interpretada de forma genial pelos dois atores, que é o fulcro do filme. E creio que ela seja muito útil para pensar o alcance da crítica à psiquiatria.
Inclusive, depois do “Estranho...”, surgiram outros filmes com temáticas direta ou indiretamente relacionadas à psiquiatria. Com o tempo, a crítica antipsiquiátrica arrefeceu, e os filmes passaram a não contestar, propriamente, a validade da psiquiatria, e sim alguns modelos de assistência, principalmente aquele baseado no asilo. Geralmente, na nova safra de filmes, o psiquiatra tem salvação, sim, contanto que esteja fora do padrão asilar, e assuma uma prática profissional que seja relacional, dialógica e de profundo respeito pelo paciente, agora transformado em usuário da assistência psiquiátrica. Lembrando-me rapidamente de alguns filmes, tais como “As loucuras do Rei George”, “Gênio Indomável” e “Garota, Interrompida”, nota-se que o psiquiatra deixou de ser a besta-fera, podendo ter ideias modernas, uma postura informal e, quem diria, demonstrar até mesmo... emoção.
Mas, vamos ao filme.
Randle McMurphy é um detento que é enviado a uma clínica psiquiátrica. Por quê? Há dúvidas sobre sua sanidade. Ele é doido ou não? Sua estadia na clínica é, justamente, para a comprovação diagnóstica de sua suposta loucura. Ora, o espectador descobre, rapidamente, que McMurphy finge ser louco – inclusive, o diretor da clínica desconfia bastante de seu comportamento. Por meio desse artifício, cria-se uma conexão imediata entre o espectador e o personagem. Diria que, praticamente, é inevitável, a partir dessa situação singular, ter uma empatia por McMurphy.
A primeira questão, assim, que coloco em discussão, seria a seguinte: é possível simular a loucura? Não é uma questão simples e tem consequências clínicas e, até mesmo, filosóficas. Embora a questão não seja simples, a resposta é rápida: sim, é possível simular um surto psicótico, um sofrimento psíquico, uma doença mental. O problema aparece quando se examina as possíveis consequências dessa resposta. Uma delas seria a seguinte: o fato de existir a possibilidade de simulação implica que a loucura não seja uma doença mental? Não é uma pergunta banal, pois a psiquiatria não tem, para a maioria de suas doenças, exames complementares, isto é, objetivos, digamos assim, que mostrem, de uma vez por todas, a “realidade” da loucura. Não há raio-x, ultrassonografia, exame laboratorial que comprovem que a pessoa está “louca”. Uma doença orgânica é uma unidade discreta que pode ser examinada de forma objetiva. Sem a demonstração objetiva, a loucura seria completamente subjetiva, logo, passível de ser simulada? Sendo subjetiva ou uma forma de subjetividade, seria doença? Afinal, no que se baseia o psiquiatra para firmar seu diagnóstico? Ora, basicamente, no comportamento. Mas, caso seja isso mesmo, como apreender objetivamente sintomas psicopatológicos por meio da observação do comportamento de uma pessoa? Ora, o exame do comportamento implica fazer atribuições psicológicas a uma pessoa. Como projetar atributos psicológicos a uma doença? A “doença”, como tal, não sente, não sofre, não significa, exceto metaforicamente. Tais atribuições não podem ser discretas, como uma doença orgânica, por isso a atribuição sempre remete, invariavelmente, a uma totalidade, no caso, à pessoa doente.
Na medicina, a etiologia revela o invisível, mostrando que o visível é apenas epifenômeno. O comportamento patológico é a manifestação de causas ocultas, reveladas pela ciência médica. Mas a psiquiatria, justamente por não ter um consenso etiológico (afinal, qual é a causa da loucura?), é uma medicina de sintomas. Jamais escapou do comportamento. Nunca se libertou de uma compulsão classificatória -- vide seus manuais de “Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais” (DSM) e suas classificações nosológicas. Como deduzir, dessa forma, patologias do comportamento? Como evitar confusões no campo do significado, isto é, entre o normal e o anormal, entre o anormal e o patológico? Como evitar a transformação da psiquiatria numa máquina de etiquetagem, num empreendimento moral?
