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sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Socialização como engajamento reflexivo: moldando uma vida




XV Congresso Brasileiro de Sociologia
Realizado de 26 a 29 de julho de 2011, em Curitiba-PR.

Conferência: Margaret Archer (UK)
(Apresentação: Cynthia Hamlin)

Socialização como engajamento reflexivo: moldando uma vida

As teorias sociológicas  da socialização correntes não podem apreender a dinâmica dos processos de construção de identidade na sociedade morfogenética nascente. De fato, elas são altamente viesadas no sentido de uma orientação às características estruturais e culturais que caracterizam a sociedade Moderna e que não mais se sustentam no novo contexto societal. Com base nos insights da abordagem morfogenética-realista e da teoria social relacional, busca-se uma reconceitualização da socialização como um  engajamento reflexivo, o que dá conta dos dois desafios básicos colocados pela sociedade morfogenética para as pessoas jovens no sentido de desenvolver uma identidade pessoal e social: a "necessidade de seleção" e a "necessidade de moldar uma vida". Trata-se, portanto, de uma interpretação de como pessoas jovens decidem sobre seu próprio conjunto de preocupações, estabelecendo prioridades e encaixes [em relação às suas preocupações] e investindo seu tempo e energia em um projeto de vida. Tal abordagem também consiste numa crítica de todas aquelas teorias que reduzem a socialização a relações linguisticamente mediadas, e articula a condição relacional dos sujeitos humanos em relação às ordens natural, prática e social. Também argumenta que o tempo da socialização por internalização de hábitos ou habitus terminou.  

domingo, 17 de abril de 2011

A sociologia reflexiva como ferramenta de autotransformação: Pierre Bourdieu e a política da vida


Por Gabriel Peters (IESP/UERJ)

Preâmbulo: o habitus e a estruturação das estruturas

A teoria da prática do saudoso Bourdieu carrega em seu núcleo uma hipótese comum a uma multiplicidade de perspectivas sociológicas e antropológicas contemporâneas. Trata-se da ideia de que as estruturas de personalidade de quaisquer agentes individuais são moldadas pela trajetória experiencial percorrida por estes agentes em contextos sociais específicos. Isto implica que o modo de “ser-no-mundo” (Heidegger) de qualquer ator traz necessariamente consigo as marcas das circunstâncias sócio-históricas no interior das quais se desenrola sua biografia. Tal moldagem social da subjetividade individual abarca tanto os seus aspectos volitivos – as vontades, intenções e desejos que os atores perseguem no curso de suas vidas – quanto recursivos – as habilidades cognitivas, expressivas e práticas que capacitam tais agentes a intervir sobre o mundo social.

A menção aos aspectos recursivos da subjetividade é fundamental para ressaltarmos que, na perspectiva de Bourdieu, a estruturação socializadora da personalidade individual não é apenas restritiva (i.e., uma fonte de proibições exteriores aos cursos de ação possíveis aos atores), mas também habilitadora, na medida em que fornece aos agentes um conjunto de recursos com os quais eles tornam-se aptos a contribuir para a reprodução ou transformação das formações sociais em que estão imersos. Esta ideia é centralíssima, por sua vez, para a tese de que a constituição dos indivíduos pela sociedade está dialeticamente articulada à constituição da sociedade pelos indivíduos. Na praxiologia estrutural bourdieusiana, uma versão retrabalhada da velha e venerável noção aristotélico-tomista de habitus desempenha precisamente este papel de mediação entre o individual e o social, designando uma “subjetividade socializada” (Bourdieu & Waquant, 1992: 126) que contribui, por sua vez, para constituir e reconstituir o próprio mundo social objetivo em que está imersa. A ênfase na circularidade do habitus perpassa toda a obra de Bourdieu, na qual o conceito retrata o princípio gerador, socialmente gerado, de práticas e representações; ou ainda, para citar um dos seus casos mais famosos (ou infames) de acrobacia estilística, como uma “estrutura estruturada predisposta a funcionar como estrutura estruturante” das mesmas estruturas que o estruturaram (Bourdieu, 1979: 72). Desse modo, a realidade social não é concebida por Bourdieu apenas como exterioridade (à maneira do Durkheim de As regras do método sociológico) ou interioridade (à maneira da sociologia fenomenológica de Schutz), mas simultaneamente como exterioridade objetiva e interioridade subjetiva; ou melhor – para tornar a pintura mais dinâmica e dialética, prestando de quebra uma homenagem a um estilo que rompe com todos os manuais jornalísticos de sanidade estilística -, como exterioridade objetiva subjetivamente interiorizada e interioridade subjetiva objetivamente exteriorizada.

O caráter tácito do habitus

Além de retratar a conduta individual como socialmente constituída e constituinte, a categoria do habitus aponta para o caráter predominantemente tácito ou infraconsciente dos motores subjetivos da ação humana. Através dela, Bourdieu sublinha o papel inventivo dos agentes na construção e reconstrução do universo social ao mesmo tempo em que sustenta, em conformidade com “o princípio da não consciência”, que o ator não possui um acesso consciente e reflexivo às “determinações internas e externas” que o levam “a agir como agiu, a pensar como pensou, a sentir como sentiu” (Lahire, 2004: 21-25). Com efeito, seria precisamente a “cumplicidade ontológica” entre estruturas objetivas e subjetivas o que tornaria possível que as diversas condutas fossem objetivamente orientadas para determinados fins sem que estes tivessem de ser explicitamente visados pelos indivíduos que as realizariam. Bastaria para isso que os mesmos atualizassem seus habitus (ou habiti, para latinistas ortodoxos) de maneira prático-intuitiva quando exigidos nas diferentes situações de sua existência social – daí a referência a um “senso prático”[1].

