segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Judith Butler: Drag Queen, Pensamento Crítico e Estratégia Política (II)



Não é preciso fazer referência a um argumento tão acéfalo para compreender qual o problema aqui. O que está em jogo é justamente aquilo que Butler coloca como questão no vídeo que Jonatas postou abaixo, relativo à identidade das vítimas do Holocausto: “o que é dar uma descrição [account] de si quando não se é totalmente transparente para si mesmo e quando não se pode relatar sua vida em forma narrativa [isto é], quando as condições lingüísticas e sociais da própria existência não são totalmente compreendidas ou não estão disponíveis em uma descrição narrativa?”. Reclamar uma identidade é dar uma descrição daquilo que somos, é exigir que sejamos reconhecidos como sujeitos (ou, para Butler, mais propriamente, como agentes); é estabelecer as bases para a solidariedade política, dado que estabelecer interesses comuns pressupõe uma definição mínima daquilo que importa para nós.

O que vimos no circo dos horrores foi um exemplo claro da impossibilidade de uma formulação alternativa aos significados de “homem” e “mulher”, “masculino” e “feminino”. A inteligibilidade desses termos está ligada àquilo que Butler concebe como “heterossexualidade compulsória”, isto é, como uma instituição social na qual apenas uma classificação binária homem/mulher, macho/fêmea é inteligível. Uma identidade de gênero como “mulher-travesti-lésbica-não-operada” não faz sentido, é aberrante e, mais do que isto, abjeta. Mas como “reconhecer” identidades que não fazem sentido para nós, já que estão além daquilo que a matriz binária hegemônica e compulsória estabelece como possibilidade inteligível? A resposta é: desestabilizando esta matriz de significado; mostrando que não há nada de “natural” ou essencial nem no sexo, nem no gênero. Não desenvolverei, aqui, o argumento de Butler a este respeito, pois ele requer uma descrição bastante detalhada de sua concepção do que se convencionou chamar de sistema sexo/gênero. Para os meus propósitos aqui é suficiente notar que o sexo é, para ela, um efeito do gênero. Como? Bem, o gênero é concebido como um conjunto de gestos desempenhados sob a superfície do corpo, mas que instituem as fronteiras desse corpo a partir dos limites do socialmente hegemônico. Em outras palavras, o sexo é “materializado” por meio da performatividade dos agentes sociais, inclusive por meio de práticas sexuais que “abrem ou fecham superfícies ou orifícios à significação erótica”, reinscrevendo as fronteiras do corpo (Butler, 2003: 190).

Assim, as identidades de sexo e gênero são concebidas como práticas e os sujeitos, como “efeitos de um discurso amarrado por regras” (Butler, 2003: 208). A capacidade de mudança reside no fato de que, embora as performances sejam consideradas como constitutivas do sujeito, este sujeito não é determinado pelas regras (assim como os corpos não são gerados pelos discursos, embora a questão de sua materialidade seja um problema que acho que Butler não consegue resolver). Isto porque as “repetições” das regras via performance nunca são simples repetições, mas sempre geram uma espécie de excedente, pequenas variações que abalam os significados instituídos dessas normas, o que abre espaço para sua desestabilização e, em última instância, para o fim do binarismo que regula a heterossexualidade compulsória. A agência crítica está, portanto, intimamente ligada à possibilidade da desestabilização das normas a fim de que se possa rearticular os termos da inteligibilidade e da legitimidade simbólica via discursos políticos que mobilizem categorias de identidade.

É assim que Butler atribui um papel político importantíssimo às performances de gênero desempenhadas pelas drag queen. A drag queen não procura imitar ou simplesmente repetir as performances das “mulheres”. Uma drag queen é mais do que uma mulher: é uma mulher exagerada, uma paródia de mulher que possibilita problematizar as relações entre essência e aparência. É como se dissesse: “vejam, minha aparência exterior é feminina, mas meu corpo (minha essência) é masculino”, e também (e ao mesmo tempo), “minha aparência exterior (meu corpo) é masculino, mas minha essência interna é feminina”. A drag queen, como os travestis e outros indivíduos transgênero, mostram que não há uma coerência naturalmente dada quando se trata de categorias como sexo, gênero, sexualidade, mas todas são “flutuantes”, culturalmente construídas por meio de repetições de atos estilizados. E quanto mais repetidas são, mais dão a impressão de que são, em algum sentido, naturais, meras representações de alguma essência fixa e imutável.

A paródia e a ironia, sendo gêneros de humor, não garantem a desestabilização de significados instituídos, e Butler reconhece isto. Mais uma vez, recorro a um caso empírico que me foi contado por uma amiga que tenho em comum com o criador de problemas (no sentido butleriano) em questão: ao ser convidado para paraninfo de uma turma em uma grande universidade brasileira, nosso amigo (que, até onde sei, define sua sexualidade como heterossexual), resolveu se “montar” para a cerimônia de formatura na qual estavam presentes os estudantes, outros professores e o reitor. Apareceu de drag, com peruca, maquiagem pesada, um vestido brilhante e sandálias de salto e, segundo minha amiga me contou, fez um discurso maravilhoso que foi ovacionado pelos estudantes. Apesar das reações positivas ao seu discurso, não consigo deixar de imaginar a seguinte cena: “eita! Você sabia que ele era gay?”, pergunta um estudante. “Esse cara nunca me enganou!”, responde o outro, reafirmando o discurso hegemônico de matriz binária. Sei não, mas deve haver formas mais eficazes de estratégia política. E pacíficas, caso o gatinho da foto tenha remetido a algum sentido oculto que escapa à minha autoria...

Butler, Judith. (1993). Bodies that Matter: On the Discursive Limits of Sex. Nova York e Londres: Routledge.
________. (2003) Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Salles, Ronaldo Laurentino. (2006). Raça e Justiça: O Mito da Democracia Racial e o Racismo Institucional do Fluxo de Justiça. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco, Recife.


Cynthia Hamlin

Um comentário:

Anônimo disse...

J'ai appris des choses interessantes grace a vous, et vous m'avez aide a resoudre un probleme, merci.

- Daniel