O filme é uma adaptação do livro de mesmo nome do escritor estadunidense Ken Kesey. Foi escrito em 1962, num contexto histórico bem significativo, marcado pela contracultura. O autor, pode-se dizer, condensa bem a época: um polemista e crítico ferino da sociedade americana, tendo sido um ícone da juventude beatnik e hippie. Foi um dos gurus do LSD. Sua crítica à instituição psiquiátrica tem como pano de fundo a condenação do “american way of life”. E a conclusão é ambiciosa: a psiquiatria prefigura o modelo das instituições modernas. Ela é totalitária e, ao mesmo tempo, norma das outras instituições. O controle comportamental imposto pela psiquiatria, nas suas instituições, é a base das relações de dominação existentes na sociedade. Em suma, vive-se, na América, uma espécie de totalitarismo “doce”, sem um específico centro de poder, embora sistêmico, baseado num enquadramento normativo do comportamento que transforma os indivíduos em meros vetores do sistema.
O filme foi realizado em 1975. Vivia-se, ainda, a rebordosa dos anos 60. Os temas da década passada continuavam vivos, embora com menos otimismo e psicodelismo. A antipsiquiatria continuava sendo a crítica hegemônica, diante do sempiterno domínio do asilo psiquiátrico. Contudo, não creio que o filme tenha o alcance da crítica de Ken Kesey, conquanto permaneça a contundência contra a instituição psiquiátrica. Pode-se, é claro, interpretar a relação conflituosa entre Randle McMurphy (Jack Nicholson) e Mildred Ratched (Louise Fletcher) como metáfora dos conflitos existentes na sociedade americana, mas não iria por esse caminho. De todo modo, é justamente essa relação, interpretada de forma genial pelos dois atores, que é o fulcro do filme. E creio que ela seja muito útil para pensar o alcance da crítica à psiquiatria.
Inclusive, depois do “Estranho...”, surgiram outros filmes com temáticas direta ou indiretamente relacionadas à psiquiatria. Com o tempo, a crítica antipsiquiátrica arrefeceu, e os filmes passaram a não contestar, propriamente, a validade da psiquiatria, e sim alguns modelos de assistência, principalmente aquele baseado no asilo. Geralmente, na nova safra de filmes, o psiquiatra tem salvação, sim, contanto que esteja fora do padrão asilar, e assuma uma prática profissional que seja relacional, dialógica e de profundo respeito pelo paciente, agora transformado em usuário da assistência psiquiátrica. Lembrando-me rapidamente de alguns filmes, tais como “As loucuras do Rei George”, “Gênio Indomável” e “Garota, Interrompida”, nota-se que o psiquiatra deixou de ser a besta-fera, podendo ter ideias modernas, uma postura informal e, quem diria, demonstrar até mesmo... emoção.
Mas, vamos ao filme.
Randle McMurphy é um detento que é enviado a uma clínica psiquiátrica. Por quê? Há dúvidas sobre sua sanidade. Ele é doido ou não? Sua estadia na clínica é, justamente, para a comprovação diagnóstica de sua suposta loucura. Ora, o espectador descobre, rapidamente, que McMurphy finge ser louco – inclusive, o diretor da clínica desconfia bastante de seu comportamento. Por meio desse artifício, cria-se uma conexão imediata entre o espectador e o personagem. Diria que, praticamente, é inevitável, a partir dessa situação singular, ter uma empatia por McMurphy.
A primeira questão, assim, que coloco em discussão, seria a seguinte: é possível simular a loucura? Não é uma questão simples e tem consequências clínicas e, até mesmo, filosóficas. Embora a questão não seja simples, a resposta é rápida: sim, é possível simular um surto psicótico, um sofrimento psíquico, uma doença mental. O problema aparece quando se examina as possíveis consequências dessa resposta. Uma delas seria a seguinte: o fato de existir a possibilidade de simulação implica que a loucura não seja uma doença mental? Não é uma pergunta banal, pois a psiquiatria não tem, para a maioria de suas doenças, exames complementares, isto é, objetivos, digamos assim, que mostrem, de uma vez por todas, a “realidade” da loucura. Não há raio-x, ultrassonografia, exame laboratorial que comprovem que a pessoa está “louca”. Uma doença orgânica é uma unidade discreta que pode ser examinada de forma objetiva. Sem a demonstração objetiva, a loucura seria completamente subjetiva, logo, passível de ser simulada? Sendo subjetiva ou uma forma de subjetividade, seria doença? Afinal, no que se baseia o psiquiatra para firmar seu diagnóstico? Ora, basicamente, no comportamento. Mas, caso seja isso mesmo, como apreender objetivamente sintomas psicopatológicos por meio da observação do comportamento de uma pessoa? Ora, o exame do comportamento implica fazer atribuições psicológicas a uma pessoa. Como projetar atributos psicológicos a uma doença? A “doença”, como tal, não sente, não sofre, não significa, exceto metaforicamente. Tais atribuições não podem ser discretas, como uma doença orgânica, por isso a atribuição sempre remete, invariavelmente, a uma totalidade, no caso, à pessoa doente.