A insistência no modo pré-reflexivo e não discursivo de ajustamento criativo dos habitus às suas circunstâncias sociais de funcionamento implica uma rejeição vigorosa, na esteira de autores como Heidegger, Merleau-Ponty e Wittgenstein, dos retratos excessivamente intelectualistas das ações e motivações humanas. Seja no caso das teorias que concebem a conduta individual como movida pelo cálculo racional e consciente, seja no caso daquelas que a tomam como resultante da obediência explícita a normas de comportamento, o intelectualismo daria ensejo a modelos do agente humano que mais pareceriam “uma espécie de monstro com a cabeça do pensador pensando a sua prática de modo reflexivo e lógico montado sobre o corpo de um homem [sic, acrescentam as feministas] de ação engajado na ação” (Bourdieu & Wacquant, 1992: 123).

Habitus e reflexividade 1: o efeito de histerese

Diversos críticos de Bourdieu acentuam que não é preciso superestimar o grau de autotransparência motivacional dos atores leigos para chegar à conclusão de que sua ênfase sobre o funcionamento tácito do habitus, ainda que valiosa, leva-o a negligenciar o relativo controle reflexivo e consciente que aqueles atores podem exercer sobre suas próprias disposições práticas de conduta. Na maior parte de sua obra, Bourdieu permanece tremendamente cético quanto à possibilidade de que os próprios atores tematizem reflexivamente as propriedades de seus habitus e transformem-nas criativamente em certa medida. No entanto, ainda que ressalte ser o habitus o motor mais freqüente da ação humana, o autor não chega a negar a possibilidade de condutas causalmente eficazes motivadas por deliberações explicitamente articuladas na mente dos atores. Ele mantém, no entanto, que tal forma de comportamento dependeria de condições sócio-históricas específicas de possibilidade:
...o habitus é um princípio dentre outros de produção das práticas e, ainda que esteja indubitavelmente em jogo de maneira mais freqüente que quaisquer outros – ‘Somos empíricos’, disse Leibniz, ‘em três quartos das nossas ações’ –, não se pode descartar que ele possa ser substituído em certas circunstâncias – certamente em situações de crise que rompem o ajustamento imediato do habitus ao campo – por outros princípios, como a computação racional e consciente (Bourdieu, 1990b: 108).
As situações de crise de ajustamento a que o mestre se refere são por ele denominadas, sem medo de estranheza, “efeito de hysteresis”. As circunstâncias de histerese correspondem aos contextos de ruptura da cumplicidade ontológica entre habitus e campo, situações nas quais a ativação das disposições encarnadas no habitus é exigida em contextos diferentes daqueles que o produziram. Tais contextos sócio-históricos de desajuste entre as condições de produção e as condições de funcionamento do habitus constituem a fonte de mudança social mais discutida na obra de Bourdieu (como na sua análise do Maio de 68 em Homo Academicus). Do ponto de vista de suas concepções acerca das engrenagens que movem a conduta individual, essa análise também é elucidativa, pois a quebra da cumplicidade ontológica entre disposições subjetivas e condições objetivas do milieu societário abre espaço para que a conduta tacitamente motivada do habitus possa ser substituída por motivações reflexivas demandadas por aquela dissonância. Como um desafio prático colocado ao ator, esta última estimularia, assim, a recuperação discursiva e a crítica explícita do que até então tinham sido assunções “doxicamente” aceitas, a transmutação da praxis em logos, a passagem do senso prático à elaboração discursiva e à consideração consciente de alternativas de ação:

A crítica que traz o não-discutido à discussão, o não-formulado à formulação, tem como sua condição de possibilidade a crise objetiva, a qual, quebrando o laço imediato entre as estruturas subjetivas e as estruturas objetivas, destrói a auto-evidência no âmbito prático (Bourdieu, 1979: 169).

Habitus e reflexividade 2: a sociologia como ética e política da autotransformação

Mais importante para os propósitos deste texto, no entanto, é o fato de que, segundo o sociólogo francês, afora o descompasso histórico entre disposições subjetivas e circunstâncias objetivas, a tentativa de domínio reflexivo do próprio habitus também pode ser amparada pela própria sociologia quando esta é mobilizada como um ferramental de auto-análise:

... não apenas pode o habitus ser transformado praticamente (sempre dentro de fronteiras definidas) pelo efeito de uma trajetória social levando a condições de vida distintas daquelas iniciais, como também pode ser controlado por meio do despertar da consciência e pela socioanálise (1990b: 116).

O projeto de uma sociologia reflexiva, que Bourdieu considera como sua principal contribuição às ciências sociais, assenta precisamente na possibilidade de que disposições impensadas de pensamento e comportamento possam ser racionalmente controladas ao acederem ao nível da consciência. No âmbito epistemológico, trata-se de uma atualização sociológica da noção kantiana de crítica, originalmente concebida como a capacidade de reflexão do pensamento ou razão acerca de seus próprios pressupostos e limites. Tais pressupostos e limites são historicizados e sociologizados por Bourdieu, isto é, não mais pensados como propriedades inerentes a um sujeito “transcendental”, mas como resultantes da inserção do/a pesquisador/a em uma formação sócio-histórica que emoldura seu modus cognoscendi.

Ainda que, no mais das vezes, Bourdieu sustente a importância da reflexividade sobretudo como uma ferramenta metodológica indispensável ao trabalho sociocientífico, ele também veio a atribuir a esta um valioso papel ético-político. Trata-se precisamente de conscientizar os atores acerca dos determinismos sociais que pesam, externa e internamente, sobre suas condutas, abrindo aos mesmos “a possibilidade de uma emancipação fundada na consciência...dos condicionamentos por que se passou”; um conhecimento que poderia, ainda, dar ensejo ao cultivo reflexivo de novos habitus, isto é, de “novos condicionamentos duravelmente cunhados para contrabalançar...[os] efeitos” de uma socialização anterior (Bourdieu, 1999, p. 340).

Em virtude de suas óbvias intenções e implicações morais, o projeto sociocientífico de Bourdieu pode ser classificado como uma variante da “teoria crítica”, concebendo-se essa expressão no seu sentido mais abrangente, para além de sua redução à chamada Escola de Frankfurt. A noção de crítica suposta em sua versão de teoria crítica une o sentido kantiano de escavação sistemática de pressupostos do pensamento e da ação a um sentido mais afeito ao marxismo, associado ao desvendar de modalidades ideologicamente mascaradas de dominação e exploração. Isto porque as categorias de percepção e orientação da conduta que garantem a inteligibilidade do mundo social para os agentes são, na visão do sociólogo francês, as mesmas que os levam a naturalizar e essencializar as assimetrias duráveis de poder que perpassam esse mesmo mundo – precisamente o processo que ele batiza de “violência simbólica”, que forma com habitus e campo a Santíssima Trindade de conceitos da sociologia bourdivina.

Nesse sentido, a obra de Bourdieu pretende contribuir para a desnaturalização dessas relações de dominação, desnudadas como arbitrariedades históricas contingentes, falsamente travestidas como ordenamentos naturais das coisas para a (in)consciência comum. Com efeito, ainda que eu discorde, pelo menos a partir de uma mirada global sobre a sua obra, das tentativas de demonstrar que Bourdieu é um marxista em última instância (sic), a tentativa de expor como falso, porém ideologicamente funcional, o caráter de necessidade percebido em dadas circunstâncias sócio-históricas certamente aproxima-o de críticas marxistas da reificação, como aquelas levadas a cabo por Lukács e pelos frankfurtianos (Vandenberghe, 2009).

Seja como for, a diagnose sociológica das formas de dominação e violência simbólica, ao apontar para seus efeitos cognitivos, morais, emocionais e corpóreos nas próprias estruturas de personalidade (ou habitus) dos indivíduos, possui implicações inseparavelmente políticas e existenciais. No seu Esboço de auto-análise [2] , Bourdieu faz votos de que seus instrumentos sociológicos sejam utilizados como ferramentas de auto-reflexão e auto-ajuda, compreendendo-se essa última expressão, é claro, no sentido da tradição filosófica clássica de reflexão sobre os modos de aplacar o sofrimento e os caminhos da “boa vida” (Aristóteles), não daquela indústria bibliográfica contemporânea tão desprezada (não tão justamente, segundo Giddens [3]) por um contingente substancial de intelectuais:

nada me deixaria mais feliz do que lograr levar alguns dos meus leitores ou leitoras a reconhecer suas experiências, suas dificuldades, suas indagações, seus sofrimentos, etc. nos meus e a poder extrair dessa identificação realista, justo o oposto de uma projeção exaltada, meios de fazer e viver um pouco melhor aquilo que vivem e fazem (Bourdieu, 2005: 135)

A despeito da diferença de teses e métodos, a referência implícita à psicanálise na noção de socioanálise serve para manifestar o enraizamento comum no projeto socrático da autoconsciência como primeiro locus da liberdade, no propósito de expandir o nível da consciência humana para dimensões determinantes da sua conduta as quais, se deixadas intocadas por esse esforço reflexivo, permanecem escondidas, reprimidas, inconscientes, dissimuladas. No combate aos sofrimentos psíquicos derivados dessa condição, Freud havia erigido como princípio básico da terapia psicanalítica o imperativo “onde havia id, que passe a haver ego” (Wo Es war, soll Ich Werden). A premissa desse lema é: quanto menos conhecemos nossos impulsos inconscientes, mais somos escravos e joguetes dos mesmos, mais eles nos controlam sem que sequer saibamos disso. Nesse sentido, a primeira condição para o incremento da minha liberdade, concebida como capacidade de autodeterminação racional, consciente e deliberada, é precisamente o conhecimento das minhas disposições inconscientes de comportamento, dos móbeis que até então motivavam minhas ações e representações sem que a eles eu tivesse acesso consciente.

Sendo, como Freud, um racionalista ético tremendamente sensível aos obstáculos impensados à autodeterminação racional, Bourdieu persegue, no entanto, um inconsciente distinto daquele pensado pelo pai da psicanálise: a matriz socialmente interiorizada de onde florescem as ações que configuram nosso modo de ser no mundo, isto é, nosso habitus. Se, como afirma Durkheim, “o verdadeiro inconsciente é a história”, o auto-analista sociologicamente municiado pelo pensamento de Bourdieu conhece a si mesmo/a como “história feita corpo”, personalidade socialmente constituída, ser dotado de um habitus que, em princípio, o possui, mais do que é possuído por ele. A dimensão de desencanto dessa linha de análise é inescapável, dado que ela não nos pinta como seres irredutíveis ao mundo, mas mundanos, demasiado mundanos, moldados nos territórios mais íntimos de nossa personalidade por determinações sócio-históricas exteriores a nós, porém objetivadas na nossa subjetividade mesma.