Na medicina, a etiologia revela o invisível, mostrando que o visível é apenas epifenômeno. O comportamento patológico é a manifestação de causas ocultas, reveladas pela ciência médica. Mas a psiquiatria, justamente por não ter um consenso etiológico (afinal, qual é a causa da loucura?), é uma medicina de sintomas. Jamais escapou do comportamento. Nunca se libertou de uma compulsão classificatória -- vide seus manuais de “Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais” (DSM) e suas classificações nosológicas. Como deduzir, dessa forma, patologias do comportamento? Como evitar confusões no campo do significado, isto é, entre o normal e o anormal, entre o anormal e o patológico? Como evitar a transformação da psiquiatria numa máquina de etiquetagem, num empreendimento moral?
Sinceramente, não sei.
Por que isso acontece? Tenho algumas hipóteses. Resumo algumas:
sábado, 1 de outubro de 2011
Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE: Humano, Demasiado Humano
Por Cynthia Hamlin
No dia 29 de setembro de 2011, cerca de 100 estudantes da UFPE foram à reitoria protestar contra o que consideram a ausência de uma política institucional em relação à ocorrência de suicídios no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE. Embora tenham sido colocadas grades nas varandas de todos os andares do prédio, foram registrados 3 casos no ano de 2011, o que atestaria a insuficiência das medidas adotadas.
A iniciativa dos estudantes é importante e revela a necessidade de se pensar coletivamente a solução não apenas deste, mas de uma série de problemas relativos a segurança, espaços de convivência, funcionamento dos elevadores, más condições das salas de aula, para ficarmos apenas no âmbito do CFCH. Apesar disso, uma política de prevenção de suicídios eficaz pressupõe clareza acerca da relação entre os suicídios e os diversos problemas que atingem a comunidade do CFCH e da UFPE, como um todo. E é aí que as dificuldades começam.
O suicídio é um fenômeno complexo que pode envolver fatores de diversas ordens - biológica, psicológica, social e cultural - e deve ser entendido como um processo, mais do que como um simples ato. Isso significa dizer que, ainda que ocorra em um local e momento específicos, pode estar associado a processos de médio e longo prazo, como a depressão, o abuso de drogas, a doença mental. Esses processos não ocorrem em um vácuo social, estando associados a determinados contextos que podem atuar, ora como causa, ora como efeito, ora como reforçando-se mutuamente: o ambiente familiar, o tipo de relações entre os grupos de pertencimento e outros grupos, relações interpessoais etc. Por fim, ocorrem em um lugar específico que, além de representar ocasião ou contexto para o ato em si, pode estar associado ao uso de métodos particulares que frequentemente carregam um conteúdo simbólico e comunicativo (Hamlin & Brym, 2006; Brym & Hamlin 2009).
Generalizações - especialmente as de base reducionista e construídas sobre um número insuficiente de casos que fundamentam argumentos do tipo: “estudantes de ciências humanas são mais propensos ao suicídio”, ou “a ‘desumanização’ do campus e do CFCH tem contribuído para os suicídios observados” – frequentemente se baseiam em associações causais que não se sustentam, ou entre elementos que estão tão remotamente associados que não podem servir como guia para nenhuma política de prevenção séria. Ao contrário, terminam gerando estigmas que, esses sim, podem atrair mais pessoas para escolherem o CFCH como local para dar cabo à própria vida na medida em que estabelecem uma associação simbólica entre o prédio e o suicídio. (Falo aqui de uma associação simbólica apenas na medida em que existe, na cidade do Recife, uma série de outros edifícios com características estruturais semelhantes ao CFCH. Isso não significa dizer que elementos simbólicos seriam os únicos, ou mesmo os mais importantes, na escolha de um local qualquer).