Todas essas implicações podem possuir, entretanto, um caráter potencialmente emancipatório sob as lentes de Bourdieu, na medida em que esse esforço sociológico-reflexivo de “anamnese” (Platão) possibilita um trabalho de auto-reapropriação. Em uma esfera de realidade onde não estão em operação as leis trans-históricas da natureza, reconhecer as forças que agem sobre nós e, em particular, “dentro” ou “através” de nós, é adquirir uma ferramenta para fazer alguma coisa a respeito, agindo sobre ou contra tais forças. Trazendo a pretensão “clínica” ou “délfica” [4] para o campo das ciências sociais, Peter Berger viu nessa auto-reflexão potencialmente liberatória a própria razão de ser moral da Sociologia:

Voltemos mais uma vez à imagem do teatro de marionetes. Vemos as marionetes dançando no palco minúsculo, movendo-se de um lado para outro levadas pelos cordões, seguindo as marcações de seus pequeninos papéis. Aprendemos a compreender a lógica desse teatro e nos encontramos nele. Localizamo-nos na sociedade e assim reconhecemos nossa própria posição, determinada por fios sutis. Por um momento, vemo-nos realmente como fantoches. De repente, porém, percebemos uma diferença decisiva entre o teatro de bonecos e nosso próprio drama. Ao contrário dos bonecos, temos a possibilidade de interromper nossos movimentos, olhando para o alto e divisando o mecanismo que nos moveu. Este ato constitui o primeiro passo para a liberdade. E neste mesmo ato encontramos a justificação definitiva da sociologia como disciplina humanística (Berger, 1972: 194).

É inspirado pelo mesmo espírito que Bourdieu propõe a tese de que “a sociologia liberta libertando da ilusão de liberdade” (Bourdieu, 1990: 28). O verbo “libertando”, nesse caso, é tudo menos uma repetição pedante e desnecessária, pois comunica a idéia de que a possibilidade de liberdade oferecida pela objetivação dos condicionantes societários do pensamento e da conduta vai além do resignado e impotente “reconhecimento da necessidade” (Spinoza/Hegel). Sendo as “necessidades” operantes no mundo social historicamente constituídas e reproduzidas através das ações e representações dos atores humanos, o reconhecimento daquelas pode dar ensejo ao seu questionamento, combate ou destruição. Ao amplificar a consciência dos determinismos que coagem a conduta social, sobretudo daqueles interiorizados nos corpos e mentes dos agentes, Bourdieu pretende oferecer armas eficientes de contra-atuação sobre essas estruturas e mecanismos coativos, contribuindo, assim, com a consecução de uma margem de liberdade em relação aos mesmos. Em uma singular combinação entre “pessimismo do intelecto” e “otimismo da vontade”, Bourdieu poderia chegar a dizer que sua busca incansável dos modos de constituição social da subjetividade - isto é, o “determinismo” de seu enfoque teórico-sociológico - é precisamente o que pode fazer de sua sociologia uma ferramenta libertária de resistência à dominação e de autotransformação individual. É nesse sentido que o projeto de sua sociologia reflexiva torna-se relevante não apenas para a política da Cidade justa, mas também, e inseparavelmente, para a ética da boa vida.

Notas

[1] Também seria útil traduzir a noção de “sens pratique” por “sentido prático”, apontando para a tentativa bourdieusiana de avançar uma compreensão não dualista da relação mente/corpo, refletida na própria duplicidade da noção de “sentido”, simultaneamente referente ao aparato sensorial por meio do qual nossos corpos experienciam sua imersão na realidade social (“sentido sensório”) e aos instrumentos simbólico-interpretativos que imbuem essa experiência de significados subjetivos (“sentido significante”).

[2] Graças à epígrafe do livro, “Isto não é uma autobiografia” (2005: 36), Bourdieu conseguiu produzir um caso raro de autobiografia não autorizada.

[3] Em A transformação da intimidade, o sociólogo britânico afirma: “Um recurso que utilizei extensamente talvez necessite aqui de algum comentário: a literatura de auto-ajuda. Desprezada por muitos, para mim ela oferece insights de outro modo impossíveis, e eu me coloco deliberadamente tão próximo do gênero quanto possível, no desenvolvimento dos meus próprios argumentos” (Giddens, 1993: 7). Naturalmente, é possível rejeitar como insatisfatórias algumas ou até a maioria das obras de um gênero de reflexão e discurso sem que se precise estender esse juízo ao gênero em si. Pensada no sentido lato, como uma reflexão sobre a condição humana orientada para fornecer aos indivíduos ferramentas existenciais com as quais eles possam aplacar algumas das suas fontes de sofrimento e obter um pouco mais de felicidade, a literatura de “auto-ajuda” não nasceu com Lair Ribeiro, mas constitui um universo de discurso que engloba parte do que a filosofia ocidental produziu de melhor ao longo dos últimos vinte e tantos séculos. 


Bibliografia
ALEXANDER, Jeffrey. “O novo movimento teórico”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n.2, 1987.
BERGER, Peter. Perspectivas Sociológicas. Petrópolis, Vozes, 1972.
BOURDIEU, Pierre. Outline of a theory of practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1979.
______Coisas Ditas. São Paulo, Brasiliense, 1990.
______“Reply to some objections”. In: In other words. Stanford, Stanford University Press, 1990b.
______ “Scattered remarks”. In: European Journal of Social Theory, v.2, n.3, 1999.
______Esboço de auto-análise. São Paulo, Companhia das Letras, 2005.
BOURDIEU, Pierre & WACQUANT, Loic. An invitation to reflexive sociology. Chicago, Chicago University Press, 1992.
LAHIRE, Bernard. Retratos Sociológicos. Porto Alegre, Artmed, 2004.
PETERS, Gabriel. “Habitus, reflexividade e neo-objetivismo na teoria da prática de Pierre Bourdieu”. Cadernos Sociofilo, 2011. Disponível em: http://sociofilo.iesp.uerj.br/wp-content/uploads/2011/03/Habitus-reflexividade-e-neo-objetivismo-Peters.pdf
VANDENBERGHE, Frédéric. A philosophical history of German sociology. London, Routledge, 2009.

domingo, 3 de outubro de 2010

Uma etnografia da mente



Douglas Porpora - Drexel University

Artigo originalmente publicado em Theory: The Newsletter of the Research Committee on Sociological Theory. International Sociological Association, Spring/Summer 2008. Gentilmente cedido ao Cazzo pelo autor.

A partir do trabalho da Escola de Chicago, uma preocupação da sociologia tem sido a de que as pessoas refletem sobre si próprias. Mas será que todos refletimos acerca de nós próprios da mesma forma? Não apenas essa questão não tem tido resposta, mas também não tem sido colocada de forma sistemática.

Muitos de nós, portanto, acha muito provocante a sugestão de Margaret Archer em seus trabalhos recentes (por ex. 2003). Nem todo mundo, a pesquisa de Archer sugere, reflete melhor acerca de si ao conduzir conversações interiores consigo mesmo. Ao contrário, aqueles que Archer chama de “reflexivos comunicativos” preferem pensar sobre suas crenças e ações por meio de conversações reais, externas, com outras pessoas de seu círculo social.

É nas duas categorias que Archer chama de “reflexivos autônomos” e “meta-reflexivos” que encontramos pessoas refletindo mais comumente por meio de conversações interiores. A diferença entre duas categorias está no conteúdo da reflexão. Reflexivos autônomos refletem internamente sobre questões instrumentais ou estratégicas, incluindo o tipo de gerenciamento de impressões identificado por Goffman. Os meta-reflexivos também refletem internamente sobre preocupações instrumentais. Mas, além disso, os meta-reflexivos são dados a longas reflexões internas sobre ideais e questões morais, projetos de vida e emoções. Como as ciências sociais e as humanidades tendem a atrair meta-reflexivos e os ajudam a promover o pensamento meta-reflexivo, muitos de nós neste campo tendemos a ser meta-reflexivos.

Se os reflexivos autônomos e os meta-reflexivos pensam acerca de si próprios especialmente por meio das conversações interiores, qual a natureza de sua conversação interna? Ela é continua? A linguagem empregada é a mesma que a empregada nas conversas reais, externas, ou é mais abreviada? Em um artigo apresentado em um encontro da American Sociological Association, Norbert Wiley (2004) efetuou uma revisão acerca do que se conhece sobre a fala interior – não muito. Existem sugestões, como a de Vygotsky, de que a fala interior é mais breve, e que, por exemplo, o sujeito da frase é constantemente omitido, dado que já sabemos quem está desempenhando a ação.

O artigo de Wiley termina com um pedido de mais pesquisas sobre a fala interna, um pedido que me inspirou a respondê-lo. Para o workshop sobre reflexividade organizado por Margaret Archer, eu resolvi me dedicar ao que chamei de uma etnografia da mente. Por várias semanas, tentaria observar o cenário da minha vida interior. Qual era a natureza da minha fala interna? Quais eram os atos de fala – por ex., reportar, argumentar, calcular – nos quais eu me engajava? Algo mais, além da fala interior, acontecia dentro de mim? Essas eram as questões que eu buscava responder.

A tarefa foi, na verdade, bastante difícil. O social – na forma de fala – se imprime de tal forma sobre nós que, no início, quando você olha para si mesmo, tudo o que pode perceber é fala. Com um tipo de efeito Heisenberg, o próprio ato de auto-exame tende a transformar em fala tudo o que você está examinando. Como num sonho, o pensamento não linguistico facilmente evapora quando tentamos apreendê-lo.

No entanto, da mesma forma que a prática nos permite recordarmos nossos sonhos, ela também possibilita que nos surpreendamos no tipo de absorção não linguística pelo mundo que os budistas chamam de “talidade” (suchness), a apreensão do mundo sem a rotulação linguística.

Minha mais importante descoberta diz respeito à natureza da minha fala interior. Descobri que ela raramente era abreviada da forma sugerida por Vygotsky. Exceto quando expressando expletivos, eu geralmente empregava sentenças inteiras. Mesmo expletivos eram geralmente enraizados em locuções bem-formadas, tais como aquelas começando com “Que p…?”.

Se minha fala interior tendia para as sentenças completas, o motivo surpreendente para isso era que eu passava muito pouco tempo falando especificamente comigo mesmo – ou mesmo com o Outro Generalizado de Mead. Em vez disso, percebi que minha mente era povoada por muitos “interlocutores convidados” – pessoas reais ou audiências potenciais a quem eu internamente me dirigia. Muito do que eu fazia era imaginar o que diria ou escreveria para algum grupo de pessoas, ou repassava mentalmente o que eu deveria ter dito ou escrito. Minha reflexividade autônoma ou meta-reflexiva parece muito, então, com uma reflexão comunicativa interna.