Dado que argumentos como os acima, apresentados com graus de sofisticação variável, tem sido os mais comuns, torna-se fundamental esclarecer alguns pontos.
Em primeiro lugar, o estigma que vem sendo associado aos estudantes de humanas e ao prédio do CFCH baseia-se no pressuposto de que os suicidas, em sua maioria, consistem em estudantes da UFPE, particularmente os de humanas. Isso não parece ter fundamento. Uma rápida observação dos registros, efetuados pela Direção do CFCH, relativos ao suicídios ocorridos desde 1997 sugere que poucos eram estudantes da UFPE. Digo “sugere” porque os dados a que tive acesso são insuficientes. (Havia lacunas no registro disponível, de forma que solicitei à Direção do Centro um registro mais completo, desde o ano de 1997 - quando a Universidade passou a efetuar o registro sistemático dos casos. Aguardemos, pois. E cobremos).
Em segundo lugar, e relacionado à questão anterior, impedir a cristalização do estigma implica a celeridade da instituição, por meio de sua Assessoria de Comunicação, em desmentir falsos boatos acerca do suicídio de estudantes. Isso é especialmente importante diante do poder das redes sociais contemporâneas na disseminação de boatos. Vejamos.
No dia 28 de setembro último, o Jornal do Commércio publicou uma matéria na qual pelo menos duas das informações fornecidas não procediam. Primeiro, afirma que ocorreram quatro suicídios no CFCH este ano (foram três - já não é ruim o suficiente?); segundo, afirma que o último caso ocorrido envolvia uma aluna da UFPE, mais especificamente, do Curso de Ciências Sociais. Até o momento em que escrevo, três dias após a divulgação da notícia pelo Jornal do Commércio, não vi a Universidade se manifestar publicamente a fim de desmenti-la.
Além de contribuir para o referido estigma, ao se omitir de ações como esta a Universidade está contribuindo para um outro fenômeno, que em sociologia se denomina de “pânico moral”. O pânico moral assume as seguintes características:
Uma condição, episódio, pessoa ou grupo de pessoas emerge e passa a ser definido como uma ameaça a valores e interesses sociais; sua natureza é apresentada de forma estilizada e estereotípica pelos meios de comunicação de massa; as barricadas morais são erigidas por editores, bispos, políticos e outras pessoas cujas opiniões são consideradas sensatas e moralmente corretas [right-thinking people]; peritos socialmente reconhecidos pronunciam seus diagnósticos e soluções; a condição depois desaparece, submerge ou deteriora-se e torna-se mais visível. [...]. Algumas vezes o pânico passa e é esquecido, exceto no folclore e na memória coletiva; outras vezes, tem repercussões mais sérias e duradouras e pode produzir mudanças legais e em políticas sociais, ou mesmo na forma como a sociedade se autoconcebe (Cohen, citado em Thompson, 1998: 7).
Assim como ocorre na maioria dos casos de pânico moral, a visibilidade da situação real e sua resolução são especialmente difíceis porque envolvem um tema considerado tabu. Se o filósofo francês Edgar Morin (1968) já afirmava que, após a revolução sexual, a morte permaneceu como o último grande tabu do século XX, talvez caiba aqui uma hipérbole: a morte por suicídio é o tabu que não ousa dizer seu nome. Isso explica, em parte, o silêncio da Universidade em relação ao tema. Outra parte do silêncio poderia ser explicada por meio da referência a um fenômeno que ficou conhecido como “efeito Werther”.
O efeito Werther refere-se à onda de suicídios observada entre os jovens românticos, especialmente na Alemanha, após a publicação do romance de Goethe - Os Sofrimentos do Jovem Werther - que de certa forma glamourizava o suicídio ao caracterizá-lo como um ato de coragem. O fenômeno caracteriza, assim, o elemento de difusão ou contágio do suicídio a partir de sua menção ou divulgação – um fenômeno que tem servido como fundamento de uma espécie de código de ética entre jornalistas do mundo inteiro.