O quão idiossincráticas são essas descobertas? Isso não é claro. Precisamos que outras pessoas comecem a fazer uma etnografia da mente como esta.

Bibliografia

Archer, Margaret. (2003), Structure, Agency, and the Internal Conversation. Cambridge, Cambridge University Press.
Wiley, Norbert. (2004), The Sociology of Inner Speech: Saussure Meets the Dialogical Self. Paper presented at the August Meeting of the American Sociological Association, San Francisco (revised version published in Journal for the Theory of Social Behaviour, 36(3), pp. 319-341, 2006).

sábado, 24 de julho de 2010

Scarlett, Refutador, Gollum e Smeagol: notas sobre conversações interiores (parte 2)



Refutador, em momento de intensa atividade mental


Cynthia Hamlin

No post anterior, considerei a possibilidade de que, diferentemente de Gollum/Smeagol, Artur/Refutador possuíam uma identidade de self, ou identidade pessoal. Por enquanto, deixarei em suspenso a questão de saber se Artur/Refutador constituem um self único ou se são, de fato, dois selves distintos, como parece acreditar Artur. No primeiro caso, o problema se transformaria na questão de saber “quem fala com quem” nas conversações interiores - e que Frédéric Vandenberghe (2010), num arroubo de inspiração DaMattiana, coloca nos termos “você sabe com quem está falando quando fala consigo mesmo?”. Esta questão foi trabalhada teoricamente nos três posts sobre a audição como metáfora para se pensar a reflexividade na obra de Archer (aqui, aqui e aqui). No segundo caso, isto é, no de Artur e Refutador serem de fato dois selves distintos, o problema deixaria o âmbito da sociologia para entrar no domínio da psiquiatria e, neste caso, deixo a Refutador a tarefa de efetuar o diagnóstico de Artur. Por ora, suspendamos o julgamento e concentremo-nos na teoria do self que deve guiar nossa análise.

Archer (2000a; 2000b) efetua uma distinção entre o nosso sentido de self (selfhood) e a nossa identidade de self (ou identidade pessoal). O primeiro refere-se à continuidade da nossa consciência, à faculdade de nos considerarmos como um mesmo ser ao longo do tempo e do espaço. O sentido de self é não apenas universal, mas também algo que compartilhamos com os animais superiores, que têm noções de suas formas e limites corporais, conseguem diferenciar entre eles próprios e outros objetos e detêm intencionalidade - como o cão que sabe que precisa desviar da árvore ao perseguir sua presa, ou o baratossauro que habita uma das salas da UFPB onde Artur dá aulas (aqui). Embora Artur não saiba disso, o baratão gigante espera pacientemente a hora de suas aulas fim de efetuar seus rasantes mortais. Longe de consistirem num vôo histérico e descontrolado, tais rasantes implicam num complexo sistema de navegação que foi especialmente desenvolvido a partir as interações entre o ambiente e seu corpo pouco aerodinâmico - tudo com o objetivo específico de perturbar as aulas de teoria social.

Isso significa que o sentido de self é pré-social e pré-linguístico, dependendo, conforme argumenta Merleau-Ponty, dos encontros entre nossos corpos e o ambiente, pois é a partir deles que naturalmente aprendemos a distinguir entre objeto/objeto, sujeito/objeto e sujeito/sujeito. Há, portanto, uma primazia da prática em relação à linguagem na forma como aprendemos a nos diferenciar de outros objetos ou, nos termos de Piaget, em nosso “descolamento referencial” de outros objetos (Archer 2000a: 60). Foi por isso que, antes de aprender a falar, Artur aprendeu que a chupeta que ele havia perdido durante o sono não era uma parte de seu corpo que havia desaparecido para todo o sempre, mas um objeto que conservava uma identidade distinta da sua e que talvez pudesse ser encontrado embaixo de seu travesseiro. (Já a distinção perrusiana entre Artur e Refutador, essa só pôde ser efetuada anos mais tarde, depois que ele aprendeu uma linguagem e pôde ler Bachelard, Moscovici e Foucault - mas isso ainda está em suspenso).

Sem um sentido de self, Artur não poderia ter desenvolvido sua identidade pessoal, que pode ser definida a partir das coisas com as quais ele se importa e que o torna um ser humano único. Como o resto de nós, ele consiste em um tipo de ser que Charles Taylor caracterizou como “grande avaliador”, diferindo de outros animais por ter a capacidade de conferir significado às três ordens que, segundo Archer, compõem a realidade humana: a natural, a prática e a social. As diferentes situações colocadas pelas três ordens assumem distintos “aspectos de significância” para ele, fazendo emergir emoções relacionadas ao seu bem-estar físico, na ordem natural, à sua competência performativa, na ordem prática, e à sua autoestima, na ordem social (Archer, 2003). Dado que ele precisa estabelecer práticas consideradas satisfatórias em cada uma das três ordens, ele deve definir quais as suas “preocupações últimas” (ou seja, aquilo que realmente importa para ele) e como suas outras preocupações subordinam-se e acomodam-se às primeiras, isto é, às últimas.

De forma geral, uma de nossas principais preocupações é com a nossa autoestima, que é garantida por meio de certos projetos relativos a carreira, família, atuação política, relações de amizade e de erotismo, etc. É justamente aí que entram Scarlett e Refutador. De um ponto de vista de suas preocupações relativas à ordem social, está claro que os dois não podem ser evocados sem que surja algum tipo de conflito, e talvez isso explique o fato de sua alma não ter suportado tamanha pressão durante a defesa de minha orientanda.

Mas aquele foi um caso extremo, pois a debandada de sua alma impossibilitou qualquer resquício de auto-monitoramento. Na maioria das vezes, a priorização e acomodação de suas preocupações é efetuada por meio de deliberações reflexivas nas quais ele alterna diferentes “fases” de seu Ego, estabelecendo uma relação dialógica entre um objeto (um “mim”, passado), um signo (um “Eu” presente) e um intérprete (um “Você” futuro). Como já afirmei em outro post, esta distinção é meramente analítica, caso contrário, teríamos uma reificação dessas fases, como parece ocorrer com Gollum/Smeagol (embora eles sejam interessantes do ponto de vista contra-factual porque não representam uma mera reificação de fases do self, mas operam uma verdadeira síntese do mim/eu/você em um “nós” - uma espécie de síndrome de personalidade múltipla na qual uma personalidade tem consciência da outra). Mas o ponto importante de ser retido é que a auto-reflexão envolve o tornar-se objeto para si mesmo, e isto não pode ser feito mediante uma cisão da consciência, conforme pressuposto no modelo introspectivo do sujeito cartesiano. Ao contrário, o auto-monitoramento de nossa vida mental e privada consiste num continuum que, como afirmei anteriormente (aqui), envolve desde premonições relativamente incoerentes, em seu nível mais baixo, até a articulação de sentenças inteiras, em seu nível mais alto.

E foi justamente isso que Artur fez quando externou sua conversação interior com Refutador, que representa nada menos que seu “mim” - um conjunto de hábitos e disposições (no caso, teóricas) ou, em termos peirceanos, o ponto final de ciclos semióticos anteriores aos seus questionamentos. Obviamente que um diálogo como aquele dificilmente pode ocorrer da forma como foi descrito, afinal de contas, nem mesmo Refutador conseguiria manter um grau de intencionalidade (no sentido fenomenológico) tão alto quanto o que está implicado ali. De fato, do ponto de vista privado, uma série de experiências distintas (premonições, intenções, desejos, sensações, imaginação etc.) interferem no processo, desviando nossa atenção e fazendo com que o nosso fluxo de consciência frequentemente deixe de ter uma direção clara ou um propósito definido. Mas é justamente por isso que o processo de escrita é especialmente útil para esclarecer nossos próprios pensamentos, sendo, talvez, a forma mais precisa de auto-monitoramento ou de auto-reflexão: ele possibilita um redirecionamento constante da atenção. Por esta razão, por mais que Artur repudie Refutador e tente expurgá-lo de sua mente tratando-o como um alterego demoníaco, só lhe resta recorrer a uma estratégia de defesa flaubertiana e anunciar ao mundo: Refutador c’est moi!



Referências

Archer, Margaret (2000 a). “Realismo e o Problema da Agência”. Estudos de Sociologia 6 (2), p 51-75. Recife, Ed. Universitária da UFPE.
________ (2000). Being Human: the problem of agency. Cambridge, Cambridge University Press.
________ (2003). Structure, Agency and the Internal Conversation. Cambridge, Cambridge University Press.
Vandenberghe, Frédéric (2010). Teoria Social Realista: um diálogo franco-britânico. Belo Horizonte e Rio de Janeiro, Ed. UFMG e Iuperj.

domingo, 18 de julho de 2010

Scarlett, Refutador, Gollum e Smeagol: notas sobre Conversações Interiores (parte 1)



Cynthia Hamlin

Há cerca de 3 semanas, Artur participou da banca de defesa de dissertação de uma orientanda minha. Um dos pressupostos fundamentais da dissertação era a tese de Margaret Archer de que as estruturas sociais e os valores culturais não incidem diretamente sobre a agência individual, mas são mediados por um processo reflexivo que frequentemente assume a forma de conversações interiores do sujeito consigo mesmo.

Durante a defesa, Artur questionou o pressuposto afirmando logo de cara que não tinha conversações interiores. Foi um choque. Como assim, não tem conversações interiores?! Minha orientanda ainda tentou argumentar, citando Platão: “o pensamento é uma conversa da alma consigo mesma”. Ao que ele replicou: “Alma é uma secreção verde que tem origem no sistema límbico e sai pelo nariz”. Desde então, tenho perguntado a todas as pessoas que cruzam o meu caminho se elas conversam consigo mesmas. Até agora, Artur foi o único que negou ter conversações interiores. Seria ele uma curiosidade sociológica?

Talvez valha a pena um pequeno adendo para compreender o estado de espírito perrusiano no momento dessa afirmação. Artur sofre de uma pequena obsessão por Scarlett Johansson. Coisa leve, claro. Sabendo disso - e que ele resistiria participar de uma banca em companhia de 4 mulheres a fim de discutir gênero - joguei como isca a minha própria orientanda. Como já afirmou o poeta renascentista inglês John Lyly, tudo vale no amor, na guerra e nas defesas de dissertação. Disse que ela era a cara de Scarlett - o que é verdade - e, só por garantia, coloquei um porta-copos com a foto da dita-cuja na mesa à sua frente durante a defesa.