Embora tenha afirmado que “não há dúvida de que a ideia do suicídio se transmite por contágio”, Durkheim (2000: 138) teve o cuidado de definir o contágio em termos de imitação e delimitar em que sentido este último poderia ser legitimamente aplicado ao estudo do suicídio:
Há imitação quando um ato tem como antecedente imediato a representação de um ato semelhante, anteriormente realizado por outros, sem que entre essa representação e a execução se intercale nenhuma operação intelectual implícita ou explícita, sobre as características intrínsecas do ato reproduzido.
Isso significa que o suicídio por imitação tende a ocorrer na ausência de reflexão - o que aponta para a necessidade de fazer as pessoas expostas ao suicídio, como é o caso dos nossos alunos, refletirem sobre o assunto. E o silêncio certamente não é a forma mais apropriada de gerar uma reflexão informada.
Por outro lado, existem controvérsias consideráveis acerca do alcance dos processos imitativos na explicação das taxas de suicídio. O próprio Durkheim atribuía um alcance limitado ao suicídio por imitação, afirmando que “do fato de que o suicídio possa transmitir-se de indivíduo para indivíduo, não se segue a priori que [...] ela afete a taxa social de suicídios”(Ibid: 143). E utilizava como argumento a ideia de que, se o contágio tivesse uma influência marcante nas taxas de suicídio, dever-se-ia observar um fenômeno de concentração dessas taxas em determinados núcleos geográficos (por ex., o centro das cidades) e uma diminuição gradual dessas taxas à medida em que se afasta desses núcleos. Traduzindo para o nosso caso, ao longo de um período relativamente extenso, deveria ser possível observar um número relativamente elevado de suicídios entre estudantes, professores e funcionários da UFPE, em particular os diretamente expostos ao suicídio, em comparação com suicidas oriundos de outras áreas da cidade. Como vimos, este não parece ser o caso. Mas aguardemos mais informações antes de fazermos quaisquer afirmações categóricas neste sentido. (Abro aqui um parêntese para enfatizar fortemente que não estou usando este argumento para defender a ideia de que, se não altera as taxas de suicídio entre os membros da UFPE, a difusão não deve ser considerada em uma política interna de prevenção de suicídios. Um único caso é um caso em excesso. O que estou argumentando é que esse risco deve ser combatido por meio da reflexão informada, já que a exposição ao suicídio é um fato concreto, pelo menos no momento).
O argumento de Durkheim não foi consensualmente aceito e a controvérsia continuou. Nas décadas de 1970 e 1980, o sociólogo David Philips publicou uma série de artigos sobre o tema. O principal deles foi resumido por outro sociólogo, Ira Wasserman (1984: 427), da seguinte forma:
Empregando um método quasi-experimental para examinar a influência que as estórias de suicídio que apareceram nas manchetes do New York Times entre 1947 e 1968 tiveram nos padrões de suicídio nos meses seguintes, Philips (1974) formulou um novo teste para a teoria da imitação. Contrariamente a Durkheim, encontrou um aumento significativo no número de suicídios no mês que se seguiu ao aparecimento dessas estórias no New York Times.
Ao submeter a hipótese da imitação a teste novamente, Wasserman (Ibid.) efetuou um estudo com base em uma série de modelos que o permitiram controlar fatores exógenos, como a influência dos ciclos de negócios e das crises econômicas nos resultados observados por Philips. Concluiu que não havia correlação significativa entre a taxa nacional de suicídios e as estórias sobre suicídio que apareceram nas manchetes do New York Times no período 1947-1977. Por outro lado, ao aplicar seu modelo apenas às manchetes relacionadas a “celebridades”, observou uma correlação significativa entre as estórias contadas a partir de tais manchetes e um aumento nas taxas de suicídio no mês subsequente à sua publicação. Isso significa que a hipótese de Philips é mais limitada do que ele supunha, isto é, tende a ser corroborada nos casos de reportagens sobre o suicídio de celebridades.