Mas, assim como o amor e a guerra, as defesas de dissertação estão sujeitas à influência do imponderável. Se o truque serviu para atrair Artur para a banca, o Je-ne-sais-quoi scarlettiano que pairava sobre o ambiente parece ter tido um efeito tão poderoso em sua alma que nem todos os lencinhos retirados de todas as bolsas de todas as mulheres da banca foram suficientes para dar conta de suas secreções nasais. E em lugar do intrépido intelectual que desafia Refutador, o demônio de ossos ocos e asas de pterodáctilo (aqui), Artur era a própria imagem de Amelie Poulain, liquefazendo-se diante de uma emoção impossível de ser contida. Pobrecito.



Quanto a mim, faz três semanas que uma dúvida atroz me persegue: seria Artur o elemento empírico que refuta a teoria do agente humano de Archer, ou a teoria está correta e Artur é que não pode ser considerado um agente humano? A última hipótese era cruel demais para ser sequer aventada. Além do mais, já tive evidências de que ele compartilha pelo menos parte da habilidade mental de considerar a si mesmo em relação ao seu contexto e de monitorar suas próprias crenças, desejos e ações - se não por meio de conversações consigo mesmo, pelo menos por meio de outras atividades mentais privadas, como a fantasia, a meditação preparatória, a clarificação, as conversas imaginárias com outras pessoas (Archer, 2003)... De fato, todas essas atividades podem ser percebidas em seu diálogo imaginário com Refutador, exceto a conversação consigo mesmo.

A menos que... Será? Seria Refutador um alter-ego perrusiano, uma espécie de Gollum bachelardiano defensor de rupturas epistemológicas cujas implicações para a concepção de doença mental poderiam parecer excessivamente disciplinantes para o nosso Smeagol sociólogo/psiquiatra? Não seria difícil fundir os diálogos de Artur e Refutador, por um lado, Smeagol e Gollum, por outro:
- O que você quer, ser hediondo? (...)
- Nada, pequeno mortal, nada, a não ser chateá-lo; inclusive, você sabe muito bem por que estou aqui. Deixe de ser imêmore e lembre-se de que sou produto das suas dúvidas, dos seus impasses e das suas confusões. Sempre que uma contradição surge ou um problema de difícil solução aparece, os seus pensamentos procuram-me. Portanto, sou eu que devia estar incomodado, pois fui invocado e retirado por você do meu descanso no sétimo nível infernal. Where would you be without me? We survived because of me! I saved us! It was me! We survived because of me!
- Not anymore.
- What did you say?
- Master looks after us now. We don’t need you.
- What?
- Leave now. And never come back.



Por mais tentadora que possa parecer essa solução, ela traz uma contradição teórica que teria implicações profundas para o self perrusiano, caso fosse aplicável. Se vocês repararem bem, existe uma diferença no uso dos pronomes pessoais que tornam a comparação inviável: Artur/Refutador usam os pronomes “eu”, “mim” e “você”, ao passo que Gollum/Smeagol usam “nós”, “eu”, “mim” e “você”, mas os dois primeiros são relativamente indiferenciados. Em outros termos, embora Gollum/Smeagol tenham um sentido de self, ao contrário de Artur/Refutador, eles não parecem ter uma identidade de self. No próximo post, falarei sobre essa distinção e como Scarlett e Refutador assumem um papel central na determinação da identidade de self perrusiana.

(continua...)

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Margaret Acher: Reflexividade



Um anônimo simpático nos presenteou com o link para este vídeo, que compartilho com vocês. Obrigada, anônimo simpático!

Cynthia

sábado, 3 de abril de 2010

O olho que nada vê: da visão à audição como metáfora para se pensar a reflexividade na obra de Margaret Archer 1



Cynthia Hamlin

'SOLITÁRIO QUAL NUVEM VAGUEI' *

Solitário qual nuvem vaguei
Pairando sobre vales e prados,
De repente a multidão avistei
Miríade de narcisos dourados;
Junto ao lago, e árvores em movimento,
Tremulando e dançando sob o vento.

Contínua qual estrelas brilhando
Na Via Láctea em eterno cintilar,
A fila infinita ia se alongando
Pelas margens da baía a rondar:
Dez mil eu vislumbrei num só olhar
Balançando as cabeças a dançar.

As ondas também dançavam neste instante
Mas nelas via-se maior a alegria;
Um poeta só podia estar exultante
Frente a tão jubilosa companhia:
Olhei – e olhei – mas pouco sabia
Da riqueza que tal cena me trazia.

pois quando me deito num torpor,
Estado de vaga suspensão,
Eles refulgem em meu olho interior
Que é para a solitude uma bênção;
Então meu coração começa a se alegrar,
E com os narcisos põe-se a bailar

William Wordsworth
in 'O olho Imóvel Pela Força da Harmonia'
Tradução de Alberto Marsicano.

* Este poema também é conhecido como “Narcisos”.

Há alguns dias, Jonatas sugeriu que eu desenvolvesse algo sobre a concepção de sujeito do romantismo inglês. Para variar, eu disse que não. Para variar, cá estou eu. Bem, sim e não. A verdade é que não entendo nada do movimento romântico e, por uma série de razões que não vêm ao caso, não estou disposta a fazer o investimento monstruoso que Jonatas tem feito no tema. Mas algumas questões que ele tem levantado têm uma implicação direta nas minhas preocupações teóricas do momento, em particular, as noções de subjetividade e de reflexividade, centrais à teoria da agência desenvolvida por Margaret Archer. Meu objetivo aqui não é fornecer um resumo de sua obra, ou mesmo de sua teoria da agência, mas apresentar sua crítica às noções correntes de reflexividade e introspecção baseadas em um modelo que tem o olho e a visão como referências.