A isto, a Organização Mundial de Saúde menciona outras conclusões importantes, retiradas de outras pesquisas: primeiro, que o impacto da cobertura jornalística na mídia impressa e televisiva tende a ser maior entre pessoas jovens; segundo, que não são as notícias per se que geram um aumento nas taxas observadas, mas a forma como os suicídios são noticiados para as populações vulneráveis (de maneira sensacionalista, com excesso de detalhes, oferecendo explicações simplistas ou sugerindo que o fenômeno é inexplicável, glamourizando o ato ou transformando a vítima em mártir, caracterizando o suicídio como única saída possível, omitindo a dor de familiares e amigos, dentre outros).
Assim, ao contrário da ideia simplista de que os suicídios não devem ser noticiados a fim de evitar sua difusão por contagio ou imitação, num documento de prevenção do suicídio direcionado a profissionais da mídia (World Health Organization, 2000: 6) enfatiza-se que “certos tipos de cobertura [jornalística] podem ajudar a prevenir a imitação do comportamento suicida”. O documento enfatiza ainda que “sempre existe a possibilidade de que a publicização do suicídio possa tornar a ideia de suicídio ‘normal’. A cobertura contínua e repetida do suicídio tende a induzir e a promover preocupações suicidas, particularmente entre adolescentes e adultos jovens.” (Ibid). Neste sentido, a conclusão geral é a de que
Assim, ao contrário da ideia simplista de que os suicídios não devem ser noticiados a fim de evitar sua difusão por contagio ou imitação, num documento de prevenção do suicídio direcionado a profissionais da mídia (World Health Organization, 2000: 6) enfatiza-se que “certos tipos de cobertura [jornalística] podem ajudar a prevenir a imitação do comportamento suicida”. O documento enfatiza ainda que “sempre existe a possibilidade de que a publicização do suicídio possa tornar a ideia de suicídio ‘normal’. A cobertura contínua e repetida do suicídio tende a induzir e a promover preocupações suicidas, particularmente entre adolescentes e adultos jovens.” (Ibid). Neste sentido, a conclusão geral é a de que
reportar os suicídios de uma maneira apropriada, acurada e potencialmente útil pela mídia esclarecida pode prevenir a perda trágica de vidas pelo suicídio. (Ibid.).
Dada a exposição a que temos sido submetidos ao suicídio na UFPE, o poder das novas mídias em difundir boatos que são reforçados pelas mídias tradicionais e a situação de pânico moral que isso ajuda a difundir, o silêncio da UFPE em torno do tema não contribui em nada para a resolução desta situação: ao contrário, tende a perpetuá-la e a gerar uma série de problemas associados à ansiedade, ao sentimento de insegurança e aos conflitos que decorrem deles.
Para o bem ou para o mal, o suicídio não pode mais ser tratado como um tabu entre nós, mas como algo “humano, demasiado humano”. Já está mais do que na hora de começarmos a falar sobre assunto de forma clara, informada e responsável. Façamos, cada um de nós, a nossa parte.
(a ser editado)
Referências
Brym, Robert J.; Hamlin, Cynthia Lins. (2009) “Suicide Bombers: Beyond Cultural Dopes and Rational Fools”. In: Cherkaoui, Mohamed; Hamilton, Peter. (Org.). Raymond Boudon: A Life in Sociology: Essays in Honour of Raymond Boudon. 1 ed. Oxford: The Bardwell Press, v. 2, p. 83-96.
Durkheim, Émile (2000). O Suicídio. São Paulo: Martins Fontes.
Hamlin, Cynthia Lins; Brym, Robert J. (2006) The Return of the Native: A Cultural and Socio-Psychological Critique of Durkheim's Suicide based on the Guarani-Kaiowá of South-Western Brazil. Sociological Theory, Estados Unidos, v. 24, n. 1, p. 42-57.
Morin, Edgar (1951) L’Homme et la mort. Paris: Éditions du Seuil.
Thompson, Kenneth (1998). Moral Panics. Londres e Nova York: Routledge.
Wasserman, Ira M. (1984). Imitation and Suicide: a reexamination of the Werther effect. American Sociological Review, V. 49, June, p. 427-436.
World Health Organization (2000). Preventing Suicide: a resource for media professionals. Genebra: Mental and Behavioural Disorders, Department of Mental Health, WHO.












